Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Gaspar Lopes Pereira (Mogadouro, 1642 – Lisboa, 1682)

PUB.

Nasceu por 1642, na vila de Mogadouro, sendo filho primogénito de Francisco Lopes Pereira e sua mulher Maria Dias. (1) Na terra natal se criaria e ali aprendeu a ler e escrever, com o “mestre-escola” João Bernardo.

Andaria pelos 9 anos quando, ao final de fevereiro de 1651, a vila de Mogadouro foi autenticamente tomada de assalto, por um verdadeiro exército de familiares da inquisição, padres e frades e militares requisitados pelo tribunal de Coimbra para prender umas 120 pessoas acusadas de judaísmo, constantes da lista enviada ao comissário António Azevedo da Veiga, reitor da igreja de Sambade, que comandaria as operações. (2) Um dos prisioneiros foi o pai de Gaspar. Imagina-se a impressão que os acontecimentos terão causado na criança, nela deixando indelével marca.

Posto o pai em liberdade no ano seguinte, a família abalou para Castela, e depois de uma breve estadia em Madrid foi assentar casa em Granada, cidade onde vivia já um tio paterno de Gaspar, metido nos negócios do tabaco. Chegaram ali em agosto de 1653.

A partir de então, ele “nunca teve assento nem morada certa” pois a vida de Gaspar Lopes Pereira era “andar sempre nas estradas, com fazendas dos pais” – para usarmos as suas próprias palavras. Entre Portugal e Espanha conhecia todos os caminhos “por neles andar sempre com seus contratos de mercancia”. Especialmente conhecia os caminhos para Mogadouro onde se deslocava com frequência e fazia estâncias de semanas, como atestaram algumas testemunhas. Mais conhecidos ainda eram os caminhos de Lisboa, onde passava meses e vinha sobretudo comprar tabacos, trazendo de Espanha cavalos e tecidos para vender. Na capital do reino hospedava-se na estalagem de Manuel Fernandes, sita ao Beco das Comédias. E tanto o estalajadeiro que o recebeu por mais de 20 anos, como o barbeiro, o confeiteiro e outros que o serviram ou com ele conviveram, o retrataram como “um homem de bom entendimento, de muita indústria e viveza nos negócios”.

Mas não eram só os caminhos de Portugal e Castela que Gaspar conhecia. Não: ele fazia também viagens para a França, a Itália e a Flandres, conhecendo muito bem Roma e Livorno onde contactou com “professores judeus”, assim como a cidade holandesa de Amesterdão, cuja sinagoga frequentou e onde se apresentava como “público profitente da lei de Moisés”, como ele próprio confessou.

Em 16 de Março de 1675, a inquisidores de Valhadolid escreveram para Lisboa dizendo que haviam passado ordem de prisão a Gaspar Lopes Pereira, que não foi encontrado. E constando que se encontrava em Lisboa, requereram a sua prisão, enviando cópia das denúncias feitas contra ele por: Ana de Cáceres; Francisco Garcia Torres e João de Torres, em 1664, 1666 e 1668, respetivamente.

Foi encontrado na estalagem do Beco das Comédias e preso, no dia 8 de Abril de 1675. Para além dos objetos e mercadorias apreendidas e sequestradas, tinha consigo 47 moedas de ouro, que valiam 206 mil e 800 réis, o suficiente para comprar uma boa casa.

Antes de prosseguir, voltemos atrás, ao verão de 1673, em que os cristãos-novos portugueses, vinham negociando em Roma um perdão geral para os prisioneiros da inquisição e uma alteração dos métodos praticados. Em Roma as negociações eram conduzidas pelo padre jesuíta Francisco de Azevedo e em Lisboa um dos 3 representantes da “nação hebreia” era António Rodrigues Marques, da poderosa família dos Mogadouro. (3) As negociações encontravam-se em bom ponto e era necessário levar documentação importante. E quem melhor do que Gaspar Lopes Pereira, para levar o correio a Roma?

Partiu a 27 de agosto, obrigando-se a fazer a viagem em 20 dias, como costumava. Aconteceu porém que ao atravessar a Espanha, adoeceu com “las calmas” que faziam. E só ao fim de 43 dias é que a documentação chegou às mãos do padre Francisco de Azevedo, que assim tinha visto gorada a assinatura do perdão geral pelo papa. (4) E o padre Francisco de Azevedo acusou Gaspar de se ter atrasado propositadamente e que estaria pago pelos inquisidores. E tão zangado ficaria que, além dos insultos, até puxaram de facas.

Fiquemos agora com Gaspar Lopes Pereira, metido nas masmorras da inquisição de Lisboa. (5) Ao cabo de meio ano, decidiu confessar que judaizara durante 10 anos e que fora catequizado por Diogo Rodrigues do Vale, viúvo de sua tia Maria Lopes. Por dois anos prosseguiu o seu processo, com os inquisidores a dizer que as suas confissões eram diminutas e que contasse toda a verdade, para merecer perdão e misericórdia.

