PUB.

O Arquitecto

PUB.

Este jornal trouxe-me a má notícia da morte do arquitecto Manuel Ferreira. Vou-lhe render preito, sentido, dentro das minhas possibilidades, confiado na memória. Assim o consiga. Ele merece-o. Inteiramente.

O carro pintado a amarelo periquito estava estacionado na reentrância em frente à barbearia do benquisto Sr. César Barata. Em redor do automóvel homens gesticulavam e vozeavam gargalhadas, palavras vernáculas, exclamações de espanto. Interessado, aproximei-me, de imediato percebi o espanto estampado nos rostos e no soltar de línguas. O popó ostentava faixa roxa paixão no lado esquerdo, de para-choques a para-choques.

Na porta da barbearia, o Sr. César de tesoura enfiada no polegar e no indicador da mão direita e o pente na mão esquerda esbracejava ao ritmo das piadas em catadupa vindas da boca do Sr. Zé Fernandes, de bigode oxigenado, sempre a rir. Depressa se formou um magote, o Arquitecto continuava sorridente, sereno, na Mulher, bonita Senhora luziam os olhos. De alegria, nunca de receio.

O rosário de gente ganhava contas, um graduado e um guarda da PSP aproximaram-se em passo pachorrento, queriam saber a causa do ajuntamento, tramaram-se. O sagaz Sr. Zé Fernandes incessantemente incentivado pelo Sr. Álvaro do Flórida, e o Sr. Cândido Casão, tratou de chamar a atenção dos cívicos apontando a faixa perversa, pecaminosa, a infringir, segundo ele a lei do ordenamento das pinturas dos automóveis. Na dele a falta não podia passar em claro. E, clamava contra o escândalo, o abuso, o desajuste. E, pedia insistentemente, que os agentes de autoridade verificassem os documentos, aquela alteração no semblante do carro não podia ter sido feita, estava-se ante transgressão da grossa. Ele transgredia porque era professor no Liceu, pintor e rico, concluiu o amigo, também dado às caçadas e patuscadas onde entrava o Sr. Júlio Lopes, todo-poderoso gerente do BNU, paredes meias com a Barbearia, quase de certeza a ouvir o alarido.

O subchefe da Polícia dirigiu-se ao suposto infractor e pediu-lhe os documentos do álacre carro. Porquê? Perguntou cerimonioso, em tom rumoroso, o Arquitecto. O graduado respondeu polidamente, ele sabia quão maliciosos cavalheiros tinha à sua frente, além de apreciarem pregar partidas uns aos outros detinham conhecimentos, logo influência social.

O Arquitecto encenou um acto digno da comédia del arte (hoje sei que género teatral é), acabado de se pentear, de bigode aparado estilo Errol Flynn, colarinho da camisa aberto, calça justa e botas de tacão nos pés, avança até ficar rente ao veículo transgressor, exalta-lhe as virtudes, explica o seu funcionamento, detalha as razões de ter escolhido a vivaz cor e o sentimento da faixa. Sempre num tom entre o alegre e o sisudo.

Sendo rapazola habituado, por óbvias razões, a não levantar a voz aos polícias, ouvi-lo falar daquela forma provocou-me surpresa espantada.

A fluência incisiva do Arquitecto durou alguns minutos, a prosódia artística não aquietou os risonhos contraditores as quais se juntaram o irrequieto Sr. Queiroz, e o Sr. Liberal, a intimá-lo a exibir os documentos. Os cívicos emaranhados entre o receio e o desejo de serem façanhudos preferiram fechar os carões e o subchefe reclamou ver o livrete. Recebeu-o ante o olhar perscrutador dos mais chegados. Sornamente o abriu, folheou-o repetidamente. Fechou-o e entregou-o sem proferir uma palavra. Vamos embora, disse ao polícia. Desandaram silenciosos.

No livrete estava assinalada a barra pomo da inusitada cena na qual o Arquitecto a esticou demonstrando (agora o julgo) talento na sua concepção e representação bem intonada e entonada escorado na humorada malícia sem maldade dos destros amigos companheiros e participantes noutros hilariantes actos.

Flamante chamou a Mulher, galante abriu-lhe a porta do lado direito, rodeou a traseira do carro, sentou-se ao volante e ligou o motor, acenou-nos e lentamente abandonou o espaço da representação no mo meio de toda a espécie de comentários. Tão nítida impressão me deixou que ao longo dos anos quando nos encontrávamos ao mínimo pretexto o levava a evoca-la. Prontamente anuía ao pedido, por isso fiquei a saber do facto de durante algum tempo volta que não volta a autoridade mandava-o parar, lesto estendia os documentos, sempre poupava tempo. Uma das repetições do acontecido foi acompanhada de comentários tecidos pelo seu grande amigo Manuel Reis. Foi um começo, um ponto de partida para jubilosos minutos de garrida alegria.

 

PS. À família, ao João, à Emília, sentidos pesares.

Armando Fernandes