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Em defesa da diferença: o tecido invisível da Liberdade

Será alguém criminoso por se vestir de modo distinto, por transformar o corpo em tela de expressão com tatuagens, piercings, alargadores ou botox? A resposta é evidente: não! 

A diversidade é o rosto mais belo da humanidade! Vivemos num mundo plural, onde a cor da pele, a língua falada, o uso que damos ao corpo e o vestuário que trajamos são manifestações legítimas da mesma condição humana — a riqueza da diversidade!

Os trajes tradicionais — o kilt escocês, o lederhosen da Baviera, o tirolês Italiano, o sarafan da Rússia, o sari indiano, o áo dài do Vietname, a galabeya do Egito, o shúkà dos Masai do Quénia, o traje zulu da África do Sul, os caretos do Nordeste Transmontano, os bugios de Valongo ou os cardadores de Vale de Ílhavo – assim como as tatuagens da Polinésia ou os alargadores das tribos africanas são uma narrativa viva de história, fé e identidade cultural, ou como sentenciava Santo Agostinho “Vestis sermo corporis” – A roupa é a linguagem do corpo! Aceitamo-los com fascínio quando cruzamos as avenidas cosmopolitas de Lisboa, Paris, Londres ou Nova York onde o mundo se veste de mil cores.

Se assim é — se é natural acolhermos a diversidade cultural e simbólica das indumentárias e vivências do mundo — porque razão a burca ou o niqab são vistos como uma ameaça, e não como mais uma manifestação da mesma diferença que enriquece o tecido social? Porque é que daqui em diante quem os trajar será CRIMINOSO?

R: Se é por uma razão de perigo ou insegurança, então não é preciso legislar, porque a lei já permite hoje exigir que se descubra o rosto para identificação correcta e completa de todas as pessoas, impondo já que ninguém entre com a cara tapada num estabelecimento bancário, que destape a cara perante um Juiz para se identificar, ou até mesmo perante um qualquer polícia que lho exija!

R: Se é para proteger a mulher contra as impiedosas imposições de seus pais e/ou marido, e permitir assim que a Mulher se afirme na sua plena liberdade, então não é preciso legislar, porque já temos em Portugal o crime de violência doméstica, e com esta proibição, a existir alguma castração de liberdade, essa aumentará ainda mais, confinando a Mulher à prisão da sua própria casa!

R: Se é por uma questão cultural, então não é preciso legislar, porque a burca não ofende a minha cultura, é apenas indumentária de uma cultura diferente da minha!

A Constituição da República Portuguesa proclama, no seu artigo 1º, que Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da Pessoa Humana. Dignidade significa autonomia, liberdade de consciência, direito a ser diferente — e não uniformização imposta! O artigo 41.º da mesma Constituição consagra a liberdade religiosa como inviolável e o artigo 13.º assegura a igualdade sem discriminação por motivos religiosos. Ora, uma lei que criminaliza o uso da burca cria, na verdade, uma limitação injustificada a ambos os direitos: viola a liberdade de manifestação da fé e atinge desproporcionalmente um grupo religioso minoritário — as mulheres muçulmanas.

O olhar que admira o traje tirolês, baiano ou o sari indiano não pode temer o véu islâmico. Ambos são símbolos de identidade e espiritualidade. O verdadeiro teste de maturidade cívica de uma sociedade não é a forma como tolera o que lhe é familiar, mas como respeita o que lhe é estranho.

É certo que nenhum direito fundamental é absoluto: a segurança é também um valor constitucional protegido. Assim, a liberdade de trajar conforme a fé pode e deve ceder perante a necessidade legítima de identificação perante autoridades policiais, fronteiriças ou judiciais. Nesses casos, o dever de se descobrir é necessário, adequado e proporcional — como prevê o artigo 18.º da CRP. Mas transformar a exceção em regra será trair o espírito da liberdade religiosa consagrado no artigo 41.º. A regra deve ser a da tolerância e da convivência pacífica com aqueles que estão legalmente em Portugal!

Se cá não podiam ou não deviam estar – se queremos discutir o regime de entrada e permanência de estrangeiros em Portugal – essa é uma outra discussão a montante desta, e bem diferente desta que agora nos ocupa! Mas depois de cá estarem válida e regularmente, não me parece justo, nem sequer adequado, e muito menos razoável proibi-los de usar burca ou krakowiak ou kilt.

A liberdade de consciência e de culto – inviolável em Portugal – não vive apenas no íntimo das crenças, no segredo das consciências, no íntimo das nossas casas, mas manifesta-se também no espaço público, nos gestos, nos símbolos e nas vestes. O Estado é aconfessional e não deve identificar-se com uma determinada religião, nem ser um instrumento ao serviço duma qualquer Igreja. Mas também não pode assumir uma posição anticlerical ou de hostilidade perante um qualquer culto, antes pelo contrário! Conforme refere “o pai da Constituição” Jorge Miranda, a liberdade religiosa além da sua vertente negativa (pati) ou tolerância – que consiste em um Estado não impor, nem proibir, a ninguém a prática de determinada religião – ela tem também uma vertente positiva (facere) no sentido do Estado “permitir e propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem em matéria de culto de família ou de ensino.”

O vestuário, quando escolhido por livre convicção pessoal, é parte dessa liberdade. Proibir a burca seria amputar o direito de autodeterminação que a Constituição reconhece a todos, seria negar a possibilidade de ajustar a sua vida e sua liberdade de expressão, com aquilo que é a sua convicção e de manifestar no espaço público a sua crença religiosa. Nesta mesma esteira, o Legislador poderá amanhã lembrar-se de proibir os andores e as procissões e as manifestações de fé pelo espaço público das nossas aldeias e cidades…

Aceitar a diferença é aceitar o outro como SUJEITO, e não como SUSPEITO!

Se não sentimos ameaça em conviver com quem veste o kimono, o poncho andino ou o sarafan russo, ou o traje dos caretos de Trás-os-montes, do bugio de Sobrado ou dos cardadores de Vale de Ílhavo, nem nos sentimos em perigo em tomar café com quem tem o corpo todo tatuado ou coberto de piercings ou alargadores, também não devemos sentir ameaça em cruzar a rua com uma mulher que cobre o rosto por motivos da sua fé!

O respeito pela diferença é o grau supremo da civilização e sociedades livres não temem o que é diferente — compreendem-no e protegem-no. A uniformidade pode dar a ilusão de ordem, mas é a diversidade que dá sentido à humanidade!

Portugal, nação de mares abertos e encontros de povos, não pode renegar a sua vocação universalista. Fomos pioneiros no diálogo entre culturas e ser português é, desde os Descobrimentos, ser capaz de olhar o outro com curiosidade e respeito. Foi assim que aprendemos o valor do pluralismo e é assim que devemos continuar: fiéis à nossa história, à nossa Constituição e à ideia de que a liberdade se mede pela coragem de proteger o que é diferente!

Não sou mulher, não sou muçulmano, e não me move particular simpatia pela utilização da burca ou do niqab mas, com Voltaire, afirmo: “Posso não concordar com o que dizes [ou vestes], mas defenderei até à morte o teu direito de o dizer [ou de o vestir].”

 

Ricardo Vara Cavaleiro 

Advogado

ricardovaracavaleiro@gmail.com

Www.rvc-advogados.pt

 Por exclusiva opção do autor, o texto foi escrito em Português de Portugal, ao abrigo do Acordo Ortográfico anterior ao Acordo de 1990.