NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Antónia Coelho Zuzarte (n. Freixo E. Cinta, 1648)

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Uma das moradias históricas mais interessantes da vila de Freixo de Espada à Cinta é a chamada casa dos Zuzarte. Interessante, sobretudo pela heráldica judaica que apresenta na fachada principal. Com efeito, o arco de granito da porta comercial do r/chão é decorado com três ramos de árvore (carrasco), cada um deles com 4 rebentos, simbolizando as 12 tribos de Israel. Uma janela do piso superior é decorada por uma rosácea com o hexagrama judaico insculpido e, ao lado, a data de 1557. Em uma outra pedra está escrita a palavra Zuzarte, certamente indicando a família dos construtores.
Não sabemos se foi naquela casa que, em 2.12.1648, nasceu Antónia Coelho Zuzarte, filha de Pedro Lopes da Fonseca e sua mulher Maria Coelha Zuzarte, bem como os seus 2 irmãos e 3 irmãs. Trata-se de uma família da nobreza e governança da terra, já que Pedro Lopes era o proprietário do lugar de meirinho do juiz de fora, ou seja o homem que tinha a seu cargo a manutenção da ordem pública e superintendia na cobrança das taxas e impostos municipais, acumulando com o cargo de escrivão da alfândega. E o seu irmão Domingos da Fonseca costumava andar na vereação da câmara, chegando mesmo a ocupar, por inerência, o lugar de juiz de fora, a autoridade civil mais importante da terra. E sendo família nobre, obviamente que se ligou a outras famílias igualmente nobres, como a dos Madureira, dos Varejão, Gamboa, Gama, Rego, Monteiro de Carvalho…
Situemo-nos então na vila de Freixo E. Cinta no ano de 1667. Antónia contava 19 anos e estava solteira, tal como sua irmã Joana e os irmãos Manuel Matela e João Coelho, este com 25 anos e servindo o ofício de meirinho, nele delegado por seu pai. A irmã Cacilda, a mais velha, era casada com seu primo direito António Varejão e a irmã Maria Coelho Zuzarte traria no ventre o primeiro filho de seu marido, Manuel Monteiro de Carvalho.
Em Março daquele ano, por ordem da inquisição, foram ali presas 3 pessoas ligadas entre si por laços familiares. Duas eram mulheres e, encarceradas que foram em Coimbra, ambas confessaram que, anos atrás se tinham encontrado em casa de Pedro Lopes da Fonseca com 3 de suas filhas (Antónia, Maria e Joana) e o seu genro Manuel Monteiro de Carvalho, que todos tinham parte de cristãos-novos e com elas se tinham declarado seguidores da lei de Moisés.
Com base nestas denúncias, em 6 de agosto de 1669, foram presas aquelas 3 filhas e o genro de Pedro Lopes e Maria Zuzarte, (1) numa operação, certamente “militarizada” conduzida por Diogo Monteiro de Melo, familiar do santo ofício e capitão-mor de Torre de Moncorvo.
Causaria enorme espanto a prisão de gente de tão alta nobreza, numa terra onde a presença da inquisição nunca foi muito sentida. Ainda mais porque nesta família, tanto pelo costado paterno como pelo materno, havia padres que, para se ordenarem, tiveram de fazer prova de pureza do seu sangue.
Como todos afirmavam ser cristãos-velhos, haveria de ter em conta dois aspetos. Por um lado, averiguar se eram cristãos-velhos ou tinham alguma parte de cristãos-novos, como as denunciantes disseram. Por outro, haveria de saber se realmente se tinham declarado judeus com as mesmas denunciantes.
O processo de averiguação da pureza de sangue foi conduzido pelo comissário da inquisição Gonçalo Caldeira de Vasconcelos, (2) morador em Torre de Moncorvo que sobre o assunto ouviu dezenas de testemunhas, naturalmente as pessoas mais velhas da vila e que conheceram ou ouviram falar dos seus ascendentes. O processo concluiu-se com um despacho do Conselho Geral declarando que as irmãs Coelho Zuzarte tinham ¼ de cristãs-novas por parte de sua avó materna, Feliciana Lopes.
Das testemunhas inquiridas, há duas cujo testemunho é deveras interessante para o estudo da questão da “lavagem de sangue”. Uma delas foi o padre Jorge Francisco Gil, de 60 anos. Começou por dizer que “a ré tem parentes clérigos e frades, pela parte paterna e materna”. Um deles chamou-se Francisco Jorge Coelho e para se ordenar, foi feita a análise da pureza do seu sangue, inquirindo-se umas 80 testemunhas! O inquérito não terá sido muito conclusivo pois que, antes de proceder à sua ordenação veio o arcebispo D. Afonso Furtado (3) a Freixo de Espada à Cinta e do púlpito da igreja anunciou que, do lado materno, estava apurada a limpeza do seu sangue e do lado paterno, se alguém soubesse de algum impedimento, que o dissesse.
