Requiem por uma greve de contornos pouco claros

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Greve cirúrgica, assim lhe chamaram. Foram buscar à terminologia castrense o classificativo. Todos nos lembramos dos “ataques cirúrgicos” no Iraque e nos Balcãs. E esta greve era duplamente cirúrgica: 1.º porque assentava sobretudo na greve dos enfermeiros do bloco operatório(das cirurgias); 2.º porque o alvo da greve tinha sido escolhido “cirurgicamente”, ou seja, onde “dói” mais. Por isso o pré-aviso de greve não abrangia o País mas tão só 5 dos seus maiores Centros Hospitalares. O modelo da greve foi assim pensado para “criar constrangimentos económicos ao Estado” e teve sucesso pois em 4 dos 5 Centros o impacto da greve foi de 12 milhões de euros. Só no S. João foi de 5 milhões. Para este sucesso muito contribuíram os fundos, recolhidos em plataforma digital, para ressarcir, SÓ, os enfermeiros do Bloco Operatório. Estes, sem qualquer prejuízo pelo facto de fazerem greve estariam assim, indefinidamente, enquanto o sindicato quisesse. Se até então o grau de justeza das greves se media pelo grau de adesão das respectivas classes, para esta greve o sucesso assentava no número de cirurgias adiadas, os tais “constrangimentos” conseguidos à custa do sofrimento de terceiros pondo-lhe em causa aquilo que eles têm de mais sagrado: a saúde. Por isso é que interessava que os enfermeiros do Bloco não tivessem prejuízos com a greve a ponto de lhe pagarem o dia da falta com o dinheiro do tal fundo. Lá que foi bem estudado, foi, na parte da estratégia mas já não direi outro tanto no que diz respeito à ética e à moral. Os enfermeiros fizeram o seu juramento de Hipócrates. Lamentavelmente.

Mas fica um ensinamento para memória futura. Que as greves deveriam ter um mínimo de adesão da classe para serem consideradas legítimas. Sem esse mínimo, as faltas não teriam a cobertura que a Lei actual lhes dá. A greve é demasiado importante e séria para poder ser manipulada por chicos-espertos. Imagine-se este cenário: os sindicatos dos trabalhadores tributários fazem um pré-aviso de greve sem termo, isto é, por tempo indeterminado. Entretanto fazem saber, nos bastidores, que é para fazerem greve, SÓ, os tesoureiros (greve cirúrgica) e que esses não terão qualquer prejuízo pois serão ressarcidos por um fundo criado pelos próprios colegas. Como os tesoureiros são uma pequena minoria no conjunto dos trabalhadores tributários isto é fácil de conseguir. Os “constrangimentos” que daí viriam são fáceis de imaginar. Ficaria, assim, o País dependurado nos tesoureiros da Fazenda Pública independentemente do grau de adesão à greve do grosso da classe pois esses nem fariam greve.

Do caderno reivindicativo dos enfermeiros algumas coisas foram conseguidas outras não mas duas houve que provocaram a intransigência do Governo: uma foi o aumento de 400 euros na remuneração no início da carreira (de 1200 para 1600); outra foi a diminuição da idade mínima para a reforma. 57 anos, defendem, contra os 66 e 5 meses actuais.

Em relação ao aumento de 400 euros só posso dizer que a pretensão deixa qualquer um boquiaberto. Um aumento de 33% quando ninguém é aumentado? Um aumento que deixaria para trás todos os técnicos superiores da Função Pública (licenciados), porquê? Um aumento que tornaria o vencimento do Enfermeiro superior ao do Médico? Não me parece razoável mas uma delegada sindical instada a justificar esta pretensão do estatuto de “primus inter pares” não descartou essa hipótese e argumentou que a importância do Enfermeiro em nada é inferior à do Médico. Bom, o figurino do Acto Médico não mudou assim tanto. E ainda nos lembramos do Hospital velho onde o acto médico era praticado por médico com a ajuda de uma “Irmã” da Misericórdia. Aí víamos o médico exibindo os conhecimentos na elaboração das hipóteses; víamos a sua aflição na escolha da opção; víamos a sua angústia perante a possibilidade de erro; por fim víamo-lo intervir, um acto exclusivo da sua classe. Isto tudo perante a “Irmã” atenta, prestável e ansiosa por ser solicitada. E víamos, também, entre estas duas prestações um abismo qualitativo diferenciador. À Senhora enfermeira, delegada sindical, o que lhe sobra em jactância falta-lhe em senso comum.

