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NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS Miguel de Sousa, mercador e rendeiro (1532 – 1597)

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Era certamente o mais conceituado de entre os cristãos-novos de Bragança, de certo modo liderando a comunidade. Um dos seus denunciantes retratou-o com as seguintes palavras:

- Miguel de Sousa o qual é muito poderoso na dita cidade, discreto e avisado, com  quem os cristãos-novos se aconselham. (1)

Ele próprio, defendendo-se perante os inquisidores de Lisboa, diria:

- Todas as pessoas a quem ele réu tem posto contraditas são pessoas de muito baixa sorte e caridade e oficiais mecânicos, com os quais ele nunca tratou nem conversou, nem eles com o réu, nem com eles têm razão de parentesco algum; antes é dos principais homens que há da nação, na cidade de Bragança e 20 léguas ao redor dela. (2)

Na verdade ele não era um qualquer mercador e cobrador de rendas. De contrário era um homem de nobre estatuto, condecorado por Sua Majestade com a Ordem Santiago e uma pensão de 20 000 réis. Entrava na da governança da cidade e aparece referido como um dos 5 notáveis que participaram na cerimónia da tomada de posse do castelo de Bragança pelo representante do rei Filipe, em 1580. (3)

E por ser homem de nobre estatuto e conceituado entre os da nação, tomaria a iniciativa de tentar negociar um perdão do rei para os brigantinos prisioneiros da inquisição, dizendo que faria o melhor que pudesse.
Tão conceituado era entre os seus correligionários que alguns até se convenceram de que a inquisição o não prenderia porque tinha uma bula passada pelo santo padre de Roma que o protegia.

Paradoxalmente seriam todas estas “virtualidades” que levariam à sua ruína e que começou em 1587 com a prisão de Diogo Fernandes, de Quintela. Com efeito, um irmão e um sobrinho deste, temendo ser presos, terão ido aconselhar-se com Miguel de Sousa e este lhe terá dito que fugissem para fora do reino. Conselho idêntico terá dado a outros. Tal como aconselharia a que matassem uma moça cristã-nova que fora criada de um Francisco Cardoso e que a atirassem a um poço por temerem que denunciasse cerimónias de judaísmo que presenciara em casa de seus amos.

Decerto não podemos confiar na veracidade dos factos contados por este e outros denunciantes, dado o ambiente que então se vivia na cidade e ficou conhecido como o caso dos falsários de Bragança. Os próprios inquisidores de Coimbra, em 9 de Julho de 1593 mandaram escrever o seguinte:

- Foram vistas as culpas que há contra Miguel de Sousa (…) e vendo-se os defeitos dos testemunhos de Gonçalo Fernandes de que só é a culpa de o aconselhar que se fosse e fica só fautoria, as mais 3 testemunhas têm por falsas (…) e se revogaram…

Aparentemente esta deliberação mostra que os inquisidores consideraram que Miguel de Sousa seria uma vítima dos falsários. Contudo, o processo não ficou parado, antes se fizeram várias diligências para averiguar da verdade ou falsidade das denúncias feitas, as quais foram cometidas ao reitor do colégio da companhia de Jesus, em Bragança. (4)

Dias depois, em 13.7.1593, as coisas mudaram por completo. Leonor Cardosa, (5) curandeira de ossos, moradora na rua Direita de Bragança, vizinha de Miguel de Sousa, que estava presa no mesmo tribunal da inquisição de Coimbra, contou aos inquisidores que, 4 anos atrás, fora chamada pela mulher de Miguel para compor um braço partido a um filho seu. E entrando na casa, viu que estavam ali reunidas umas 11 mulheres, junto ao menino e em outra parte da sala (“muito espaçosa”) estavam uns 18 homens, que a todos nomeou. E toda aquela gente estava seguindo a leitura que fazia um filho de Miguel de Sousa, chamado Francisco, (6) o qual livro era da lei de Moisés, conforme lhe disse a dona da casa, Isabel da Costa.

Entretanto, acaso por quaisquer suspeitas, Miguel Cardoso já antes se tinha abalado de Bragança e dirigido a Coimbra a apresentar-se na inquisição, antecipadamente apontando os seus inimigos. Ficou desapontado por os inquisidores lhe perguntarem se vinha confessar suas culpas e pedir misericórdia. Respondeu que não tinha culpas e que dali seguiria para Lisboa apresentar-se ao Conselho Geral a indicar os seus inimigos que falsamente o poderiam incriminar. Em Lisboa arranjou casa e logo mandou ir a mulher e ali “estavam mui prósperos e descansados” quando veio prendê-lo o meirinho da inquisição, em 18.9.1593.

