Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Branca Coutinho (n. Torre de Moncorvo, 1601)

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Branca Coutinho foi uma das filhas de Pedro Henriques Julião e sua mulher Francisca Vaz. Casou com Manuel Henriques Pereira, proprietário agrícola, industrial de moagem de pão e rendeiro. Referindo-se à sua família e à de seu marido, Branca permitiu-se afirmar perante os inquisidores:

— São pessoas honradas e os principais da nação de todo este reino e o mesmo foram seus pais e avós, vivendo sempre honradamente.(1)

Corria-lhe nas veias o sangue de Pero Henriques, o Cavaleiro que acompanhou Sua Alteza Real nas jornadas de África. E mostrava-se também orgulhosa de saber ler e escrever, tal como as suas irmãs.

Para além dos moleiros e assalariados agrícolas que trabalhavam às ordens de seu marido, Branca tinha ao seu serviço, nas tarefas da casa, uma ama que viera de Castro Roupal, para ajudar na criação dos filhos, duas criadas e um criado, que dormia na loja da casa. A este cabia, entre outras tarefas, matar e preparar os cabritos, as galinhas, as perdizes, os porcos e outros animais que cozinhavam e comiam, bem como rachar a lenha, tratar do quintal anexo à casa e outros serviços semelhantes.

Chamava-se este criado Francisco Fernandes Preto, natural de Peredo dos Castelhanos, homem de 37 anos que estava habituado a servir e correr mundo, anualmente se internando por Castela, no verão, como segador.

Entrou ao serviço de Branca Coutinho no S. Pedro de 1636 e ali aguentou 3 anos. Como geralmente acontece, Francisco teria alguns desentendimentos com os patrões e não esteve com meias medidas. Meteu-se a caminho de Coimbra e, no dia 16.4.1639, apresentou-se no tribunal da inquisição dizendo que a patroa sempre lhe mandava degolar os animais que se matavam em casa e que deixasse o sangue correr para o chão. Somente quando matavam os porcos é que permitia que apanhassem o sangue e o comessem os criados. Disse que, em certa ocasião quis levar um filho de Branca chamado Henrique a uma matança ao lugar do Peredo, mas ela não deixou, por recear que lhe dessem sangue a comer. Contou que, em certa ocasião, a patroa se desentendeu com uma vizinha que lhe atirou à cara que eles não comiam sangue por serem judeus. Ao que ela terá respondido:

— Os que tal diziam e comiam sangue eram os cães.

O Preto acrescentou que seus amos guardavam os sábados, começando à sexta-feira a limpar a casa, mudar as camas, vestir roupa lavada e especialmente acendiam nessa noite um candeeiro especial de “3 lumes” a que metiam torcidas novas e azeite limpo, candeeiro que ficava aceso toda a noite até se extinguir por si. Disse que também mandava os criados descansar ao sábado, mas que ao domingo os fazia trabalhar. Em prova de que falava verdade, apresentou como testemunhas as duas criadas da casa: Catarina e Apolónia Luís.

Obviamente que logo seguiram ordens para o comissário da inquisição em Torre de Moncorvo ouvir em declarações as duas criadas que, curiosamente, já não estavam ao serviço de Branca. Catarina deixara Moncorvo e fora-se para a sua terra, em Quintela de Lampaças. Apolónia, vivia casada com um pastor, à Fonte do Concelho, em Moncorvo. O comissário chamava-se Castelino de Freitas, era um novato, desejoso de mostrar serviço e fazer carreira, como efetivamente fez, logo subindo a inquisidor.

Mandou chamar Apolónia mas… o seu testemunho seria uma desilusão. Disse que, na verdade, nunca vira os amos comer sangue, e os animais eram sempre degolados, exceto os porcos cujo sangue era aproveitado para os criados comerem. Porém que o candeeiro da sala todos os dias se acendia da mesma forma, que a patroa nunca a mandou descansar ao sábado nem trabalhar aos domingos e dias santos e “sempre lhe viu comer toucinho e nunca lhe mandou tirar a gordura da carne”.

Para autuar as declarações de Catarina, que entretanto se tinha ido a servir para a vila de Cortiços, foi encarregado o comissário Paulo Peixoto de Sá, abade de Quintela. Catarina, para além de confirmar as denúncias feitas por Francisco Preto, acrescentou que, em dezembro de 1637, quando o inquisidor Diogo de Sousa esteve de visita a Moncorvo, seus amos pressionaram a ela e aos outros empregados para que os não fossem denunciar.

