Onde se fala de Vinhais

PUB.

Ter, 02/08/2005 - 16:35


Há trinta cinco anos iniciei a minha descoberta dos Açores e, na esteira de Gonçalo Velho, principiei pela ilha de Santa Maria. No primeiro dia de trabalho, num dia chuvoso de Novembro, apareceu-me um sujeito de olhar audacioso, boné na cabeça e, ao ouvir-me falar, disparou:” O Senhor é do Norte, muito lá de cima”.

Olhei-o, respondi afirmativamente, inquiri do motivo da sua curiosidade. A conversa foi-se desenrolando como uma onda a desmaiar na praia, sem pressa ou mirada no relógio, enquanto dava orientações sobre livros e leituras. O homem tinha corrido muito mundo, tendo estado em Vinhais no tempo das incursões de Paiva Couceiro. Era menino, fazia parte de uma trupe de saltimbancos, a fome além de ser regra dia sim, dia não, enquanto permanecerem na terra vinhaense atingiu o zénite, só sendo amaciada porque roubaram nabos e uma alma caridosa lhe deu algum pão. O homem chamava-se Elizabeth Pepe, fazia parte da família dos Cardinalli, tendo desembarcado nos Açores antes da segunda guerra mundial, na condição de artista de circo, tendo um número em que um burro falava. Concluída a função de artista, enveredou pela profissão de fotógrafo, abandonou São Miguel e instalou-se na primeira ilha a ser descoberta. O Pepe, transformou-se num dos meus maiores amigos, esperou por mim para morrer, deixou-me uma cassete repleta de confidências, algumas fotografias e arrancou-me a promessa de escrever um livro onde ele será retratado. O livro está esboçado, afianço-o aos leitores. Muito antes de ele morrer, este artista e exímio jogador de póquer e de outras modalidades de cartas, mostrou-me imensas provas e fotos do seu arquivo. Coisas deslumbrantes. Numa das viagens ao maravilhoso, para meu espanto, encontrei uma foto da minha madrinha e do meu tio Francisco. Ela muito bem vestida, bonita, ele penteado à Tyrone Power, muito esticadinho dentro do fato, camisa branca e gravata às riscas. Fiquei estupefacto. O mistério esclareceu-se rapidamente. A minha madrinha casou por procuração porque o meu tio nos anos cinquenta prestava serviço em Santa Maria. Após ela chegar, nada mais natural que o ir ao fotógrafo, ela radiosa e ele todo pimpão a fim de ficarem retidos para a posteridade. Mais tarde, vi a foto oficial, tendo ficado a conhecer outras e boas opiniões acerca do celebrado artista. Enquanto permaneci na ilha conheci outra figura ligada ao concelho de Vinhais. Tratava-se de um teletipista de nome Chamorro, filho do famoso professor com o mesmo apelido, o qual esteve um ano excomungado devido a uma querela onde participava um pároco da aldeia dele. O Professor tornou-se muito lembrado, devido a no dia da expiação da pena se ter apresentado no Paço Episcopal a solicitar uma audiência ao Senhor Dom Abílio. Foi recebido, esperando-se da parte dele uma atitude ou sinal de arrependimento. Mas não. O espadaúdo professor pedia a prorrogação do castigo por mais um ano, devido a ter-lhe corrido bem a vida. Este episódio disse-o de viva voz o seu autor, enquanto escolhia livros na Biblioteca Itinerante estacionada junto ao Café Central. Ele contava a sua história com manifesto orgulho e evidente entusiasmo, nisso tudo só vendo prazer. Isto vem a propósito porque no mês de Julho, voltei a Santa Maria, por oito dias. Durante os meus passeios, a horas mortas pelas ruelas da vila, revivi a casa habitada pela minha madrinha, as imensas histórias espalhadas por todos os cantos pelo formidável Pepe, as pequenas “estórias” do telepitista Chamorro e, as andanças e aventuras que protagonizei. Ora, num desses passeios enquanto desentranhava memórias parou junto a mim um jeep. Do veículo saiu um velho conhecido, carão envolto em barbas, olhos protegidos por óculos, dentadura fendida, sorriso interrogador. Começámos a travar um surpreendente e irónico diálogo porque enquanto reaparecia o Chamorro e o Pepe, sucessivas imagens de Vinhais afloravam à minha mente, sem esquecer o progenitor do homem que mandava e recebia mensagens, enquanto imaginava o antigo palhaço a desenvolver saltos e vomitanços de fogo num palheiro frio, numa tarde invernal. O diálogo terminou num aluvião de gargalhadas, pela minha parte em homenagem ao querido Pepe. Ele sempre que podia vinha até ao Continente, gostava de voltar aos trajectos de antigamente, nunca se esquecendo de lembrar a sua entrada numa procissão ali para os Frades, num daqueles dias friorentos, esfoemados e turbulentos em pleno apogeu da I República.