Estupidicídio colectivo

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Boas tardes, meus caros. Espero que estas palavras vos encontrem com boa saúde e disposição, abrigados do calor destes meses de inferno nordestino. Como sabem não sou um consumidor de redes sociais além do WhatsApp e do seu sino-equivalente Wechat, mais os emails e alguns eteceteras que já são muitos. Nunca tive paciência para redes sociais. E até tenho conta no Facebook, embora não a use. Não apago o Facebook por causa do argumento estúpido de que há muitos contactos antigos que eu só tenho ali e um dia posso necessitar deles (embora se realmente precisar de algum, haverá sempre maneira de o encontrar). Eu que até tenho o Facebook desde muito cedo, 2008, numa altura em que, de tão primordial, ninguém sabia o que era. Abri a conta quase pelo mesmo motivo pelo qual Zuckerberg e os amigos o criaram, para colocar as fotos de um jantar. Lembro-me que depois de um jantar no Bairro Alto, uma amiga disse “abram conta numa nova rede social chamada Facebook, que eu vou pôr lá às fotos.” Face quê? Perguntámos todos.” Já não vou para novo, mas nem de mais novo achava grande piada. Ia lá uma ou duas vezes por mês e encontrava sempre tudo na mesma. Feita a minha declaração de desinteresses vou falar do que para mim é a forma mais evidente da taxa de estupidicídio em Portugal, e da humanidade em geral, o ser humano a revelar-se impotente contra a sua própria estupidificação. Vocês sabem também que eu vou acompanhando Portugal pela rádio. Ora, é interessante ver que os radialistas há uns largos meses falavam da chegada da rede social chinesa Tik Tok como sendo absolutamente estúpida, adolescente, fútil, desnecessária e dispensável. Algo de que eu não duvido. Acontece que as mesmas pessoas, meses volvidos, falam da mesma rede social, dos vídeos e do espaço que ela ocupa nas suas vidas com toda a naturalidade de quem a frequenta e a consome. Não sei se isto é o cúmulo da estupidez, ou se a estupidez está do meu lado e de mais quatro ou cinco gatos pingados como eu que ainda andamos a viver estes fenómenos de fora como se estivéssemos algures na década de 90, pensando que o mundo e os deuses estão loucos, quando de facto os únicos loucos somos nós. É uma seita, uma onda de estupidicídio coletivo. As redes sociais a serem muito mais fortes do que as pessoas. Perdemos a capacidade de escolha ou de live arbítrio diante de uma rede social por mais estúpida e inútil que seja. Consumimos tudo. “Olha, já leste esta: abriu o “Estúpido bar” aqui na cidade, um bar da parvoíce a escorrer azeite pelas paredes. Só para pirosos, até a decoração é pirosa, que parolice, que foleirada (Pierre Zago, 2019)”. Criticamos, gozamos, e, no entanto, semanas depois estamos todos ao balcão do bar da foleirada, dos fúteis e azeiteiros a beber uma cerveja com groselha e a olhar uns para os outros. É incrível, o grau de toxicodependência digital, o poder destes estupefacientes sociodigitais que nos têm completamente na mão. E nós a julgar que não, que deixamos esta droga quando quisermos, enganando-nos a nós mesmos como qualquer verdadeiro toxicodependente. “Não, isto da droga eu saio quando quiser, amigo. Eu estou no controlo, se eu quiser largar, largo num instante”. “Tik Tok?! que piroseira, isso até é uma vergonha para quem tem mais de 12 anos e usa isso” Após um par de semanas: “Por acaso, ontem vi um vídeo no Tik Tok muito fixe, tens de ver...” Mas a rede social mudou num par de meses? Ou foi o cidadão que não é capaz de dizer não às drogas que lhe passam pela frente, “agarrei-me a isto porque os meus amigos costumavam consumir. Eu tenho quase 50 anos, mas a minha personalidade digital ainda não está completamente desenvolvida”. Agora fala-se muito do ódio digital. Pergunta (absolutamente) estúpida: é assim tão difícil sair do digital e desfazer esse ódio ou reduzir substancialmente o uso de redes sociais? Ou mudar os usos da internet, pelo menos para não lá andar a destilar ódio, inveja e mesquinhez? Claro que é. Tão difícil como para um heroinómano deixar de usar heroína ou reduzir a sua utilização com um estalar de dedos. Para quem nunca andou metido no cavalo é muito fácil. Mas para quem anda agarrado, só Deus deve saber como é cruel estar enleado nas malhas do vício. Somos todos toxicodependentes, estupidificados, afogados em informação, completamente engolidos e manipulados por este admirável mundo novo do outro lado dos ecrãs. O grande irmão está a ver-nos, nós estamos a ver o grande irmão, estamos a dançar e a dar o nosso melhor para fazer a máquina deste grande irmão não parar. Unidos pela parvoíce e pela estupidez. Unidos por postiças sensações de empatia, proximidade, afecto. Vamos perdendo as valias do convívio, da interação. Praticamos a cidadania do teclado, somos cidadãos do like e do post, passamos a viver sentados na bancada. Nada aconteceu se não foi consumido no ecrã, tudo só vale a pena se for diretamente injetado nas veias dos ecrãs. Tudo o que de jeito e desenjeitado fazemos na vida tem de constar da tela. Todos os dias, minutos, segundos, de garrote no braço, entorpecidos, à procura de já nem sabemos o quê, a ter de estar a ali a ver caravanas a passar e cães a ladrarem. O ódio na internet é só a overdose. O evidente e incontrolável excesso. Mas não queremos ver, não queremos procurar ajuda, não queremos mudar. Aliás, vamos postar, partilhar, comentar, debater para que isto mude. A cada segundo que passa alimentamos e cometemos um incessante estupidicídio colectivo. Mas não há problema. Afinal, nós estamos no controlo, largamos isto quando quisermos.

Manuel João Pires