NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - João Martins, estalajadeiro (1525– antes de 1593)

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João Martins e sua mulher foram os primeiros que encontrámos trabalhando na indústria hoteleira em Bragança. Exploravam uma estalagem e entre os seus hóspedes havia dois estudantes. Um deles era filho do cura de Carragosa. O outro chamava-se António de Morais, filho de um Pantaleão de Morais. Não temos informação segura Da escola que frequentavam mas pensamos que estudariam no colégio dos Jesuítas, em instalações ainda provisórias. Isto porque no mesmo processo de João Martins se fala do “colégio que agora faziam da Companhia de Jesus”. (1)
Em simultâneo ia-se delimitando o espaço da atual Praça da Sé e eram já construídas bastantes casas envolventes, a avaliar pelas testemunhas referidas no processo e que ali moravam. Havia também ali um banco de ferrador e uma das casas era exatamente a estalagem de João Martins. Estas e outras notas se colhem deste processo. E isso prova que a leitura dos processos da inquisição também tem interesse para o estudo do desenvolvimento urbano da cidade.
Na dita estalagem esteve hospedado em Janeiro de 1561 o carpinteiro Francisco Teixeira. No mês de Maio seguinte, o “bispo” de Miranda do Douro, (2) terá ido visitar Bragança e ali tirou devassa sobre eventuais comportamentos judaicos. E então, apresentou-se Francisco Teixeira e disse que presenciara algumas zangas entre o estalajadeiro e a mulher e que no meio de uma discussão ouvira aquele dizer “que havia de vender quanto tinha e ir-se a caminho do Golfo e deixá-la com suas filhas”.
Acrescentou o carpinteiro que João Martins e a mulher não trabalhavam nos sábados, que nesses dias vestiam camisas lavadas e nos domingos punham “vestidos da semana”. E que, por ver estes comportamentos do estalajadeiro, Francisco Teixeira o questionara um dia perguntando-lhe se era bom cristão e seguia a lei de Cristo. Ao que aquele respondera “que de judeu se não podia fazer bom cristão, como de cristão se não fazia bom judeu”.
A questão parecia ter ficado por ali. Ninguém terá aparecido a confirmar aquela denúncia. No entanto, um ano depois, chegou a Bragança, enviado pela inquisição de Lisboa a fazer nova “visitação”, o Mestre Francisco Cano. (3) E então caíram sobre João Martins novas acusações de judaísmo. O primeiro denunciante foi o licenciado Cristóvão Pires que disse:
- Que ouvira dizer a António Pires, seu irmão, que duas pessoas, ou uma pessoa lhe disseram que ouviram dizer certas palavras contra a virgindade de nossa senhora a um cristão-novo desta cidade…
Mais de uma dúzia de vizinhos de João Martins desfilou em seguida perante o visitador, confirmando a denúncia e acrescentando outras. Sobre o assunto, vejamos o depoimento de António de Morais, o estudante que atrás apresentámos:
- Disse que ele testemunha ouviu pelejar, haverá um ano, a João Martins com sua mulher, jurando muito, pondo a boca em Deus e também ameaçando a mulher, que a queria queimar e aos filhos e se havia de ir por aí além, não declarando aonde se havia de ir, o que ele ouviu por estar presente. E dali a uns dias (…) ouviu ele testemunha ao dito João Martins sobre outras pelejas que havia tido com suas vizinhas que sua mulher tinha um quarto de cristã-velha e 3 quartos de cristã-nova e que havia de ir buscar um feixe de vides para lhe queimar o quarto que tinha de cristã-velha…
Imagine-se: queimar a parte cristã-velha que a mulher tinha!... No entanto, se aqui se trata de um desabafo, o mesmo não acontecia com a máquina inquisitorial que até averiguava se alguém tinha 1/8 ou 1/16 avos de sangue hebreu!
António de Morais só lhe ouviu dizer que “se havia de ir por aí além”. Contudo a generalidade das testemunhas acrescentou a indicação do destino da fuga, que seria a região do Médio Oriente. Vejamos, por exemplo o que depoimento do alfaiate Pero Gonçalves:
- Disse que uma noite pelejara João Martins com sua mulher e lhe dizia que a havia de queimar a ela e às filhas e que se havia de ir para o Golfo. O que ele ouviu e lhe pareceu mal por ser o Golfo onde se vão fugindo os judeus…
Interessante esta informação: até aos anos de 1560 a rota principal de fuga dos cristãos-novos de Bragança seria a região do Golfo. De referir também que o pai e um tio do nosso estalajadeiro tinham também fugido para o Golfo, sendo aquele processado pela inquisição e queimado em estátua. E ele próprio confessaria aos inquisidores “que tinha vontade de ir para o Golfo para ser judeu”.
Outra denúncia foi apresentada por um membro da confraria das Chagas, em linguagem bem castiça e saborosa:
- Disse que indo ele testemunha pedindo esmola para a confraria das Chagas, (…) o dito João Martins alçou a aba do pelote, como lhe mostrava a fraldiqueira, e deu um piparote dizendo: pegue lá, que eu não tenho dinheiro – dizendo isso como homem que fazia em pouca conta a devoção de Deus.
Voltemos a Bragança, ao verão de 1562. Na sequência da visitação de Francisco Cano, João Martins foi levado para a cadeia de Miranda onde permaneceu 3 meses, ao fim dos quais, em 12.12. 1562, o provisor do bispado, Dr. Gil do Prado mandou copiar as denúncias feitas nas visitações e o mandou levar para a inquisição de Lisboa onde foi entregue em 23 daquele mês de dezembro.
Metido na prisão, logo em 15 de Janeiro, João Martins pediu audiência e confessou suas culpas, dizendo que fora catequizado por um “homem pobre e velho, alfaiate, natural de Mogadouro” seu vizinho em Bragança, chamado João Álvares. E contou que guardava os sábados, que fazia jejuns judaicos, nomeadamente o do Kipur e que também sua mulher o acompanhava nas ditas cerimónias. Curiosa resposta a sua quando o inquisidor lhe perguntou porque se fiara num pobre velho:
-Disse que lhe dissera que a lei dos judeus era alva e ele creu que na dita lei se podia salvar por ser alva.
Seria relativamente breve a sua passagem pelas masmorras da inquisição, saindo condenado em cárcere e hábito perpétuo no auto de fé celebrado em 6 de maio de 1563.
Como era de norma, foi enviado para o colégio da fé para ser instruído na doutrina cristã. Em 26 de junho seguinte, no seguimento de uma petição e com prova de estar bem instruído, foi autorizado a deixar o colégio e ir morar no bairro de Santa Marinha, em Lisboa, uma espécie de liberdade condicional, como hoje diríamos, com obrigação de andar vestido com o sambenito e de se apresentar diariamente nas Escolas Gerais.
Entretanto, e no seguimento das suas denúncias, Catarina Martins, sua mulher, foi também presa (4) e metida nos cárceres da inquisição, em 16 de Agosto de 1563. Dias depois o inquisidor geral autorizava que lhe tirassem o hábito penitencial  a João Martins e que regressasse a Bragança, em resposta a uma segunda petição e “havendo respeito a ele ser muito pobre e necessitado (…) e por ter 4 filhas, as quais andam por casas alheias”.
Resta dizer que João Martins faleceu antes de 1593, altura em que sua mulher foi presa segunda vez, acabando queimada na fogueira do auto de fé de 8 Outubro de 1593 (5)
Também Helena Martins, filha do casal e herdeira da estalagem, casada com João Pires, foi presa em 1593 pela inquisição de Coimbra.
E a história desta família na inquisição continuou pela geração seguinte, com a prisão de duas filhas de Helena e João Pires, em 1595: Ana e Catarina. (6)

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:

1-ANTT, inq. Lisboa, pº 12468, de João Martins. Sobre a construção do colégio ver: RODRIGUES, Luís Alexandre, Bragança no Século XVIII. Urbanismo. Arquitectura, volume I, pp 309-313. O primeiro sacristão que encontramos da igreja de S. João (a do Colégio) chamava-se Pedro de Lafaia, filho de João de Lafaia, carpinteiro que também trabalharia na construção do colégio. Um tio materno de Pedro Lafaia era sacerdote, cura da igreja de Sezulfe e outro era membro da Companhia de Jesus – ANTT, inq. Coimbra, pº  2155, de Pedro de Lafaia.
2-Se bem que no processo se fale na “devassa que o senhor bispo de Miranda tirou, visitando a cidade de Bragança” pensamos que o visitador terá sido o provisor do bispado e deão do cabido Dr. Gil do Prado, um dos fiéis servidores do inquisidor mor, cardeal D. Henrique. Ver: ANDRADE e GUIMARÃES, Os Judeus em Trás-os-Montes A Rua da Costanilha, Âncora Editora, Lisboa, 2015, pp. 75-79.
3-Mestre Francisco Cano foi secretário e testamenteiro da rainha D. Catarina, mulher de D. João III. Da Casa da mesma rainha, seu “esmoler” e confessor era também o bispo D. Julião de Alba, tal como fora o primeiro, D. Toríbio Lopes, enquanto o segundo D. Rodrigo de Carvalho era inquisidor em Évora. Pensamos que seria interessante fazer um estudo aprofundado das relações entre D. Catarina, o cardeal D. Henrique, a inquisição e o bispado de Miranda.
4-ANTT, inq. Lisboa pº 3546, de Catarina Martins.
5-IDEM, inq. Coimbra, pº 4147, de Catarina Martins – ALVES... Memórias…  vol . 5  p. 57.
6-IDEM, inq. Coimbra, pº 2744, de Ana Martins; pº 6089, de Catarina Martins.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães