O lado pardo de Maio

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Qua, 03/05/2017 - 10:11


Em 1971 o país vivia entre a esperança e o desânimo, enquanto pelo resto do lado ocidental do mundo se fazia a festa de todas as liberdades, apesar da cortina de ferro, do muro de Berlim, do cerco a Israel, da guerra do Vietnam e das ditaduras na América Latina e do toca e foge, irritante, um pouco por toda a África.
Então, Maio, apesar das flores, também cheirava a luta e trazia consigo a memória da humilhação da liberdade, no já longínquo 1926, que nos empurrara para um beco da História.
Comemorar o 1.º de Maio estava proibido. Por isso, na capital eu, rapazola a caminho dos dezasseis anos, resolveu descer a Av. da Liberdade, que não perdera o nome, arriscando uma aventura empolgante, pelo meio da tarde. Não se via vivalma e uma sensação de calma obtusa, pontuada por calafrios sem razão, acompanhou-me até aos Restauradores.
No Rossio estavam sete ou oito carrinhas de bastões, viseiras e escudos. Até a esplanada da pastelaria Suissa ficara ao abandono.
Esta foi uma primeira experiência pardacenta de um primeiro dia de Maio, quando em Paris já então desfilava o caos em paralelo com os sindicatos e em Moscovo se comemorava o trabalho ao ritmo das botas cardadas.
Correram dois anos em que de Maio se foram ouvindo as cantigas do Zeca, até que o quinto mês de 1974 abriu com monumental manifestação, as ruas de Lisboa a rebentar pelas costuras, mas Mário Soares a ser apupado, mesmo insultado entre dentes, acto premonitório do destino kerenskiano que alguns lhe estavam a preparar.
Foi logo um 1.º de Maio circo de feras, enquanto o país ainda não o sentia como símbolo da dignidade do trabalho, conquistada com sangue, suor e lágrimas, uma epopeia que deveria constituir o orgulho dos sistemas democráticos.
Passados mais de quarenta anos, do primeiro dia de cada Maio pouco mais vai restando do que a réplica monótona de chavões que o tempo relega para o barracão da sucata, enquanto alguns herdadores se aprestam a trocar o punho cerrado pelo braço estendido, de má memória, pelo menos por terras da velha Gália, trazendo às gentes de boa-fé a amargura da desilusão sem retorno.
Na verdade, a democracia é uma utopia que nem todos partilham. Muitos preferem-lhe o dormitar sensaborão, a mediocridade segura, o rendimento avaro garantido porque, para além das aparências, o que procuram na vida não é solidariedade, pouco lhes importa a liberdade, nem estão interessados na afirmação da autonomia de todos e de cada um.
O instinto, que também é humano, continua a sobrepesar nas nossas vidas e a determinar as nossas acções. Ainda não chegámos à condição de olímpicas criaturas, altaneiras sobre as razões miseráveis dos combates que nos consomem, sem vitórias nem derrotas, porque nos falta um desígnio para além do horizonte curto do individualismo.
Assim vai ficando Maio pardo, à semelhança dos gatos à noite, sem que lhe possamos reconhecer sinais da festa da vida, que alguns terão sonhado nos tempos de apagada e vil tristeza, des-
perdiçando oportunidades de dar algum sentido ao mundo.

Por Teófilo Vaz