Entretanto, a luta diplomática em Roma continuava e foi suspenso, pelo papa, o despacho de processos pela inquisição portuguesa. Em resposta, o rei D. Pedro II, apoiado pela máquina inquisitorial que dominava por completo a hierarquia da igreja, mandou fechar à chave as casas da inquisição. Pobres dos prisioneiros! Se antes a vida era difícil, agora tornava-se dramática, com o agravamento das condições de salubridade e alimentação.

Só em 1681 a inquisição reabriu e só em 22 de dezembro o processo de Gaspar foi retomado. A solidão e o desespero haviam transformado por completo este homem de “bom entendimento, muita indústria e viveza nos negócios”. Na audiência que então lhe foi concedida, ele revogou as confissões que antes fizera e declarou que fora educado na lei de Moisés desde criança, que sempre fora judeu e que na lei judaica havia de morrer porque só nela encontrava salvação. Muitas sessões tiveram com ele os inquisidores e vários teólogos qualificadores foram chamados para o convencer que a lei verdadeira era a de Cristo. Inútil. Argumentavam que, como fora batizado, era obrigado a ser cristão. Respondia que foi batizado “em tempo que não podia deixar de o ser… e não tem obrigação de seguir preceitos da igreja católica romana que vão contra a lei de Moisés, quando tem esta por mais certa”. 

Continuou irredutível, afirmando que “na lei que Deus dera a Moisés esperava viver e morrer”. Nem sequer vacilou quando lhe ataram as mãos e o levaram para ser queimado no grandioso auto da fé celebrado no Terreiro do Paço em 2 de Maio de 1682, para celebrar o restabelecimento fulgurante da inquisição, no qual foram penitenciados 106 réus, muitos deles trazidos das inquisições de Coimbra e Évora. Daqueles penitenciados, 3 foram condenados à morte como judeus, sendo Gaspar foi um deles. Em mais uma memória enviada para Roma apontando 27 reparos àquele auto da fé, escreveu-se a respeito de Gaspar Lopes Pereira o seguinte:

- (…) E o mesmo Gaspar Lopes, quando o apertavam com razões para o convencer, respondia a tudo por remate: - Sem botica – resposta tão despropositada que parece de homem insensato, e mais desesperado que infiel. E todos os ditos profitentes iam como assombrados e fora de si, com tal aspeto que parecia terem no corpo o diabo, e não falta quem presuma que este lhe apareceu nos cárceres e, ajudando-se das misérias e lástimas em que se achavam, sem remédio para a vida, nem honra, os fez sair em tal desesperação. (6)

Seria o desespero que levou Gaspar Lopes a querer morrer queimado na fogueira? Ou seria mesmo uma profunda convicção interior de que a lei judaica era a verdadeira? Nesse caso, ele deverá ser considerado um mártir do judaísmo e o seu nome inscrito no livro de ouro dos judeus.

Antes de lhe dar a notícia de que ia ser queimado, os inquisidores mandaram um pintor fazer-lhe um retrato, com o seu rosto envolto em chamas, as chamas do inferno. Esse retrato foi enviado para Mogadouro e esteve pendurado na igreja de S. Mamede até se romper, para exemplo do povo cristão.

 

Se, ao pendurar o seu retrato na igreja, os inquisidores intimavam os cristãos de Mogadouro a execrar a sua memória, nós os convidamos hoje a rezar uma belíssima oração que Gaspar ditou para o processo. O papa Francisco e o bispo José Cordeiro haverão de gostar. Rezem connosco:

Perdóname Señor que te he ofendido,

perdona al miserable que te llama,

perdona el desamor que te he tenido,

no me condenes, Señor, a eterna llama.

Vuelve esses tus ojos a mirarme,

suefre el que por amarte se desama,

valga contigo el confesarme,

válgame ante ti llorar mi ofensa.

Pliegote ahora un poco a escucharme

que si tu gracia en esto mi dispensa

y si mi ayudas, Señor, en lo que digo,

servirá el acusarme di ofensa.

Pecador soy, Señor, tu es testigo,

Que a tus ojos divinos no ay negarlo.

 

Notas e Bibliografia:

1-Francisco foi o pai de Beatriz da Costa, nascida fora do casamento em 1644. Gaspar teve um irmão inteiro chamado Manuel de Aguilar, nascido por 1645 e uma irmã chamada Beatriz Pereira, nascida já em Castela.

2- O trabalho não terminava com a prisão dos decretados, antes continuava no arrolamento dos bens dos prisioneiros e venda em hasta pública dos necessário para se fazerem 20 mil réis para despesas de transporte e alimentação, pois tinham de pagar até as cordas e os ferros com que os prendiam e as jornas aos que os conduziam para os cárceres do santo ofício.

3-ANDRADE e GUIMARÃES – A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, ed. Veja, Lisboa, 2009.

4- Nesta ofensiva diplomática contra a inquisição foi destacado o papel do padre António Vieira, que fora preso em Coimbra e do ex-notário da inquisição Pedro Lupina Freire.

5- ANTT, inq. Lisboa. Pº 2744, de Gaspar Lopes Pereira.

6- ANTT, Armário Jesuítico, Segunda caixa, nº 87, Reparos feitos por ocasião do Auto da Fé…

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães