Lavrar o silêncio

PUB.

Recentemente, tive o privilégio de fazer uma pequena visita a um familiar muito próximo lá fora e visitar uma cidade com polifonias diferentes, ancorada num passado longínquo e muito rico a todos os níveis. Coincidência ou não, o meu amigo Manuel teve no domingo passado esta bela fórmula: “ O luxo, é o espaço, o tempo e o silêncio.” Encontrei a ideia fantástica e justa; nós que passamos a vida a correr atrás do terrível fantasma do sucesso material, esta definição de luxo é suscetível de nos fazer refletir sobre o sentido que damos às nossas vidas. Pensei logo também nas catedrais e ruinas de abadias e mosteiros, dois que visitara no meu recente périplo. Longe do tumulto do mundo, constelam tantos lugares, no nosso país também; um mosteiro trapista muito novo em Palaçoulo, concelho de Miranda do Douro. Barcas de pedra consagradas na mais completa solidão, são um refúgio de paz para quem pretender dar um sentido à sua vida. Seriamente, e se o luxo fosse simplesmente a contemplação serena duma paisagem, tomando o tempo necessário para se inscrever nos minutos que passam, num relicário de silêncio? E se o verdadeiro luxo, para toda a humanidade, fosse retirar-se do mundo para, por fim, viver? Os anacoretas não pensavam doutra forma, estes que fugiram da desordem para construir uma existência de oração no deserto. Na penúria e na indigência mais completa, pararam o curso do tempo e elevaram-se para o Altíssimo, com toda a humildade, com a visão dos enormes espaços, o tempo e um silêncio imposto. Sonho também com essas pequenas capelas cercadas por grutas, colocadas no cimo das colinas, onde grupos de ermitas se instalavam no princípio da Idade Média, edificante num estilo românico privado de artifícios, santuários para praticar as suas devoções à Virgem, a Cristo Jesus ou a um santo. Ainda hoje, atingir a capela requere alguns esforços, e se uma estrada alcatroada nos conduz a ela, a estreiteza e o declive da via exigem uma certa coragem para chegar lá. Retiradas do mundo, pessoas muitas vezes simples praticaram nesses lugares uma vida dedicada aquilo em que acreditavam, no meio das estridulações das cigarras sussurrando num oceano de pinhos. Tenho uma profunda admiração por quem têm a audácia de renunciar à agitação contemporânea a fim de escutar somente o seu coração e dar graças a Deus. Sou incapaz de o fazer e lamento muito. Penso que todos temos a experiência nem que seja mínima da meditação ou de algum retiro espiritual. Nem que seja passar alguns momentos isolado na natureza no silêncio da noite, quando cessa o último pio de uma ave noturna, experiência arrepiante e enriquecedora ao mesmo tempo. Contudo nada me levou a mudar a minha relação com o tempo, com a minha vida e com o sentido que lhe quero dar. Porém as palavras do meu amigo fazem eco em mim como um mantra, como uma oração, e agradeço-lhe por ter tornado mais claros os meus pensamentos da semana. Boas resoluções e decisões, eis o que nos faz falta. Iluminar as nossas vidas de espaço, darmo-nos o tempo de ser, saboreando o silêncio, em nós e à nossa volta. Como isso nos parece simples, mas como é difícil pô-lo em prática, reconheçamo- -lo. Talvez possamos vestir a interrupção voluntária das nossas existências com algumas notas de música, talvez tomar o tempo para si, caminhar, passear. Alguns de nós acreditaram, pobres de espírito é o que somos, que o confinamento nos levaria a um mundo do Depois, no qual a experiência da pandemia nos permitiria ser mais sábios e mais serenos. Sonho ilusório não passou disso. De qualquer forma, podemos ainda, individualmente, cultivar o silêncio e a paixão dos grandes espaços, e darmo- -nos ao luxo de existir para nós, em plena consciência, no amor dos outros, dos que nos são próximos e daqueles que nos são queridos. O verdadeiro cristão é talvez aquele que consegue encontrar a calma e a serenidade em si-próprio, acalmar as suas tempestades mais íntimas para praticar o bem nos preceitos de Cristo. E praticar o luxo, o verdadeiro, o essencial: espaço, tempo, silêncio. Deste tríptico primordial nascem a benevolência e a ternura, virtudes cardinais para quem se diz humano, para quem se afirma cristão. À imagem de todos aqueles que optaram por fugir do mundo, podemos também encontrar o indispensável, e fazer das nossas existências um caminho luminoso em direção ao Céu. Praticando simplesmente o culto que escolhemos, mas decididamente, ligando-nos ao próximo, estendendo a mão; religio, em latim, ligar, prender-se. Em suma, ter o luxo de estar e viver plenamente, no respeito pelos outros e por si-mesmo, ancorado no tempo, cultivando o silêncio, percorrendo o espaço em total liberdade.

Adriano Valadar