O abismo catalão

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Ter, 31/10/2017 - 10:22


Às vezes dá-nos vontade de proclamar, aos gritos, pois claro, que a única solução para o desprezo a que nos tem votado o poder central lisboeta é tornarmo-nos independentes. Geralmente acrescentamos que seria bem melhor se fossemos espanhóis.
Temos, naturalmente, direito ao desabafo. A irritação pode ser um alívio, mas não devemos perder o sentido da responsabilidade, que impõe sempre o realismo, a serenidade e principalmente o horizonte do futuro e do legado de séculos que não podemos renegar, muito menos em nome de orgulhos caprichosos, que crescem estrumados pelo egoísmo, recusando acolher as lições das tragédias da história, marcadas pelo cheiro do sangue.
Os nacionalismos tiveram o seu momento há cerca de duzentos anos, quando se apropriaram do princípio do direito à liberdade individual, proclamando nações que, afinal, diluíam os indivíduos, impondo-lhes desígnios que podiam não sentir como seus.
Antes, os mapas políticos dependiam mais dos arranjos e conflitos entre grupos dominantes do que da vontade de pátrias, nações, povos e outras entidades mais ou menos fantasiadas. Às vezes tinham correspondência na realidade e, geralmente, não foram postas em causa por poderes políticos que lidaram com diferenças e especificidades com uma sabedoria que hoje não se vislumbra.
O imenso mosaico étnico, cultural e religioso que foi o império romano é exemplo notável de um poder que garantiu progressos decisivos da humanidade, pairando sobre as diferenças e cimentando o sentido de partilha. Acabou mal porque, também então, se deixou medrar a mesquinhez, o oportunismo e a corrupção, que tem cavalgado a história, fazendo crer que a humanidade transporta para sempre essa maldição genética.
Depois de termos sentido, por duas vezes, no século passado, a aproximação do apocalipse, não é compreensível que num espaço europeu, exemplo paradigmático do exercício democrático, se assista ao regresso da vertigem nacionalista que nos pode reconduzir ao caos de há mais de um milénio e a outro tempo de miséria e obscurantismo, como muito sangue, suor e lágrimas sem sentido.
Sob a capa da consagração de liberdades, alimenta-se a desigualdade, legitima-se a ganância, a segregação e até o racismo, como se pôde concluir das declarações de um deputado catalão no parlamento europeu, que não se coibiu de dizer que a União Europeia deveria acolher com agrado a Catalunha, “porque é um país rico”. À custa dos galegos, dos andaluzes, dos asturianos e castelhanos, poderia ser-lhe lembrado, porque a industrialização catalã não terá sido resultado de especial aptidão das suas gentes, por oposição a uma condição pacóvia da restante Hispânia.
Não se pode desligar o fenómeno catalão do Brexit, tendo em conta o papel que a velha Inglaterra desempenhou nos equilíbrios e desequilíbrios mundiais, desde os fins do século XVI, assim como não nos devemos esquecer das intervenções do nazismo e do bolchevismo na guerra civil espanhola. Curiosamente o actual poder no Kremlin já assomou à mesa de jogo, para apostar contra a União Europeia, que parece andar à procura dos ases num baralho viciado.

Teófilo Vaz