Claro que tudo isto soava como música aos ouvidos do comissário Castelino de Freitas que encontrou mais dois denunciantes. Um deles foi Francisco Durão, de Maçores, que estivera 5 meses servindo em casa de Branca Coutinho que confirmou as denúncias citadas e acrescentou que seus amos, ao anoitecer, se iam para uma varanda interior fazer rezas judaicas. Em sua defesa, diria Isabel que Francisco Durão era parente muito chegado de Francisco Preto, que o terá induzido também.

A outra testemunha foi Mateus de Sá Pereira,(2) escrivão da câmara, o qual declarou que Manuel Pereira e Branca Coutinho e seus familiares guardavam o sábado, não trabalhando e vestindo os “fatos domingueiros”. E isso o sabia porque de sua casa via as portas e janelas dos denunciados.

A grande preocupação do comissário Castelino era que os denunciados fugissem, tal como acontecera em Lampaças, onde Manuel Henriques Pereira tinha uma irmã casada com Manuel Almeida Castro. Por isso escrevia para Coimbra, pedindo a prisão de Manuel e Branca e outros mais, servindo-se do exemplo de Quintela:

— Dos penitenciados que saíram neste último auto, naturais do lugar de Quintela, não assiste ali mais do que António Henriques Raba e sua mulher e estes aos dias santos vão às igrejas com seus hábitos umas vezes mais às claras, outras vezes mais cobertos, com mantilha ela e ele mais contente atrás (…) E se a VM lhes parecer que com isso se há-de fazer obra, que seja com muita pressa, que todos os parentes de Manuel Henriques Pereira estão com o pé no estribo (para fugir) e também aviso que esse homem é irmão da mulher de Manuel de Almeida…

Obviamente que por Moncorvo corriam boatos e Manuel e Branca iam tratando em defender-se, pressionando ou tentando cativar testemunhas. E aconteceu mesmo que Francisco Fernandes Preto, depois de vir de Coimbra, se terá dirigido a casa de seus amos a pedir perdão, dizendo que, num momento de raiva, denunciara falsamente a sua ama quando se foi confessar a um frade do convento de S. Francisco e este o obrigara a ir a Coimbra fazer a dita denúncia na inquisição.

Seria? Facto é que, em Abril de 1641, foi recebida na inquisição de Coimbra uma carta, assinada por Manuel e Branca acusando Francisco Fernandes Preto de falsário e de ter induzido as outras criadas a mentir. Pediam, por isso, que, como falsário, fosse preso e condenado às galés.

Na verdade Francisco foi chamado a esclarecer os senhores inquisidores que, ao início de julho de 1641, mandaram prender Branca Coutinho e o marido.

Por 3 anos, Branca Coutinho suportou os horrores da cadeia, sempre negando as práticas judaicas e não denunciando ninguém. Foi posta a tormento, sendo-lhe dados dois tratos espertos, mantendo-se firme. 

Acabou por sair condenada em cárcere e hábito a arbítrio e ao pagamento de 100 cruzados, no auto da fé de 10.7.1644. Contava então 43 anos e, regressada a Moncorvo, não se ficou por ali a remoer mágoas. Com os filhos rumou a Madrid, certamente contando com o apoio dos parentes. Em 1650, juntamente com os dois filhos mais novos, Diogo e Isabel, abalou para Bayonne, França. O filho mais velho, Henrique, permaneceu em Madrid, trabalhando na Casa Montesinhos, no negócio da distribuição do sal.

Em 1660, depois que Fernando Montesinhos e outros membros da família de Manuel Almeida Castro foram processados pela inquisição de Espanha e se foram viver para a Flandres, também o Henrique foi com eles. E para junto deles, em Antuérpia, seguiram de Bayonne, a Branca e a filha Isabel. Esta acabou por casar com seu primo Francisco Lopes de Castro, enquanto o Henrique casou com Isabel de Barrios. Diogo, o filho de Branca, iria antes para Amesterdão onde trabalhou como escrivão de um negociante, regressando a Madrid onde seria também processado pela inquisição deToledo.(3)

Notas:

1 - ANTT, inq. Coimbra, pº 4801, de Branca Coutinho.

2 - IDEM, Desembargo do Paço, leitura de bacharéis, letra M, mç. 18, n.º 13, processo de leitura do bacharel Mateus Sá Pereira. Em sua defesa, Branca Coutinho disse que o bacharel Sá Pereira “lhe é muito suspeito porque, tendo um álamo na sua fazenda, que assombrava a quinta da mãe da ré, vindo o álamo a secar, se persuadiu o contraditado que fora ocasião disso um (escravo) negro de Filipa Henriques, irmã dela ré que o escavacara”.

3 - SCHREIBER, Markus – Marranen in Madrid 1600-1670, Estugarda, Franz Steiner Verlag, 1994, pp. 77 – 78.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães