Contra os canhões

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Tudo em cima forte gente? Essa saúde? Isso é que é preciso. Neste momento estamos entre intervalo de futebóis. Aquela altura em que o futebol dá lugar às novelas do futebol. A grande novela que é o futebol com os actores de sempre mas com aqueles episódios longuíssimos até às duas da manhã e o enredo a mastigar aquela ladainha do sai não sai, do trai não trai, do quem matou, terá sido o motorista, o Cajó ou a matriarca dos Albuquerque e Costa? Difícil. É esperar para ver e aguentar com mais 40 minutos de intervalo com anúncios a baldes de esfregona e lubrificantes sexuais. Aproveite para ir à casa de banho e meter uma bucha que o chorrilho está prestes a recomeçar. Bem, mas neste momento de transição não posso fugir ao que tem marcado a actualidade. Resumidamente, o encontro LGBTI nas ruas de Bragança e a Eurovisão. De um lado um evento dirigido a lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais e do outro uma alegre passeata pelas ruas de Bragança. Mais, Portugal ficou em último na Eurovisão e é um grande alívio. É o médico a dizer-nos “você está como o aço, não se preocupe”. Essa sorte toda junta que tem tido ultimamente é normal, deve ser da humidade, mas isso passa. Tem andado a abusar da sangria e do presunto com melão, não é? Pois, eu sabia, tem de beber mais água e cortar nos fritos. O português já andava aqui “tu queres ver que já arranjei alguma. Logo eu que fui sempre um gajo certinho que nunca se meteu em aventuras”. Mas não, está tudo a voltar à normalidade, ao devido lugar. Bem, é curioso que um povo que organiza um festival chamado Eurovisão com tanto colorido, poupa e circunstância para mostrar que se há coisa que sabe fazer é organizar uma boa festarola, venha depois sentir algum desconforto com uma mini-caminhada LGBTI.ETC. Isso é o mesmo do que a gastronomia trasmontana vir agora dizer “não aprecio sandes de fiambre porque é uma comida carregada de colesterol” e além disso “eu só como cenas glúten free” de maneiras que eu ando sempre com uns frutos secos na carteira por isso não se preocupem comigo que eu fico bem com esta saladinha. Neste tipo de assuntos há sempre duas posições. Os que dizem sim senhor, concordo, força, se Bragança quer ser uma cidade global e inclusiva, faz parte da caminhada e além do mais isto é apenas uma espécie de prelúdio porque a população LGBTI.ETC de Bragança no mês que vêm pode pôr-se dentro de um carro e passadas duas horas está em Madrid para uma coisa à séria, à escala mundial, que faz parte do roteiro turístico da cidade e tem gajos com abdominais muito mais definidos. Depois há o típico por mim tudo bem, nada contra, desde que não venham para o meu lado nem se metam comigo. Sendo que no que diz respeito a estes últimos nunca sabemos se é gente que em caso de efectivamente se meterem com eles, irão impulsivamente pôr em prática a táctica do javali e desfazer à marrada e à martelada tudo o que mexer, independentemente da orientação sexual, ou se, por outro lado, vão ebulir por dentro durantes uns breves segundos antes de despirem o casaco e se juntarem-se à festa de camisa de alças, dançando, acompanhando de cor as letras da Glorya Gainor e da Eurovisão e abraçando a causa como se tivessem esperado toda a vida na solidão de uma eterna adolescência pela chegada abençoada deste dia. Ainda assim, no entanto, estou convencido de que estas duas abordagens, embora aparentemente discordantes, possam perfeitamente caber dentro da mesma pessoa. J. Rentes de Carvalho, ilustre trasmontano, escreveu que esta região tem uma forma “muito Zimbabué ou Partido Comunista Chinês de tratar estas coisas”, varrer a homossexualidade para debaixo do tapete, fechá-la na gaveta dos tabus. Meus incomodados senhores e minhas incomodadas senhoras, tapem os ouvidos. Já taparam? Aí vai: Em Portugal qualquer cidadão tem o direito à reunião e manifestação e, pior, os homossexuais podem casar e adoptar crianças. Exacto, eu compreendo que o senhor padre não vos tenha falado disso aos domingos, mas é verdade. Quiçá o armário dele esteja cheio daqueles espinhos, flagelos e grilhões de que ele tanto fala para conseguir sair de lá. China, 16 milhões de homossexuais fachadamente casados para mostrar que sim, que sabem construir uma família segundo as primordiais leis da natureza humana e limpar a face das respectivas famílias ainda que toda a gente saiba que cada um continua a seguir o seu indeclinável caminho. E nem sequer acreditam em Deus! Mundo estranho este, realmente. Também foi por isso que transmitiram a Eurovisão às fatias, corta aqui, corta ali, tudo à base do “parece mal”. A sério, não queiram essa felicidade para os vossos filhos. Uma parada por mais ou menos movida que seja não adianta grande coisa. Mas mostra que há gente determinada e que Bragança é uma cidade actual e cosmopolita que não se abstém de acolher e dar voz a todos por igual. Isso vale muito e acho que até deve ser motivo de orgulho. Grande abraço!

Manuel João Pires