Portugal e os ingleses

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Bons dias vos dê Deus! Saúdo-vos com esta expressão que hoje, ao contrário de outros tempos, apenas sobrevive através dos que falam mirandês, ao que vos ouço retorquir “Deus vos dê bons dias!” Espero que andem com a saúde e o ânimo tão bem dispostos como uma brisa ao fim da tarde poente, sentida desde um banco de pedra à porta de casa como quem fecha mais um dia e contempla o anunciar do dia seguinte. Recentemente, tenho andado um pouco ocupado, a ultimar outras escritas um pouco mais académicas, de maneira que tenho andado mais afastado, mas não esquecido, da vossa inspiradora companhia.

Como eu costumo vir aqui de quando em vez, sou amiúde um comentador da desatualidade porque os meus tópicos estão já fora de moda num tempo em que os temas se sucedem tão rápido como se obsoletam, a grande e fugaz velocidade. É o carrossel da opinião do qual o combustível é a debitação incessante, o ruído das matracas, o bater das teclas do computador, o martelar dos debates, o macerar dos posts e podcats. Uma coisa cheia de industriais e ruidosas onomatopeias (traque, traque, traque, pum, pum, pum) à guisa de um Álvaro de Campos que hoje se perderia na enxurrada de chorrilhos e se excitaria com o progresso, as ânsias e ansiedades do savoir dire português parolamente polvilhado de englishcismos.

Neste momento vejo o país com dois tipos de portugueses. E não falo dos que que não acreditam que o Fernando Santos ainda tenha alguma coisa para dar contra os que creem na suas fortes capacidades de orar e rogar para que a divina providência nos coloque só “mijas nas escadas” pela frente (e faça descer mais um Messias para chutar à baliza na hora de um hipotético juízo final). Portugal faz-me lembrar cada vez mais a música do Sérgio Godinho, “não me olhes só da bancada lateral, desce-me essa escada e vem deitar-te na grama”, um dos amantes está no campo a dar o litro e o outro na bancada, um no palco sobre o calor das luzes e outro sentado na audiência, “não me olhes só dessa frisa lateral, desce pela cortina e acompanha-me em cena”. Há os que fazem e os que esperam que as coisas se façam para poderem fazer o seu trabalho e pôr mãos à obra no seu mester de fino e constante traque, traque, traque, noite e dia a burilar a crítica e a simples opinião. E como no Espetáculo de SG, os passivos, os assistidores, são muitos mais.

Estar confortavelmente na bancada a produzir doutas larachas sobre o que os outros fazem é o nosso país. Resumida, a democracia são uns no poleiro e outros a comentar desde a bancada parlamentar a fim de ver se conseguem lá chegar, e assim trocativamente. Os humoristas fazem cada vez menos humor, a maioria converteu-se ao massivo comentário para massas, mais e menos humorístico, activistas internéticos. Temos opinadores-mores que ninguém sabe de donde vieram, quantos padrinhos navegaram para aqui chegar, mas agora são especializada referência do tudo e mais alguma coisa. Ex-profissionais sem especial jeito para a profissão que encontraram redenção no conforto da bancada do comentário. O mais noticiado deputado do país chegou à Assembleia à custa de comentar o Benfica. Temos um presidente-comentador que enquanto jogador político foi assim-assim, mas uma vez na bancada, apurou o comentário até ao ponto de rebuçado, para incontestável se isolar na chegada à meta, e assim continua segurando as pontas do país através do domínio da bela e diplomática arte de tudo bem comentar. E outros se perfilam na mesma pista como aviões a aguardar autorização da torre de controlo para poder levantar voo. Nós portugueses gostamos especialmente do comentador porteira de bairro, las concierges du Portugal, além da opinião sabem sempre de fonte muito segura, fazem notícia, trazem- -nas em primeira mão, já sabem se são menino ou menina antes de nós sequer desconfiarmos da gravidez. Agora não há público nas bancadas num país que é toda uma bancada apinhada de público. Das antigas, sem cadeiras, daquelas em que o pessoal se ia apertando sentado no cimento e havia sempre lugar para mais um espectador assistir. Só os ingleses. Só os ingleses podem alapar os rabos nas nossas bancadas. É deplorável, é de causar vergonha alheia, a nossa falta de amor próprio, o espelho da nossa pequenez, sempre tão acima de tudo preocupados com os ingleses, mesmo no meio de virais mortandades. Mas eles podem, eles ganharam o direito histórico de nos usar, de nos despojar. Se calhar até nem nos pediram nada, nós é que estamos sempre a precisar de uma ajudinha. Sem os ingleses dificilmente haveria Portugal. Pelo menos, em 1383-85, na Restauração, nas Invasões Francesas, eles fizeram várias vezes com que Portugal não desacontecesse. Creio que devemos este país à teimosia d’el Rei Afonso I e à pontualidade dos ingleses em nos dar uma mãozinha nas horas H’s. São favores que pagamos para a vida e pagamo-los com o corpo que é tudo o que temos para dar. Por isso eles que nos usem e abusem, que ultimatem o nosso corpo de vencida prostituta, de alma estripada e olhar perdido nas bazucas de notas de libras que eles deixam espalhadas pela mesinha de cabeceira, desistidos há muito que estamos de alguma vez granjearmos amor, respeito, sequer um sorriso, ou o mais ténue sinal de afeto ou cumplicidade...

Nestas linhas torno-me um comentador da desatualidade, mais um cidadão passivo, um opinador, um indivíduo que aqui deixou uma hora da vida a verbear, sem produzir, sem nada ganhar ou acrescentar, pensando, talvez, que até disse alguma coisa de jeito. É isto Portugal e, ao fim ao cabo, tudo isto é ser-se suave e futilmente português.

Manuel Pires