Pátrias — Sobre Ars Vivendi Ars Moriendi, de Francisco Niebro/Amadeu Ferreira

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"Pátrias” dá título a um poema tripartido integrante de Ars Vivendi Ars Moriendi, último livro de poemas de Francisco Niebro, pseudónimo de Amadeu Ferreira, de cuja vasta obra cultural e literária se salienta a ação preponderante na defesa da sua língua de berço, o mirandês. É um livro escrito por Francisco Niebro naturalmente em mirandês (segunda língua oficial de Portugal), como sempre que o autor fala, ou canta, pela voz deste criador poético, mas acompanhado pela competente tradução para português feita por António Cangueiro e Rogério Rodrigues. Contudo, avançamos desde já que todas as citações ao longo deste texto serão retiradas do texto original, em mirandês, porque é aí que o génio poético do autor mais se consuma, na íntima e pura captação do espírito de uma língua que dá forma e corpo a esta poesia.

Tomamos do poema referido, para título deste texto, esta ideia plural de pátria, pois de várias micro-pátrias se faz verdadeiramente uma pátria: espaço heterogéneo, sincrético e compósito; espaço íntimo, social e paisagístico, e por isso infinitamente mais rico do que a ideia totalizante de um todo indistinto. Pátria viva e vivenciada, pátria de carne e espírito, de fraternidade e cumplicidade: “– pátria, auga / que me mana de pessonas / de que guardo l retrato al fondo ls uolhos, / nun bénen ne ls lhibros de stória” (p. 151). Esta ideia plural de pátria está assim associada à ideia, nele diversa e plural, de línguas, pois que de um verdadeiro bilingue se trata, ainda que, afectivamente, não estranhemos que no coração do poeta, e até do falante, o mirandês ocupe a posição dianteira, ligeiramente mais encostada à emoção. Também porque a posição que ele ocupa no âmago da sua língua, a cimeira, a de vanguarda, faça com que todo o seu esforço se reconduza para a preservação deste património nacional que não está imune à ameaça de desaparecimento, como qualquer outra língua, de resto. Surgindo o mirandês, como todas as línguas, da pluralidade babélica, dessa fragmentação de uma língua global que se queria perfeita, é também aqui que o autor, na sua prática poética, procura essa espécie de regresso a um estado edénico inicial. O mirandês e o Planalto Mirandês funcionam para o poeta como uma espécie de retorno a uma linguagem edénica e adámica, mas também como uma plena fixação, um recentramento, um definitivo enraizamento do ser, no sentido teorizado por Gilles Deleuze; também um reencontro, de gesto em gesto, com uma terra desde sempre prometida, mas que as circunstâncias de uma vida errante a foram sucessivamente adiando, de exílio em exílio: “géstios tan pequeinhos que mal se fázen dar de cuonta, / risas que nun chégan a abrir flor, / raízes adonde s’amónan lúrias de silenço, / calor que bem cun sonidos de que palavras fazírun sues alas” (p. 151). E uma pátria requer uma língua que a diga, que a fale, que a cante, que dê voz e identidade aos que dessa pátria fazem parte, por exígua que seja a terra, por escassas que sejam as gentes: “ua lhéngua que quaije naide fala i mui poucos sáben / que eisiste, nien por esso deixa de ser um pedamiego / de l mundo, pequeinho ye berdade, / mas son siempre pequeinhas las brechas / por adonde ampéçan ls grandes sbarrulhos” (p. 147).

A língua é para Francisco Niebro inseparável da(s) pátria(s), como exuberantemente o afirma no conhecido, e muito traduzido, poema “dues lhénguas”, uma outra forma dessa boca bilingue de que Ruy Belo se fez eco. Línguas que não germinaram no falante da mesma maneira, deve dizer-se: “ua lhéngua naciu-me, comi-la an merendas buí-la na fuonte i rigueiros / outra ye çpoijo dua guerra de muitas batalhas”. Deve ter-se em conta aqui o carácter de ilha cultural do mirandês no contexto mais vasto do português e a própria relação geográfica e cultural do Planalto Mirandês no espaço do país. Esta problemática constitui a questão de uma vida para este autor, que foi não só um autor de pensamento e criação, mas igualmente um homem de ação, um militante de uma causa para ele decisiva: a autonomização e a preservação de uma língua e um modo de estar no mundo que lhe está naturalmente associado, porque, além do mais, é essa a consequência imediata da existência de uma língua: modelar e redesenhar um mundo.

Osvaldo Manuel Silvestre, analisando essa obra-prima que é o poema de Jorge de Sena “Em Creta, com o Minotauro”, acentua o carácter “extraterritorial” da grande literatura moderna: de Pound a Eliot, de Joyce a Pessoa(1). Nesta conformidade, podemos dizer que Francisco Niebro se afasta, não obstante o seu conhecimento do mundo e dos homens, de vasta abrangência cosmopolita, desse desenraizamento moderno para neo-romanticamente procurara as raízes mais fundas de uma cultura, de uma tradição, de uma antropologia, de uma etnologia, de uma identidade que resiste, de uma língua plena enquanto factor agregador e homogeneizador das restantes componentes. Contra a uniformização entediante e a massificação generalizada, opõe o poeta uma forma única de expressão, uma individualização, uma marca historicista, memorialista, libertária; a marca de uma pequena mas nítida civilização.

A escrita levada a cabo por Amadeu Ferreira em todos os géneros e níveis tem sempre como objetivo central captar o génio da sua língua, mas também uniformizar as variedades dessa língua, que embora com um reduzido número de falantes é suficientemente rica para integrar nela uma diversidade de falares e dialectos que nós próprios críamos ser fundamentalmente três (o sendinês, o raiano e o mirandês propriamente dito, que lança as suas raízes a partir de Duas Igrejas), mas que o profundo conhecedor da realidade geo e sócio-linguística que foi Amadeu Ferreira demonstrou serem bastante mais. De modo que a escrita, a escrita em todos os géneros literários, híbridos e não literários, funciona no autor também como factor de estabilização de um dizer que, não perdendo a riqueza da diversidade interna da sua língua, possa enfrentar o futuro com outros fundamentos.

Há quase sempre um autor que, pela forma como se apossa do génio da sua língua, carrega sobre si essa missão sagrada de reunir, integrar, dar forma e corpo aos fragmentos mais próximos ou dispersos que subjazem a uma língua:(2) Camões em relação ao português, Dante em relação ao italiano, Shakespeare em relação ao inglês, Goethe em relação ao alemão, Cervantes em relação ao espanhol. A Amadeu Ferreira coube, obviamente no seu espaço próprio e no contexto da sua língua, exercer este papel diríamos refundador do mirandês. Se esta língua é milenar no plano da comunicação oral, a sua manifestação escrita é muito recente, e após algumas experiências soltas, não sistematizadas, iniciou, efectivamente pela acção liderante de Amadeu Ferreira, um processo decisivo ao nível das práticas escritas em todos os planos da linguagem. E daqui decorre uma vertente central da escrita poética de Francisco Niebro: de facto, o saber com que se apossa das potencialidades comunicativas da sua língua faz com que estabeleça, superiormente, nos seus poemas e narrativas um processo de transição entre a antiquíssima língua oral e a recente língua escrita, o que leva o leitor a senti-la como algo natural, simples, dúctil, não forçado. A beleza da poesia de Francisco Niebro, também neste livro, passa em grande parte por essa capacidade de lhe instilar nos veios dos seus versos um suave tom oral que lhes dá vida, os tornam vivos e vívidos, de uma leveza, uma naturalidade e uma significância expressiva que não têm paralelo nos escritores desta língua e os tornam assim em objetos estéticos e artísticos de altíssima qualidade. Lemos os seus poemas em mirandês como se ouvíssemos uma voz imemorial: pura, límpida, encantatória, que vai expondo um pensamento, uma experiência, uma forma de vida, uma realidade quotidiana executada por um pequeno povo, num mundo longínquo, que o movimento tecnológico imparável ameaça submergir.

Vejamos alguns exemplos desta escrita oralizante, ou desta oralidade meticulosamente transposta para o texto escrito, neste caso para a poesia. A mágica atmosfera criada pelo poeta passa muito por aqui: “quedaba, de you nino, horas a ber las andorinas / a traier barro para fazer l niu i a arredundá-lo cula peitua; / apuis, ls andorinicos de boca abierta a spera de çubiaco / e eilhas nun bolo sien paraige a sticar la tarde, // a la nuitica, talbeç cansadas / de tanta strada de lhuç que chiçcórun cun sues alas, / ponien-se na carreira nun filo a chamar la nuite cun su prumaige negra” (p. 33). Ou neste outro poema onde o labor poético se confunde com o labor agrícola e o espaço da folha em branco com a terra a ser preparada para a produção: “ye agora l tiempo de mirar pula huorta, / ls sucos ancarreirados, poema de tierra i berde: / albantas te cedo pa le abrir la puorta al sol / i armar le l trabiado a la paixarada: // - yá scachou la frol l’oulibeirica, / San Marcos deixou quedar las brebas, mas inda me duolen / dues raleiras nesta malina de poner arbles para apuis de mi” (p. 43).

A sua obra quer-se e assume-se então como um documento durável, que enfrente o tempo com a perene serenidade de uma oliveira: “hei de poner ua oulibeira ne l huorto de casa i pedir-le al mundo que nun le faga mal: / mil anhos apuis, talbeç mais, / inda ls mius uolhos s’assomaran a la jinela de sues angúrrias / i a cada outonho han de passar por negras azeitunas; // culas oulibeiras daprendo a fazer caçuada de l tiempo, / mas la licion ye mui custosa de saber” (p. 73). Ou então, na senda do seu mestre Horácio, o poeta intenta um testamento que fixe a posteridade e que tenha por base o material indócil das palavras sobre um pergaminho, como numa bela alegoria é expresso no poema sete da série “Ls Trabalhos I Ls Diuses”, referente ao testamento de D. Fonso Mendes de Bornes, que transcrevemos na totalidade: “an 25 de febreiro de 1257, / D. Fonso Mendes de Bornes dou / un tércio de ls sous bienes para / ser anterrado ne l Mosteiro de Moreiruola; // ne l berano de 2011, fui me / a saber de l jazigo de / D. Fonso Mendes de Bornes / ne l Mosteiro de Moreiruola: // nien ua piedra quedou, solo / un sbarrulho de manos al cielo / reza, nien raça de / D. Fonso Mendes de Bornes, // puso sue sprança na dureç de la piedra, / sue fé na grandura dun mosteiro, mas / D. Fonso Mendes de Bornes yá solo / eisiste nun andeble i zlido pergamino, // andube pul cascalho de l sbarrullo / i sues beciosas silbeiras, pisei / la tierra i mirában me las seinhas de / ls pedreiros: era quanto quedaba de // l que un die mirou l jazigo de / D. Fonso Mendes de Bornes”. (p. 17).

Regressando propriamente ao livro, de onde na verdade nunca saímos, porque de nenhum dos seus livros sai o autor da sua luta pela implantação decisiva da sua língua, também pela sua arte poética é necessário usufruir o instante: precioso, movente e irrepetível, e para isso vai expondo poema a poema um modo de habitar a terra, de viajar no mundo, de ocupar os dias. É uma filosofia que enraíza nesse carpe diem horaciano, pletórica de ensinamentos estóicos e epicuristas, onde a importância das pequenas coisas, da forma como elas são percepcionadas e vivenciadas pelo sujeito poético, frequentemente em errância e deambulação, assumem um papel relevante quando não decisivo nesta sua arte de viver: “bai daprendendo l’einutelidade de las cousas amportantes, debagarico i de modo natural cumo l aire que passa”, (p. 131), ou em “guarda ls pequeinhos géstios, / ls sfergantes quaije sien tiempo, / ls sítios de que solo te quedou un zlido retrato na mimória: // ls cachicos de ser feliç puoden durar siempre na lhembráncia, / inda que nun pássen dun delor: / tem-los siempre a la mano, cumo quien tem de regar la huorta, / pa rejistir a la calor i atamar las fames de ti.” (p. 129). Uma errância no espaço, mas sobretudo uma errância no tempo; uma agudíssima percepção do tempo que passa: efémero, lábil, contingente, mas lugar único onde a beleza e o sublime se instalam e só aí podem instantânea e eternamente ser colhidos. Espaço percorrido, captado, percepcionado e integrado no próprio espaço interior do sujeito, ou o seu próprio espaço interior refletido no mundo circundante. Pode tratar-se do espaço rural das suas raízes ou o espaço citadino lisboeta que percorre. No primeiro caso, temos o tom dorido de um mundo que finda: “agora, na rue, yá solo mora ua pessona / i las casas arríman se a serbíren de caiato uas a las outras; / las paredes de piedra suolta súdan silenço, / cansado del mesmo; / hai puortas de que yá naide sabe la chabe, / ou lhembra la redadeira beç que fúrun abiertas, todo fui deixando de ser ourgente;” (p. 9). Ou, como se disse, a deambulação por Lisboa onde o intertexto de Cesário perpassa: “solo silenço quedou na nuite / de las puortas cerradas: / pul carreiron / de las rues, retómban fados / yá calhados: / a la falta de guitarras, / ressona l aire nas cuordas de ls stendideiros” (p. 33) […]: dá-me esta Lisboua / absurdos deseios de sufrir: / stou a passar na Stefánia, al lhado de / l Jardin Cesário Verde, i dá-me la risa” (p. 35).

