“Os frutos secos salvaram-nos dessa desgraceira que foi o ano de 2017”

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Ter, 28/07/2020 - 10:00


Carlos Aguiar é agrónomo e terminou o curso em 1987. Pouco tempo depois veio para Instituto Politécnico de Bragança, onde é professor e investigador. A agricultura e a botânica são a sua paixão, que diz ter nascido com ele.

Há uma relação fundamental entre a espécie humana e a realidade botânica e zoológica, aquilo a que chamamos a inter-relação ecológica. Mas o que acontece é que, no último século, há uma percepção de que a espécie humana estará a provocar uma situação apocalíptica. Parece que estamos a caminhar alegremente para a extinção da espécie humana.

As espécies têm, em média, uma duração de 10 milhões de anos. Portanto, a única coisa segura sobre a espécie humana é que um dia se vai extinguir, isso é seguro e aplica-se a todas as plantas e animais. O futuro é algo imprevisível. O que a história geológica e a história da vida nos conta é que há períodos em que as coisas mudam muito rapidamente, muda o clima, há períodos de extinção e, esses períodos, explicam explosões adaptativas, aquilo a que chamam o aparecimento de novas espécies. Portanto a história da vida da terra é feita de períodos de extinção e períodos de estase. Obviamente que o nosso efeito no planeta é muito significativo e à escala geológica vai ser lido como um período de extinção.

Mas estará o ser o humano a contribuir para essa extinção?

O planeta é finito e tem recursos finitos e nós, como os outros animais, temos que nos alimentar e ter um sítio onde nos abrigar e há uma fatia, cada vez maior, desses recursos que estão a ser capturados pelas sociedades humanas. A questão que se põe é se esse processo de captura excede ou não aquilo que o planeta nos pode dar. A evidência mostra que sim. Há uma prova disso mesmo, que é o consumo de combustíveis fósseis. O carvão foi gerado no Carbónico, há volta de trezentos milhões de anos, e o petróleo, a meio do Mesozóico, ou seja, estamos na escala entre os 150 e os 200 milhões de anos. Estamos a usar algo que foi armazenado no subsolo e esse recurso é finito e todo o funcionamento desta máquina imensa que são as sociedades humanas depende de um recurso que é escasso e finito. A grande dúvida é se poderemos manter este grau de complexidade e esta abundância de humanos perante um cenário de escassez de energia e de recursos.

O apocalipse está mesmo aí como alguns anunciam?

O apocalipse depende da escala a que a gente vê. Se olharmos para o universo à escala do 10 elevado a 100 anos, o universo será uma sopa fria. Mas a questão é se vale a pena preocuparmo-nos com o assunto. Talvez não valha a pena. Temos que começar a trabalhar o futuro seriamente.

Não se trata então de vermos o apocalipse na próxima esquina mas de podermos gerir esta realidade, o nosso presente e o nosso futuro?

Sim, nem que seja porque nos torna mais proactivos.

E entretanto, vai-se encontrando uma espécie de bodes expiatórios, geralmente com cornos, neste caso parece que são as vacas que aparecem como a fonte fundamental da nossa tragédia. Isto tem alguma razão de ser?

Não, não tem razão de ser nenhuma. Quando nós falamos em animais, vacas, cabras, ovelhas, o que quer que seja, primeiro temos que contextualizar o problema. Não se deve apontar o dedo à espécie vaca, à espécie cabra, ou à espécie ovelha. Temos sim que analisar o sistema de agricultura ou de produção. Uma coisa é termos grandes extensões de engorda de vitelos com milho importado da Argentina, soja importada do Brasil, sabe-se de onde, e outra coisa é termos animais a pastar as nossas montanhas usando recursos endógenos. São coisas totalmente distintas. Se nós fizermos uma contabilidade em CO2 equivalente e olharmos para esses sistemas de engorda industrial, a verdade é que são sistemas que produzem grandes quantidades de gases de estufa, é um facto e não vale a pena esconder. Agora aquilo que estamos a descobrir é que alguns modelos de produção animal até podem ser amigos do ambiente, aquilo a que chamam agora carbono positivo. Nós temos evidências na produção de gado maronês ali para a Serra do Alvão e temos que analisar Portugal como um país pequeno. A verdade é que esses sistemas são provavelmente carbono positivos, isto é, termos os animais a pastar nas montanhas vai ter uma tradução prática de sequestro de carbono na matéria orgânica do solo. A libertação de metano que existe por vaca é largamente compensada pela sequestração de carbono e outros estragos que estão associados ao abandono maciço das montanhas.

