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A mais grave subversão da democracia

A democracia, genericamente falando e tal qual a entendemos, enquanto sistema político que, só para relembrar, consagra o estado de direito, as liberdades individuais fundamentais, a igualdade dos cidadãos perante a lei, a separação de poderes e estabelece actos eleitorais livres, justos e transparentes para escolha dos governantes, está em crise nos países onde foi genuinamente implantada, como é óbvio, muito embora nuns com maior gravidade do que noutros. Em contrapartida, nos países em que conhecidos autocratas, designação suave para déspotas tais como o russo Vladimir Putin ou o venezuelano Nicolás Maduro, que fazem questão de simular eleições para dar ares de democracia, eles lá saberão porquê, embora mitigando as liberdades, claro que não há crises de democracia. Ainda que, no que às crises políticas dos países em que a democracia funciona plenamente se possa argumentar que as coisas são como são e que tudo resulta da sua própria natureza, que comporta uma reacção permanente aos desafios que os novos tempos lançam às sociedades. Se assim for, a esfarrapada frase atribuída a Winston Churchill “a democracia é o pior dos regimes, à excepção de todos os outros”, vai continuar a ser apropriadamente citada por tempo indeterminado. Eu prefiro dizer, ainda assim, que só a democracia é positivamente revolucionária, mas que é preciso que o seja, isto é, que todos os cidadãos de todos os credos, cores, costumes e fisiologias possam expressar e fazer valer, na justa medida, as suas especificidades, e que todos os desmandos e crimes de toda a natureza e autoria possam ser denunciados, investigados e julgados em tempo útil. Nada disto contraria e invalida, todavia, a ideia corrente de que a democracia está em crise, tantos e tais são os escândalos, os abusos, as ofensas de que as instituições democráticas fundamentais são alvo sistematicamente, como bem se vê entre nós. Ataques que são gerados dentro do próprio sistema, embora também muitos outros haja, talvez os mais graves, que vêm de fora. Enquadra-se no primeiro caso aquilo que genericamente é designado por corrupção, que comporta a delapidação, o prejuízo, a utilização fraudulenta e o roubo objectivo de bens e recursos do Estado, implicando a troca de dinheiros, valores, vantagens ou serviços em proveito privado, individual ou colectivo e a todos os níveis da administração pública. Corrupção que é, seguramente, uma doença crónica das democracias, eventualmente a mais generalizada e que, entre nós, ganha especial destaque. Para não falar do nepotismo, do compadrio, do chico-espertismo e da incompetência e impreparação de muitos governantes para os cargos que ocupam. Mais recentemente, um novo fenómeno maligno, este vindo de fora, portanto e com maior perigosidade, está a ameaçar directamente os actos eleitorais, que são a pedra de toque da democracia, que devem ser livres, justos e transparentes, como atrás se disse. Trata-se de um complexo de interferências estranhas, especialmente composto de desinformação, ciberataques e violação e viciação de dados, que visam condicionar os resultados eleitorais e que constitui a componente mais subtil e eventualmente mais eficaz da moderna guerra híbrida. Questão fundamental que, como é do domínio público, se levantou com especial acuidade aquando da realização das últimas eleições para o Parlamento Europeu, que ocorreram de 6 a 9 de Junho de 2024, e que motivou a tomada de medidas adequadas pelos competentes organismos da União. Ainda assim, quanto a mim, a forma mais grave de subversão da democracia será provocar, habilidosamente, actos eleitorais extemporâneos, que inevitavelmente comportam perigosas crises políticas que poderão ter impactos desastrosos em todos os sectores da vida nacional, com o propósito central, senão único, de salvar governantes fragilizados deontologicamente ou mesmo indiciados criminalmente, na esperança de que se forem reeleitos, a Justiça ficará irremediavelmente comprometida e condicionada, senão mesmo anulada, no que a estes prevaricadores em especial diz respeito. Fenómeno este que não sendo inteiramente inédito, ganhou recentemente preocupante realce em Portugal, num curto espaço de tempo, com os casos das quedas sucessivas, gravosas e desnecessárias, dos XXIII e XXIV governos constitucionais, liderados respectivamente por António Costa e Luís Montenegro que, muito embora ainda não estejam completamente esclarecidas, tudo leva a crer que se enquadram neste subversivo procedimento político. Idêntico juízo se poderá fazer para o caso das últimas eleições na Região Autónoma da Madeira envolvendo Miguel Albuquerque, na sequência da queda do seu anterior governo. Havemos de concluir, portanto, que a democracia atravessa, de facto, uma real e gravosa crise, ainda que venha dando mostras de possuir a dinamogenia necessária para a ultrapassar.

Henrique Pedro