Depois de contar o episódio e perante uma tal afirmação do arcebispo, a testemunha concluiu o seu depoimento dizendo:
- E ouvindo as pessoas que da primeira vez impediram, disseram então: se o arcebispo o aprova pela parte mãe, pela parte do pai não temos que dizer!
Terá sido este um processo de lavagem de sangue conduzido pelo próprio arcebispo de Braga?
Outro depoimento interessante foi o de Gaspar Pinto de Meireles, escrivão da câmara, 79 anos. Depois de afirmar que a Zuzarte “tem fama de parte de cristã-nova pelo lado da avó paterna, Antónia Francisca, que diziam ser neta de uma Fulana Gomes, de Chacim (…) e outrossim pela parte da sua avó materna, chamada Feliciana Lopes, havia a mesma murmuração”, contou a história do impedimento da ordenação de outro padre da mesma família, primo do pai de Antónia Zuzarte, chamado Baltasar Lopes.
No entanto, este acabou o mesmo por se ordenar padre, depois que o provisor do arcebispado, D. Gaspar do Rego da Fonseca (4) mandou a S. Felices de Gallegos, com autorização do bispo de Cidade Rodrigo fazer investigação genealógica do candidato. Mais curioso ainda: para fazer as averiguações em S, Felices de Gallegos foram dois cavaleiros da Ordem de Cristo!
Obviamente que todas estas diligências levaram tempo e, entretanto, as Zuzarte penaram nas celas da inquisição, por mais de 3 anos e meio. Cristãs-novas ou não, importava depois averiguar da verdade das denúncias feitas.
Foi com facilidade que elas se defenderam da acusação de declaração e prática de judaísmo, logo acertando nas denunciantes: Isabel de Matos e Francisca Soares, cunhadas entre si e que foram presas em Março de 1667 e juntas fizeram a viagem para Coimbra.
As Zuzarte provaram que as denunciantes eram falsárias e por vingança inventaram as denúncias. Foi para se vingarem de seu pai, Pedro Lopes da Fonseca, o chefe da família. Com efeito, quando Isabel e Francisca foram presas, sequestraram-lhe os bens e leiloaram na praça pública os necessários para fazer dinheiro líquido para custear a viagem para a cadeia de Coimbra e a alimentação no cárcere. E para isso foram leiloados uns couros que Pedro Lopes arrematou. E na própria casa de Francisco Lopes Garcês onde esteve “presa”, Francisca Soares pediu àquele que lhe arrematasse os couros para seu marido. (5) E quando soube que o meirinho os arrematara, disse:
- Se ele lançou nos meus couros, eu lançarei em coisa que mais lhe doa (…) ele ou coisa sua me pagarão.
E provou-se também que, estando 9 dias “presa” na casa de Domingos Gonçalves, em Torre de Moncorvo, enquanto se organizava a viagem para Coimbra, ela renovou as ameaças dizendo, nomeadamente:
- Não havia nenhum atrevido senão o meirinho que lançasse nos meus couros!
E assim se concluiu o processo de Antónia Coelho Zuzarte, como, aliás, o de suas irmãs, sendo absolvida das acusações. E foi-lhe dado a escolher se queria que a sua sentença fosse lida em auto público da fé, ou em cerimónia particular, na Mesa da inquisição. Esta foi a escolha de Antónia Zuzarte, sendo a sentença lida em 7.2.1673. Foi declarada inocente e mandados restituir os bens sequestrados. Porém… teve de pagar as custas do processo, incluindo as despesas da viagem, gratificação a quem a levou presa e aos comissário e escrivães que fizeram as diligências.
Notas:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 4572, de Antónia Coelho Zuzarte.
2- O comissário Gonçalo Caldeira de Vasconcelos faleceu antes da conclusão do processo das Zuzarte, sendo substituído nas diligências que depois se fizeram pelo reitor da matriz de Freixo João Fernandes Lopo.
5-Pº 4572: - Francisco Lopes Garcês, homem nobre, dos principais desta vila (…) disse que estando Francisca Soares em sua casa dele testemunha presa pelo santo ofício, dissera a ele testemunha que pedisse a Pedro Lopes da Fonseca, pai da ré, lhe não lançasse nos couros, e se lançasse, os desse ao marido dela contraditada, e que dissera que ele ou coisa sua me pagarão.
3-D. Afonso Furtado de Mendonça foi arcebispo de Braga entre 1618 e 1626.
4-D. Gaspar do Rego da Fonseca, provisor do arcebispado de Braga, seria depois nomeado bispo do Porto, cargo que exerceu entre 1632 e 1639. Era natural de Vila Maior, terra de Ribacôa, filho de Daniel do Rego e Leonor da Fonseca.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães