Agosto chegou. De longe vieram os que tinham saudades da terra, do abraço que se dá, do copo de vinho que se bebe na adega mais fresca junto do ribeiro. Já fizemos a festa, fomos à missa, cumprimos a promessa, choramos com o sermão emocionado do pregador, pegamos ao pálio e dançamos no terreiro, como antigamente, na memória do altifalante que acordava a aldeia. Durante um mês acreditamos que o nordeste tem futuro, que as aldeias se povoam e os jovens que falam várias línguas erguendo a magnífica torre de Babel hão-de regressar para sempre. Depois, terminam as férias e todos regressam às suas vidas e ao amanho das terras do fim do mundo. Os que ficam afagam as memórias, perseguem os silêncios e revivem lugares antiquíssimos que já regurgitaram de pessoas e de vidas.
Esquecemos o inverno que em breve tornará as terras do nordeste mais austeras, frias e carregadas de solidões.
Mas agosto ainda vai a meio e as noites estão quentes. Dezenas de automóveis animam a aldeia e os idosos cismam com os carros de bois carregados de trigo, com as eiras fartas na urgência das malhas, com os rebanhos na demanda dos prados, com as vacas pastando no verde do prado. Os mais novos bebem cerveja no café da aldeia e o vinho é tão bom repousando nas pipas seculares. Memórias. O meu vizinho fala como se mergulhasse fundo no paraíso perdido que se chama nordeste:
— Eu sou um analfabeto, criei-me com uma côdea de pão atrás dumas canhonas, mas sou mais fino que o gajo que manda nos Estados Unidos. Eu corro todo o termo e já não vejo um lagarto, uma cobra, milhares de passarinhos, como antigamente, estamos a dar cabo de tudo com a poluição, os adubos e os pesticidas, eu sei lá!
Faz-se silêncio. Olhos marejados de lágrimas. Destruímos os nossos campos tão verdes, fechamos as escolas, abrimos cinzentos lares de terceira idade, enterramos os idosos e praguejamos neste desencanto de assistirmos pesarosos e impotentes, paulatinamente, a uma morte anunciada.
Regressamos a casa. Noite quente. Ainda se houve o toque das Trindades. A mãe chegou ao portal vinda da fonte, contando os filhos. Memórias dolorosas. Ligamos a televisão. Uma senhora de fino recorte apresenta o seu último livro publicado. Uma história lancinante de alguém no país das sapatilhas. Um casal citadino cansou-se do bulício da cidade e vai para Trás-os-Montes explorar uma casa de turismo rural, numa aldeia miserável sem telemóvel nem internet. A locutora ainda deixa uma nota de rodapé, inteligente por sinal: — Ninguém vai abrir uma casa de turismo rural numa aldeia sem telemóvel, nem internet. A magnânima escritora sorri. Talvez não conheça Trás-os-Montes e embarque no estereótipo que é uma região de ninguém, mergulhada na longa noite dos mitos e preconceitos, povoada de lobos e almas penadas, onde ainda não chegou a internet e muito menos os telemóveis. E a trama do eloquente livro desenvolve-se à volta da tragédia e da psicanálise do casal citadino e principalmente dos seus filhos que estoicamente têm que sobreviver na lonjura da cidade, nos confins do mundo, na noite mais escura da aldeia transmontana, sem internet, nem redes sociais, nem telemóveis.
Eu por acaso vivo numa humílima aldeia transmontana e dentro de alguns minutos irei enviar esta deslavada reflexão ao director do jornal utilizando o normalíssimo recurso a um e-mail. Mas os esclarecidos escritores que têm acesso às televisões é que sabem e muitos dos sensatos e cultos escritores transmontanos ficam na prateleira do esquecimento televisivo. Na verdade a ignorância é atrevida.
Vou-me lá até à fonte mais fresca da aldeia beber da água mais pura e fresca que há milhares de anos nasce do coração da terra. Os incêndios assustam-me neste mês de agosto. O governo foi a banhos e regressa pra nos sossegar que tem imensos meios de combate às chamas avassaladoras, mas a floresta e muitas habitações arderam. Fica uma imensa paisagem cinzenta, fria, medonha. Desgostos.
Desligo a televisão. Uma coruja pia sinistra riscando o silêncio. Finalmente escrevo um e-mail, junto um anexo e a minha “redação” está no jornal. A longa noite transmontana iluminou-se e o futuro é possível. Haja vontade de fazer política para a “polis”, para o povo real e não somente para o populismo. Haja vontade e teremos futuro. Acredito.