O outro desiderato, de baixar a idade da reforma para os 57 anos, prende-se com a alegação de ser a profissão de enfermeiro uma profissão de desgaste rápido. Não sei a que desgaste se referem: se físico, se psíquico. Atleta de alta competição, controlador aéreo, piloto, bailarino são profissões de desgaste rápido, por razões físicas, e a gente entende porquê. Já não consigo irmanar os enfermeiros com estes profissionais no merecimento da benesse social. Quanto ao desgaste psíquico é verdade que ele incide mais nas profissões onde os trabalhadores têm um contacto directo com o público. Mas o público dos enfermeiros, os doentes, são um público cordato, obediente que cumprem sem pestanejar tudo que lhes é solicitado mas o mesmo já se não verifica nos públicos imprevisíveis dos taxistas, dos tributários executores de penhoras, dos guardas prisionais e sobretudo, sobretudo dos professores. Que razões, então, para os enfermeiros terem tratamento de excepção?

Mas não se pode falar desta greve sem falar dessa figura seráfica e sinistra que é a Bastonária da Ordem dos Enfermeiros. Ela, que em tom intimidatório, não descartou a hipótese de, nesta greve, poder haver “efeitos colaterais” assustadores. Mas ainda antes de falar da Bastonária quero contestar a existência da Ordem dos Enfermeiros. Assim: diz o Conselho Nacional das Ordens Profissionais que “ As ordens Profissionais são criadas com vista à defesa e à salvaguarda do interesse público e dos direitos fundamentais dos cidadãos e por outro lado a autorregulação de profissões cujo exercício exige independência técnica”. Ora aos enfermeiros está vedado o acto médico, trabalham sempre sob tutela, fazem o que lhes mandam fazer. Não vejo, pois, onde possa estar a independência técnica. As Ordens foram criadas para regular a actividade dos profissionais liberais. (Pelas mesmas razões contesto também a existência da Ordem dos Professores). Não compreendo a existência da Ordem dos Enfermeiros, no entanto, uma vez que existe podiam ao menos respeitar os fundamentos da criação de qualquer Ordem que são, como se lê em cima, “…com vista à defesa e à salvaguarda do interesse público e dos direitos fundamentais dos cidadãos…”. Foi, mesmo, o que se viu! Além disso vimos a Sr.ª Bastonária tomar a liderança do processo reivindicativo tutelando, até, reuniões de vários Sindicatos. Pois o Conselho das Ordens diz que (as Ordens) “Apenas podem ser constituídas para satisfação de necessidades específicas estando expressamente proibido o exercício de funções próprias das associações sindicais”. Daqui resulta que Ana Rita Cavaco não sabe o que é uma Ordem mas deslumbrada com o facto de ser Bastonária faz “tábua rasa” de uma série de valores, até do comedimento. “O que o berço não deu, Coimbra não dá”. Ela que é assessora do Dr. Rui Rio para a área da saúde, já disse que a liderança deste era um desastre, penso que por não apoiar inteiramente as reivindicações dos enfermeiros. Só lhe fica bem, não é? Espero que Rui Rio tenha presente a Lei de Gresham, aquela Lei que um dia Cavaco Silva enunciou e que diz, mais ou menos, que “a moeda má expulsa a moeda boa”. Rui Rio que se cuide.

Manuel Vaz Pires