A escola e a ordem social

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A vida de um professor apaixonado pela sua profissão encontra muitos momentos de inteira satisfação, mas inúmeras frustrações vão inundando também os seus dias. Com efeito, recebemos cachos inteiros de alunos totalmente indiferentes entre outras disciplinas, à poesia dos textos e das artes em geral, ao discurso poético, aquele que se revela ser o único que não satura, aquele que indica movimentos interiores, algo de partilha latente (o triângulo de Pitágoras está recheado de poesia; quando um homem pensa, abre-se a eternidade). Uma turma de 12º ano completamente indiferente ao filme “O carteiro”, a um nocturno de Chopin por Maria João Pires, ou a uma pietá do museu Abade de Baçal é algo preocupante. Será possível com essas idades haver uma tal falta de ambição intelectual, de construção interior?
Recentemente, assistimos em Bragança às jornadas literárias na nossa cidade e estava bem patente esse “veredicto social”; um pequeno número de pessoas que num trabalho de arqueologia evoca a possibilidade de Camões ser oriundo duma aldeia perto de Montalegre ou o facto de Miguel Torga ser sempre actual, esqueço-me das “madalenas”. São estes discursos que, sem qualquer pretensão erudita ou pedante da minha parte, me inspiram estes comentários, uma simples tentativa de colocar em perspectiva algumas reflexões e correlações sociológicas.
Bourdieu referia que a consciência dos mecanismos reais de transmissão do património cultural é distribuída como o são as chances de ter sucesso no sistema escolar. Ou seja, refere o distinto sociólogo, que quanto mais o indivíduo é instruído, mais se torna claro que não é o dom que lhe permite ter sucesso. Ora isto coloca uma questão interessante do ponto de vista das relações entre a sociologia e a política (polis). Enquanto se torna claro que as desigualdades económicas florescem na consciência dos que são vítimas das mesmas, no caso das desigualdades culturais deparamo-nos com algo completamente paradoxal, a saber que a alienação exclui a consciência da alienação; as pessoas que se encontram privadas do mundo cultural vivem privadas também da consciência dessa privação. É recorrente um determinado discurso sobre os filhos; afinal quando não têm sucesso na escola é porque são pouco inteligentes e não porque emergem dum micromundo ou duma sociedade que talvez não lhes tenha transmitido o conjunto de saberes ou conhecimentos necessários; condição tácita para o sucesso na escola. Assim, esta inconsciência tem uma função política importantíssima na medida em que tende a fazer acreditar à maioria das pessoas que a hierarquia social, fundada sobre o sistema escolar, é uma hierarquia justa. É um aspeto extraordinário do sistema escolar, que este justifique a ordem social.  
O abandono escolar é efetivamente algo marcante, um barco com muitos passageiros, em que uma grande percentagem fica pelo rio. Mas o abandono pode ser também uma opção. Contudo, aquando das manifestações culturais, parece que só os académicos é que nos deixam a sensação de ser os únicos legitimados a intervir, a responder, a ter o direito à palavra, como se este sentimento dependesse do sistema escolar, do título escolar, da dignidade escolar.
A incorporação das estruturas sociais faz com que o mundo pareça evidente. Há uma inconsciência, é a ordem social incorporada, onde os eliminados não têm consciência dessa eliminação. Como foi referido mais acima, as pessoas que são destituídas do capital cultural não o vivem como uma privação, assim, aceitam-no naturalmente sem qualquer manifestação ou revolta.
Fica sugerido aqui um importante trabalho de investigação que possa analisar a estrutura social, que trabalhe sobre o sistema escolar e mostre como funciona o mesmo, na perspectiva duma máquina de legitimar a ordem social e a reprodução da divisão da sociedade em classes sociais, com possibilidades muito diferentes, com estatutos completamente diferentes. A privação ou despossessão de um lado, os privilégios do outro.
A ordem social é algo que não se vê, donde vimos e o que nós somos. Impõe-se deste modo um trabalho de escavação sobre a sociedade, sobre si mesmo, numa floração das estruturas históricas da dominação. 
Neste momento, até a escola parece também demitir-se das suas responsabilidades; quando não se ensina a História, quando não se ensina a Retórica, a Demonstração ou o uso da Razão e da Memória, todos os delírios podem funcionar. Vejamos à nossa volta, como os discursos que permitem ao instinto existir podem operar sobre as pessoas.      

Por Adriano Valadar