A expressão “prósperos e descansados” consta de uma das duas exposições enviadas à inquisição pelo advogado Francisco de Sousa, em defesa do seu pai, tentando provar que na base da sua prisão estavam falsos testemunhos promovidos pelos seus inimigos, principalmente Rodrigo Lopes e seu genro Pedro de Figueiredo que em Lisboa andava “em hábito de viúvo com um capuz” arregimentando testemunhas como os irmãos Rodrigues, sapateiros de profissão, “barregueiros” de alcunha “vestidos de pardo”…

Estas exposições de nula utilidade foram para a causa do prisioneiro que, em simultâneo, era carregado de culpas por outras testemunhas, nomeadamente sua mulher que também foi presa, duas semanas depois e sua sobrinha Justa Dias. (7)
Extraordinário o comportamento de Miguel de Sousa. Durante mais de 3 anos, aguentou-se firme, nada confessando e a ninguém denunciando. Acabou queimado na fogueira do auto de fé celebrado em Lisboa em 23 de Fevereiro de 1597.
O mais grave de seus crimes terá sido a sua contumácia, que ficou bem vincada logo ao início, na 2ª sessão que com ele tiveram em 24.5.1594. Começado a ser interrogado pelos inquisidores, logo esclareceu que não tinha nada para lhes dizer e que apenas falaria perante o Conselho Geral, onde se tinha apresentado, não para confessar culpas, que as não tinha, mas para livrar a sua face das calúnias de seus inimigos. Retorquiram-lhe os inquisidores que o seu processo havia de prosseguir naquela mesa e não na do Conselho Geral. A sessão terminou escrevendo-se em ata:

- E por dizer que não queria responder perante o senhor inquisidor mas perante o conselho geral e sendo admoestado muitas vezes não quis responder outra coisa e para constar a sua contumácia…

Esta atitude manteve-a até ao fim. Em uma das audiências diria que se tivesse culpas teria fugido como fugiram muitos. Nem sequer mudou de atitude quando lhe foram atar as mãos e dizer que estava condenado a ser relaxado. E nem ao menos quando se encontrava já no palco do auto da fé ouvindo ler a sentença da morte.

Deveras interessante é o seu processo para o estudo da sociedade brigantina da época. É um processo cheio de contraditas que mostram à evidência um mar encapelado de tensões. Apontando mais de 3 dezenas de inimigos, apresenta mais de 70 testemunhas de defesa. As situações são as mais diversas e as pessoas de todos os setores de atividade (8) e todos os estratos sociais. A título de exemplo veja-se o que aconteceu com Jerónimo Rodrigues.

Em 24.12.1589 disse que jejuou no Kipur de 1578 juntamente com Miguel de Sousa estando ambos na cidade de Guimarães, em viagem de negócios. Em 8.5.1592 disse que tudo foi mentira e que ele inventou aquilo para se vingar de Miguel de Sousa que lhe tinha mandado os seus criados fazer um buraco na parede de um pombal e metido gatos lá dentro que lhe comeram os pombinhos, dando-lhe um prejuízo de 40 000 réis. Haveremos de acreditar?

Miguel de Sousa era natural de Trancoso. Ficou órfão de mãe aos 5 anos e de pai aos 10. Casou em Bragança e ali residiu. Começou a sua vida de mercador viajando muito por Castela onde ia comprar machos e mulas. Depois ascendeu à categoria de rendeiro e só o enunciado das comendas que trazia arrendadas impressiona. Infelizmente naquela época a inquisição não fazia registar no processo o inventário dos bens dos prisioneiros para termos uma noção completa do poder económico deste homem. Terminamos estas notas com a explicação que ele dava para se não comer carne de porco:

- Disse que não se devia comer carne de porco, nem ele comia a carne porque o porco andava sempre com os olhos no chão e todas as coisas que não olhavam para Deus se não haviam de comer.

NOTAS
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 9697, de Gonçalo Fernandes.
2-IDEM, inq. Lisboa, pº 5104, de Miguel de Sousa.
3-ALVES, Francisco Manuel – Memórias… Tomo VIII, p. 21.
4-Destas diligências o mais interessante é o comportamento dos jesuítas de Bragança como apaziguadores de conflitos. Com efeito, enquanto procediam ao inquérito pedido, conseguiram estabelecer a paz e “ficar amigos e correntes” entre as famílias de Miguel Sousa (os Borges) e dos Sarmentos.
5-ANTT, inq. Coimbra, pº 5514, de Leonor Cardosa.
6-Francisco de Sousa era então estudante em Salamanca, universidade que frequentou entre 1582 e 1592, formando-se em Cânones e Leis – DIOS, Angel Marcos de – Índice de Portugueses en la universidade de Salamanca (1580-1640), in: Brigantia, vol. XVII, nº ½, p. 178, 1993.
7-ANTT, inq. Coimbra, pº 6038, de Isabel da Costa; pº 9276, de Justa Dias.
8-Interessante: um dos participantes na “sinagoga” em casa de Miguel de Sousa chamava-se Manuel Rodrigues e tinha a profissão de toureiro.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães