No dia 24 de Abril de 1974

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Nesse dia as mulheres ainda usavam panos higiénicos para susterem a menstruação, os soldados pintados quais lagartos ao sol carregavam sacos de lona verde onde levavam os pertences rumo às colónias no fito de defenderem a Pátria envolvida numa guerra contra a evidência histórica. O sangue menstrual fluxo de vida estancava-se em felpos, o sangue da mocidade derramava-se nas matas africanas. Por lá andei durante vinte e sete meses.

A fuga ao cumprimento do serviço militar dava réditos aos passadores também a ganharem dinheiro na condição de vampiros de todos quantos viam na emigração a escapatória de um viver iníquo, sem sentido, sem esperança. Pensem nos refugiados à procura da Europa.

Pensem, igualmente, na existência da PIDE/DGS, da Legião, do Tarrafal, do Forte de Peniche, na continuada aplicação de miserável lei de «segurança de Estado» vinda da mente e caneta de bragançano ministro de Salazar durante dez anos. Manda a História encasquetar na memória tais vergonhas, porque os carrilhões do tempo levam ao esquecimento, já os carrilhões dos templos inebriam-nos enquanto os sons perduram. Não podemos esquecer!

No dia 24 de Abril de 1974 a maioria da população não acedia facilmente ao tratamento de toda a sorte de enfermidades, nalgumas regiões o pé descalço calejado mostrava-se durante todo o ano, nas feiras de todo o Nordeste vendiam-se botas cardadas, sapatos de sola de amieiro, socas, xailes, lenços ramalhudos e floridos destinados a cobrirem a cabeça das mulheres, as viúvas usavam lenços e roupa preta. Lembram-se?

O trabalho infantil escorava-se nos adágios moralizantes a desculparem a nefanda exploração das crianças impedindo-as de ler, jogar e brincar, impelindo-as à infelicidade, à doença e à morte. Sabem qual era a taxa de mortalidade infantil?

A educação formal contemplava escassa minoria, muitos adolescentes dotados não prosseguiam os estudos derivado de os meios por um lado serem insuficientes, por outro o funil da representação social colocava-os na balsa dos destinados a viverem e morrerem gastando colarinhos de ganga azul, os engomados, brancos, azuis e beijes de popelina reservavam-se a estratificada elite.

Sim, os rapazes capitães estavam famintos de paz, sabiam da inutilidade de uma guerra contra os ventos da História, estudavam os novos mapas geográficos, viam ao vivo as contradições insanáveis de um sistema condenado a cruel finitude. E, vieram declará-lo no emblemático Terreiro do Paço. Ganharam, os caducos generais e restante brigada do reumático pontificava a leste da realidade.

Após a euforia (bebedeira de liberdade) vieram à tona da água as contradições, praticaram-se desmando, erros, aleivosias, disparates, atentados ao direito de expressão de pensamento e posse da terra, é verdade, ninguém as coloca no monte do esquecimento, tal como livremente apontamos as distorções existentes a todos os níveis, em todos os nichos da sociedade.

Passados quarenta e dois anos os resmungos, as indignações, as sulfurosas comparações fazem parte do nosso presente, tais manifestações de incertezas e certezas não estão sujeitas a receberem cacetadas das forças da «ordem», nem os seus promotores acabam presos. Façam o favor de recordar.

Longe da lamechice pindérica todos os anos a memória aviva tão importante data, tal como sei o significante do tratado de Zamora, a batalha de Aljubarrota e o 1.º de Dezembro de 1640, aos «capitães de Abril» reitero a gratidão (sentimento muito arredio) de terem ousado devolverem-nos a possibilidade de escolhermos os nossos governantes, de errarmos nas escolhas, de gritarmos nas ruas a nossa filiação partidária, de nas mesmas ruas afirmarmos a desvinculação a um qualquer partido.

Não levem a mal, a gratidão personifico-a em Fernando Salgueiro Maia paradigma do desprendimento material, generoso até ao tutano, o qual me deu a honra de pertencer ao seu círculo de amigos.

Não grito, escrevo: 25 de Abril sempre!

Armando Fernandes