O professor que não resistiu ao Direito

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Ter, 09/08/2005 - 16:19


Nasceu na freguesia de Castelo de Penalva, concelho de Penalva do Castelo, há 64 anos. Em 1974 foi fundador do PPD (hoje PSD) no distrito de Bragança e, três anos mais tarde, licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra. Antes já havia obtido o curso do Magistério Primário e a licenciatura em Filologia Românica pela Universidade Católica do Rio de Janeiro, tendo sido professor em diversos graus de ensino.

Desempenhou o cargo de governador civil de Bragança de Janeiro de 1988 até Fevereiro de 1990. Desde 1998 é delegado do Governo Português no Conselho Internacional da Caça

Jornal NORDESTE (JN) – A sua vida não tem nada de monótono. O que o levou a percorrer tantos caminhos diferentes?
Júlio Carvalho (JC) – Foi sempre a busca da realização. Nasci no seio duma família humilde e simples, em plena II Guerra Mundial, com as restrições próprias duma época difícil.
Para ir à escola tinha de percorrer vários quilómetros a pé, entre pinhais e matas. Depois fui para o Seminário Menor de Fornos de Algodres e daí para o Seminário Maior de Viseu, onde fiz o 6º ano. A partir daí saí, mas na admissão ao Liceu só me deram equivalência ao 4º ano. Só que no ano seguinte fiz o 5º e 7º anos e, curiosamente, vim fazê-los a Bragança.
Lembro-me que, na altura, o reitor do Liceu de Bragança era o Dr. Rijo, que me apresentou aos professores por eu ter feito o 5º e 7º num ano e ter dispensado em diversas provas orais.
Depois tirei o Magistério, a trabalhar ao mesmo tempo. Comecei a dar aulas na Pampilhosa do Botão e matriculei-me em Letras na Universidade de Coimbra.

JN – Como surgiu a ideia de ir para o Brasil?
JC - Ao Brasil só fui completar a licenciatura, porque é lá que ainda estão os meus pais. Frequentei aquela que é a maior Universidade da América Latina, não com o intuito de ficar no Brasil, mas de conhecer a qualidade do ensino naquele país. Gostei muito de lá estar, pela qualidade excepcional dos professores, que eram verdadeiros mestres. Na altura, o sistema de ensino do Brasil já era totalmente aberto, de verdadeira democracia, com muitos debates e investigação. Privilegiava-se a inteligência em vez da memória.
Depois do curso, em 1969, fui convidado a ficar como assistente na cadeira de Literatura Brasileira e como bolseiro da Gulbenkien para tirar o Doutoramento. Entretanto estava um bocado cansado e vim a Portugal passar férias. Foi então que quis ver como estava o ensino em Portugal e meti os papéis para dar aulas no Liceu de Viseu, Aveiro, Coimbra e Bragança. O primeiro a chamar-me foi o de Bragança porque não tinham ninguém licenciado em Românicas para dar Literatura.
De Viseu até Bragança, o meu padrinho pediu a um dos motoristas da sua empresa de transportes para me levar à Régua. Aí apanhei o comboio até ao Tua e daí para Bragança. Da estação do Tua até aqui demorei quatro horas!
Comecei a dar aulas, mas sempre com o intuito de regressar ao Brasil, assim que acabassem as férias. Só que em Bragança encontrei a pessoa que me tem aturado desde 1970.

JN – É verdade. É casado com a Drª. Olema Mariano, que foi responsável durante muito anos pela área da Educação no distrito. É caso para dizer que ao lado de um grande homem está sempre uma grande mulher.

JC – É verdade. Tem sido uma grande mulher e uma grande mãe, por quem tenho grande admiração e estima. Só para o exemplificar recordo que, a determinada altura, dava aulas a um grupo de alunos brilhantes do 6º ano do Liceu de Bragança, que me entusiasmaram a ir tirar Direito como eles. Curiosamente, quando fiz o 7º ano em Bragança e estava a dar aulas em Lamego só não segui Direito porque não arranjei professor de Alemão, que era obrigatório na altura. Só arranjei de Grego e foi por isso que segui a Filologia Românica.
Quando os alunos me desafiaram, falei com a minha mulher, com quem me tinha casado nesse ano, e ela disse-me: se é essa a tua vontade, vai. Ela ficou a dar aulas no Liceu de Bragança e mantinha-me como aluno ordinário em Coimbra, pois pedi a exoneração do meu cargo de professor. O meu objectivo era fazer um bom primeiro ano para tirar o curso com mais facilidade, e assim foi. Durante um ano sobrevivi com o ordenado dela.

JN – Na Escola Preparatória Augusto Moreno, em 1971, foi orador numa exposição sobre Alves Redol. Fale-nos um pouco da polémica que girou à volta dessa iniciativa.
JC – Eu tive alguns problemas como professor de Literatura. Quando comecei a dar aulas, a História da Literatura Portuguesa, de Óscar Lopes, era proibida nos Liceus. Eu, afrontando o poder, apontei sempre essa obra aos meus alunos, como base de apoio fundamental. Dei sempre uma visão um pouco sociológica da História da Literatura e isso causou-me alguns problemas. Na altura existia a PIDE, que me chegou a abordar várias vezes, mas nunca me preocupei e insisti no meu papel de professor de Literatura, com base no Óscar Lopes.
Sabendo que eu tinha essa visão da Literatura, os organizadores da exposição itinerante de Alves Redol, que eram homens da oposição ao regime, convidaram-se para ser orador. Aceitei e tinha consciência do que poderia acontecer, pois fui mesmo avisado de que, provavelmente, sairia dali para a prisão. Não tive medo e fiz uma análise crítica e rigorosa da obra de Alves Redol. Aquilo estava repleto. Havia o grupo de apoiantes do regime e as pessoas mais ligadas à oposição, que me apoiaram intransigentemente.
Alves Redol era um homem que denunciava a realidade portuguesa, a opressão, a exploração e a miséria em que vivia muita gente.
No fim da palestra houve um debate e há um apoiante do poder que pergunta: porque é que trazem aqui o Alves Redol, que é do contra, e não o Camões? Na resposta há uma voz que se levanta, que é a do Dr. Eduardo Carvalho, e que afronta o interveniente. Estava a ver que aquilo descambava em agressão. Depois tudo acabou em bem, num debate com muita elevação.

JN – Além de ter fundado o PSD em Bragança, também foi vereador da Cultura na Câmara de Bragança. O que acha da política cultural no município?
JC – Estou um bocado preocupado. Antes incentivava-mos os alunos a publicar os seus trabalhos e pesquisas e hoje não se vê isso. Parece-me que há pouca ligação entre as escolas superiores da cidade, nomeadamente a Escola Superior de Educação, e a sociedade. Não entendo como é que o Instituto Politécnico não tem um gabinete que faça projectos de Engenharia para o exterior, que tenha clientes, envolvendo os alunos e professores nestas actividades. Quando estive no Brasil as coisas já funcionavam assim e só entendo a escola desta maneira.

JN – Que recordações tem da sua experiência de governador civil de Bragança?
JC – É uma experiência agradável e triste ao mesmo tempo. Nunca quis ser, apenas, o representante do Governo no distrito, mas o representante das populações junto do Governo. Isso trouxe-me alguns dissabores e saí depois duma intervenção muito dura junto do Governo, para que fossem sanados alguns dos problemas que ainda afectam a região.

Entrevista de Marcolino Cepeda, Rui Mouta e Mara Cepeda