Mas o consumo massivo de carne nas sociedades industrializadas, com explorações intensivas, pode efectivamente conduzir a que não haja essa recuperação da relação ecológica, mas um acentuar do “processo de envenenamento”?

Isso é factual. A verdade é que temos que pôr a carne no lugar certo do menu. A carne é um bom alimento e comer carne moderadamente não é prejudicarmos nem a nossa saúde nem o ambiente. Isso é o primeiro ponto, o segundo é que temos que diferenciar as carnes, elas não são todas iguais. Não é a mesma coisa uma carne que vem de um fidelote à volta de Lisboa, onde engordam os limousines e a nossa mirandesa ou maronesa, essas raças que estão associadas a sistemas de produção que se justificam mesmo em termos ambientais. Quero acrescentar que nós somos uma espécie omnívora é preciso não esquecer isso.

O consumo de carne anda muito associado ao aumento da esperança de vida e à melhoria significava da resistência a determinado tipo de doenças…

O que posso dizer é que a carne consumida de forma moderada e inteligente não prejudica a saúde, pelo contrário. A prova disso é que as crianças que não comem carne têm que ter algum suplemento.

Mas o aumento do consumo leva a que seja produzida carne industrializada…

O problema da carne industrial é muito complexo. Mas dentro dos meus modestos conhecimentos, as pessoas podem comer uma posta de vitela maronesa e estão a contribuir para um ambiente melhor. Posso assegurar-lhe que é assim. Agora, se estiverem a consumir uma posta que veio da Holanda e esteve a ser maturada e se parece com outras, já não é a mesma coisa.

Mas haverá uma altura em que o consumo de carne não responde ao número de população que há no planeta?

Até determinado nível de consumo de carne, a carne não vai comprometer outras produções. Há territórios onde o único uso que lhes pode dar e a gestão mais inteligente desses espaços é passando pela herbivoria. Muitas plantas que nós temos dependem da herbivoria. Os bovinos chegaram cá há muito tempo e houve uma co-evolução entre as plantas e os animais e eles têm um papel fundamental na paisagem. Aquilo a que chamamos em Ecologia de perturbação. Perturbação pela herbivoria é fundamental para termos ecossistemas saudáveis e equilibrados. Podemos concluir que, se não mantiverem a produção industrial de carne, provavelmente não teremos condições para alimentar conveniente mente a população mundial? O sistema de produção agrícola global depende de muitos factores, a produção animal não é o ponto crítico. Quando analisamos um sistema, a primeira coisa que temos que fazer é analisar os nós. O maior problema está no fósforo, nos fertilizantes fosfatados. É esse o problema humanitário numa escala de 50 anos. Porque os adubos fosfatados não são renováveis. De alguma forma tem que haver uma ciclagem disso tudo de maneira a criar sistemas de agricultura que são continuamente ciclados e não se perdem para fora do sistema. O problema do fósforo é que se perde e vai parar à água do mar. No futuro os sistemas de agricultura vão ter que ser de maior proximidade e vai ter que haver uma maior ciclagem desses nutrientes e os animais vão ter um papel fundamental nesse processo. Essa lengalenga de excluirmos os animais e deixarmos de comer carne isso é uma estupidez e não tem sentido nenhum.

Mas isso significa que não vamos conseguir produzir ao nível em que produzimos hoje? Temos que reduzir a população?

Provavelmente não. O mundo é finito e a população não pode crescer eternamente.

Relativamente à relação com a cobertura vegetal, o arquitecto Ribeiro Teles diz que limpar as florestas é uma estupidez, porque se está a tirar a componente orgânica que permite a renovação da floresta. Como é que isto pode ser dito de forma clara? Porque há medidas que vão no sentido de uma intervenção muito significativa, mas que podem levar a que a floresta muito limpa possa morrer daqui a 30 anos…

Eu acho que esse não é o nó principal. Não nos devemos focar por aí. O grande drama é talvez outro, chamado paradoxo do fogo. Se nós combatermos o fogo, combatermos o fogo, combatermos o fogo, o que acontece é que um dia o fogo quando vem queima tudo. E portanto, nós temos em boas partes do nosso território, áreas que estão prontas para arder de forma violenta e vai ser um problema.

A limpeza nessas áreas é uma solução?

Nalgumas dessas áreas, não sei muito bem como é que se vai limpar e a limpeza pode atingir valores do tipo mil euros o hectare. Como é que se vai tirar mil euros de um terreno que está baldio? Estão os portugueses disponíveis para pagar um milhão de euros para limpar mil hectares, que continuam a ter um risco de arder?

Então qual será a solução?

Nós já fomos encontrando algumas soluções. Por exemplo a expansão de frutos secos na Terra Quente e entrando já pelas bordas da Terra Fria. Isso foi extraordinário, os transmontanos deram uma lição imensa ao país. Em 2017 o país ardeu e Trás-os-Montes não, por causa do amendoal, da oliveira, do castanheiro… Portanto os frutos secos salvaram-nos dessa desgraceira que foi o ano de 2017. Mas temos um problema que são as montanhas e as zonas baldias, obviamente que passa muito por fogos controlados e pela herbivoria, pelas vacas, pelas ovelhas e pelas cabras.

Aquela solução que foi encontrada há 70 anos, no actual território do Parque Natural de Montesinho, que está cheio de pseudotsugas e pináceas, é para manter ou era melhor de outra maneira?

Quando eu olho para uma fotografia aérea e para as zonas de montanha a verdade é que vejo uma área gigantesca de vale e cúmero. A questão é quanto é que custou o hectare e qual foi o retorno? O retorno não foi nenhum ou muito pouco e de maneira nenhuma pagou o investimento, por isso eu assusto-me com a história de que vêm aí uns milhões e vão outra vez investir na floresta. É muito melhor termos eucalipto naquelas serras litorais, porque ao menos produz limpeza, do que estarmos a subsidiar coisas que vão ser para arder. Sobre as pseudotsugas, deram algum rendimento? As pseudotesugas eram para entrar na fileira de papel. Entraram? E os ciprestes que se andaram a plantar, entraram na fileira do papel ou outra fileira? Que eu saiba não entraram muito. Para que é que pagámos? Se nós nos habituarmos a colocar as coisas deste modo, qual é o retorno, o que é que a gente ganhou com isso, talvez as coisas funcionem melhor. Temos que ser francamente mais economicistas e a natureza agradece.

Qual é a sua perspectiva para o futuro deste país e deste mundo relativamente à alimentação e à ecologia?

Numa escala relativamente, curta de 20 anos, eu pessoalmente acho que a agricultura desempenha um papel, que se tem que fazer contas, que não se pode estar a desbaratar dinheiro porque sim ou por coisas que não estão justificadas. Resumindo, se tomarmos decisões com uma base técnica e uma base económica, as coisas hão-de funcionar melhor. Lembro-me na década de 80, os velhos agrónomos dizerem que o futuro disto são os frutos secos. Eu como jovem licenciado achava que eles estavam enganados, mas eles estavam certos e foram capazes de antever isso.

Jornalista: 
Ângela Pais/Teófilo Vaz