Imaterial fundamental

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Ter, 17/12/2019 - 21:02


No estado actual do nosso conhecimento, construído à custa da razão, não é possível conceber o mundo e a humanidade sem os integrar nessa estrutura radical, cósmica, essencial, a matéria, secularmente demonizada, pretendida refugo incómodo, dispensável na eternidade, notável fantasia de desiludidos, empenhados em sacudir as escórias da vida.
Naturalmente a materialidade não é assimilável à existência que, no caso dos seres vivos, aparece com componentes que reconhecemos como emanações de processos materiais, mas não podem ser simplesmente reduzidas à expressão dos equilíbrios, desequilíbrios ou reequilíbrios moleculares, antes devem ser entendidas como realidades empolgantes, embora efémeras no tempo cósmico, que podem ser engolidas num qualquer buraco negro, possibilidade indescartável que nos conduz à angústia do confronto com o absurdo do definitivo nada.
Entretanto, sendo a humanidade um produto do que emana da matéria, também constitui uma realidade diferente, com a característica singular de dispor de condições para se subtrair aos desígnios estritamente físicos, até de os condicionar, deixando marcas notórias nos ritmos do universo.
Embora reféns desta trágica condição, os humanos geraram realidades inefáveis como as emoções, os sentimentos, as linguagens, afinal a cultura, que parecem libertar-nos do determinismo natural, pelo menos é o que gostávamos que acontecesse, porque queremos acreditar que a memória terá o condão de permanecer mesmo sobre as cinzas, o pó a que estamos condenados.
Assim nos vamos alimentando das esperanças, talvez vãs, mas reconfortantes, de dar algum sentido às vidas de todos os dias, mobilizando o legado dos que nos precederam. Por isso valorizamos vestígios, sinais, ruínas, tradições dedicando-lhe afectos e mobilizando esforços para os manter como referências. São a nossa alma.
O reconhecimento dos caretos de Podence como património imaterial da humanidade pela Unesco é uma palpitação global ao mesmo ritmo, uma forma de partilhar o destino.
As festas de Inverno que sobrevivem no território amplo do Noroeste Peninsular têm agora mais condições para atrair gente, com tudo o que isso significa ao nível do dinamismo económico, mas também no contacto com a magia do que está além do visível e do quantificável, o tal imaterial que nos acompanha na passagem pelo planeta.
Talvez tivesse sido possível conjugar esforços para promover uma candidatura de todas as festas com máscaras do distrito e do lado espanhol, mas as coisas são como são e os méritos ficam para quem os conquista, com trabalho, coragem e determinação.
O reconhecimento dos outros é um alento e as vidas fazem-se desses prazeres de nos encontrarmos nas alegrias, nas festas, no espanto de nos sentirmos profundamente próximos dos contemporâneos e dos que por cá passaram há mais ou menos tempo.
Apesar de nos gastarmos todos os dias a garantir o suporte material da vida, sentimos que fundamental para sermos o que somos é o imaterial, que geramos permanentemente sem saber como nem porquê.