Por vezes, o poeta enfrenta a sua condição mortal com uma ironia amarga e corrosiva, onde a crítica ao aparato social da morte é incisivamente causticado: “ne ls semitérios hai jazidos que relhúzen, guapos, i hai / foias rasas cumo lhombos de tierra” (p. 9). Daqui decorre igualmente o carácter sentencioso, aforístico de que frequentemente se revestem os seus versos. No fundo, é esta dolorida consciência do efémero que desencadeia a sua fala poética desde o primeiro verso, como podemos ver na forma como abre o livro com o poema significativamente intitulado “O Desespero de Orfeu: “Zde siempre tocou Ourfeu la moda de la muorte na sue lira / natural cumo pássan ls dies, triste cumo un mirar / que, nun sfergante, se bai i nunca buolbe” (p. 6). Esta música órfica é a música da sua poesia e a música da sua língua; esse “bruissemente de la langue” de que nos fala Roland Barthes(3) para traduzir precisamente o rumor da língua mais pura que, por ser viva, não pode abdicar da essencial impureza, esse efeito do real, que define o humano e a sua arte impura e o separa da obsidiante perfeição dos deuses. Daí que essa melodia órfica na voz humana se revista da condição precária do ser no mundo, habitando-o de leve através da sua fala mais perfeita, a poesia. Suster a vida através do fio contingente das palavras, procurá-la sem remédio orientado pelo fio da memória, eis também a missão frágil e precária do poeta; as palavras contra o esquecimento, uma represa ameaçando ceder à força das correntes do Letes, que nem os deuses poupam: “L Lhetes ye agora mais abogado a mundiadas, / que nun páran de crecer i de rugir. I la moda / nun se calha, nun zléntan sous sonidos nas cuordas / que ls delores stícan até al anfenito. / Ls próprios diuses yá muitá feridos de muorte” (p. 6). Um paganismo perpassado de um panteísmo estreme vibra nesta invocação da morte enquanto espécie de eterno retorno, regresso às origens pela mão da língua original: “Un die, / – quando será’ – / hei de tornar / a estas peinhas, estas faias, / ala de aire feito, / siléncio lhargo / lhibartado yá de palabras, / suolto de angúrrias / que l tiempo arressaiou na piel de la tierra: // starei por ende, calhado / antre flor de xara i belhotrico de niebro, / até que sperte l Riu / cun sue corriente i sous cachones, / muito alhá las oulibeiras” (p. 79).

Uma dialogia sentenciosa de raiz pagã e panteísta aflora como se disse a cada passo, a cada poema. O poeta parece recusar o ensimesmamento, o fechamento numa interioridade radical, e abre-se a um “tu”, a um próximo que pode eventualmente ser o seu próprio “eu” distanciado, visto à transparência da razão: “nun cerres ls uolhos a las bistas / pochas, nun scondas adonde / l mundo quedou guiro, que nunca / nada de buono te trouxo essa manha / de te cansares a oupir pedamiegos / adonde colgar paraísos birtuales” (p. 117).

Dessa abertura ao mundo, esse “tu” funciona como espécie de alter-ego, mas também como o próximo com quem dialoga e o integra fraternalmente numa esfera humana de afectos e cumplicidades. Daí que a poesia de Francisco Niebro, não raro, assuma uma evidente função crítica, onde a instância testemunhal e o comprometimento humano são amiúde convocados. Cidadão e poeta confluem neste engagement com o semelhante, com o mundo envolvente, expressando-o esteticamente, tomando-o como referência, desencadeando, em simultâneo, a função crítica e a função estética na consecução do seu poema.

O regresso, mesmo o definitivo, é sempre à terra íntima, chão exíguo dessa outra pátria à medida do homem: terra-mater como nenhuma outra. Se bem que breve, nada lhe falta do que a uma pátria se exige: um povo, uma língua, uma história, uma cultura, uma economia de subsistência, um nítido recorte geográfico e humano. Existirá sem tempo, ainda que anonimamente: “hai quien nien sequiera saba que esta tierra eisista, nun conheça l modo de le falar, i muito menos las leis de le tener respeito, que la tierra tem ua denidade mui aparecida a la de las pessonas a quien le dá de quemer, essa denidade que crece pula bida de cada die cumo ua rodriga houmilde” (p. 126).

 

Notas:

1 - Cf., Osvaldo Manuel Silvestre, “Jorge de Sena, em Creta com o Minotauro”, in Sentido que a vida faz – Estudos para Óscar Lopes, Porto, Campo das Letras, pp. 461 – 463, 1997.

2 - Cf. Umberto Eco, Sobre Literatura, Barcelona, Debolsillo, pp. 96 – 101. 

3 - Cf. Roland Barthes, Le Bruissement de la Langue – essais critiques IV, Paris, Éditions du Seuil, 1984, pp. 99 – 102.

Fernando de Castro Branco