Falando de … Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira

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Livro de estranho nome, este! Com o Pentateuco a ser impresso em Faro, em 1847, considerado o mais antigo da tipografia portuguesa, o país caminhava a passos largos na senda descobridora. Transposto o norte de África e a cruzada de Ceuta, ao rei de Portugal chegam-lhe notícias da passagem do Cabo da Boa Esperança, ao mesmo tempo que Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva buscam informações sobre Prestes João.

Portugal era uma nação a expandir-se, a crescer para além do mar. Navegando junto à costa, vivia da ousadia dos marinheiros e dos epígonos do Infante D. Henrique. Da arte de marear poucos sabiam. O mundo era o desconhecido. O mapa-mundi do cartógrafo alemão Henricus Martellus regista as últimas viagens de Diogo Cão e de Bartolomeu Dias. Abraão Zacuto, judeu expulso de Espanha, radicado em Portugal publica o Almanach Perpetuum, obra de grande importância para a astrologia e navegação.

Se o mar fora uma miragem, agora ele era um objectivo, havia que transpô-lo. A tarefa era árdua. Uma vontade indómita atirava-nos para o desconhecido. Num país pequeno, com o litoral a apelar à aventura, à conquista e à evangelização, só nos restava concretizar o imaginado. Recursos humanos não escasseavam. Dobrada a costa de África, era preciso avançar para o ocidente. Fechado num secretismo calculista, Espanha, ao lado, disputava-nos o conquistado e o descoberto e a descobrir… Evitando uma possível querela, recusando a conflitualidade, Fernando e Isabel, de Espanha, e D. João II, de Portugal, concertam em Tordesilhas a partilha do descoberto e do a descobrir. Reúnem em Simancas os especialistas. Duarte Pacheco Pereira é um deles.

A partir de Damião Peres, sabemo-lo cabo de guerra em terra e no mar, explorador geográfico, cosmógrafo e roteirista. Nascido em Lisboa em 1460, viverá nas estrofes de Os Lusíadas, no Canto X, a partir da estância 12, com o epíteto de Aquiles Lusitano. Com um historial de sucessos que passam pela criação da feitoria-fortaleza em São Jorge da Mina em 1482, assim como na exploração dos litorais e do interior das terras guineenses durante anos. Em 1488 encontra-se na Ilha do Príncipe impedido, por doença, de realizar trabalhos da sua especialidade para D. João II, tendo-o encontrado Bartolomeu Dias na sua viagem a terras da África do Sul e da consequente passagem para a Índia

De uma vida conquistada à ponta da espada, muito tempo lhe sobrou para escrever sobre o que viu e experienciou.

Sem que tenha sido divulgado, na altura, por razões de confidencialidade, que contrastavam com a política utilizada por Castela, é natural que Duarte Pacheco Pereira tenha estado no Brasil em 1492 e 1498, portanto, antes de Pedro Álvares Cabral, aí ter aportado em 1500. O facto de o Tratado de Tordesilhas, celebrado em 7 de Junho de 1494, ter corrigido para 370 léguas a ocidente de Cabo Verde, a linha perpendicular traçada de polo a polo, leva os estudiosos a pensar que os portugueses já sabiam da localização exacta do Brasil.

Servindo-nos da História da Cultura em Portugal, edição do Jornal do Foro, 1955, de autoria de António José Saraiva, a Universidade foi completamente estranha à náutica nos primeiros tempos das navegações, embora se fossem desenhando cartas ou colecções de cartas para a navegação, dando conta do recorte do litoral, sendo instrumento de trabalho para os pilotos, estando em constante actualização, à medida que as incursões marítimas se desenvolviam. Eram chamados portulanos que se iam adaptando a novas necessidades, nomeadamente a aspectos que tinham a ver com a astrologia, fauna, flora e habitat. A partir da altura em que os marinheiros transpõem o Equador em 1471, novos campos de visão se deparam. Para os portugueses as necessidades de orientação são cada vez mais prementes

Dos descobrimentos falara Gomes Eanes de Zurara na Crónica da Guiné, cujo manuscrito encontrado na Biblioteca de Paris, em 1837, tenta mostrar ao mundo português, aquela zona recentemente descoberta, onde não falta, em forma de prólogo, tão ao gosto da época, uma saudação ao Infante D. Henrique “Ó tu, Príncipe, pouco menos que divinal”.

Em pleno período dos descobrimentos, D. Manuel sentiu necessidade de transmitir um cunho de cientificidade ao empreendimento. Muito pouco estava escrito. Talvez o Tratado de Tordesilhas tenha posto a nu a premência do rigor. Duarte Pacheco Pereira é a pessoa indicada. Com efeito, no Prólogo é possível ler:

E porque Vossa Alteza me disse que seria nisto fiar de mim, portanto preparei fazer

 um livro de cosmografia e marinharia, cujo prólogo é este que aqui é escrito, o qual

 será   partido em cinco livros.

 

Justificando o título da obra, esclarecerá no mesmo prólogo:

 

Tudo isto (com diligência, por serviço de Vossa Alteza, farei no melhor modo que puder

 e souber) neste livro será escrito, o qual “Esmeraldo de situ orbis” será chamado.

 

Se é verdade que a obra literária levada a cabo por Duarte Pacheco Pereira, é um livro de cosmografia e de marinharia, é nele que ficamos a saber que no Brasil, já por aquelas paragens, andaram navegadores em data anterior a Pedro Álvares Cabral. No capítulo II do mesmo livro, lê-se:

Bem-aventurado Príncipe, temos sabido e visto como no terceiro ano do vosso

 reinado do ano de Nosso Senhor de mil quatrocentos e noventa e oito, donde

nos Vossa Alteza mandou descobrir a parte ocidental, passando além a grandeza do   

mar oceano, onde é, achada e navegada uma tão grande terra firme, com muitas e

 grandes ilhas adjacentes a ela, que se estende a setenta graus de ladeza da linha

equinocial.

 

O livro é constituído por cerca de duzentas páginas, com um título não absolutamente original, herdado do geógrafo latino Pomponius Mela que no século I D.C. escreveu De situ orbis libri.

Embora o título esteja em latim, o livro apresenta-se escrito em português, sendo o original desconhecido, reputando-se de perdido. Presentemente, as cópias mais antigas encontram-se na Biblioteca Pública de Évora e na Biblioteca Nacional. A primeira edição foi publicada em 1892 pela Imprensa Nacional, sendo a segunda pela Sociedade de Geografia em 1905.

Servindo-nos dos estudos levados a cabo por Joaquim Barradas de Carvalho, o maior estudioso da obra de Duarte Pacheco Pereira, e de Jorge Couto, em A Construção do Brasil, edições Cosmos, 1997, é possível decifrar o título, anagrama onde se encontram associadas as iniciais em latim dos nomes de Manuel (Emmanuel), o soberano, e Duarte (Eduardus), o cosmógrafo. “De situ orbis” pode ser traduzido pode ser traduzido como “O tratado dos novos lugares da Terra, por Manuel e Duarte”.

Na segunda metade do século XVI, a Coroa espanhola atribuiu tanta importância às obras geográficas portuguesas, cartas de marear, relações de viagens, roteiros, etc., designadamente no Esmeraldo que Filipe II encarregou Giovanini Bautista Gesio, estrategicamente colocado como auxiliar de D. João Borja, embaixador em Lisboa, de adquirir cópias das espécies mais importantes que eram necessárias para a definição das suas posições nas negociações com Portugal sobre a delimitação de fronteiras no Novo Mundo e no Oriente. O espião filipino cumpriu com êxito a missão que lhe foi confiada, tendo remetido para Espanha em 1573, um significativo número de obras entre as quais figurava o livro de cosmografia e marinharia de autoria de Duarte Pacheco Pereira, cujo rigor e mérito são sublinhados pelo cosmógrafo italiano.

A leitura de Esmeraldo de Situ Orbis deixa perpassar a ideia de um roteiro onde se patenteia uma atitude científica, baseada num saber e experiência feito, em que damos conta de preciosas informações náuticas, geográficas e económicas, dirigidas a um grupo restrito, a que o “indouto vulgo” não tem acesso, embora nem tudo corresponda à realidade e ao conhecimento que hoje possuímos, rejeitando liminarmente a localização das nascentes do Nilo, no Cabo da Boa Esperança.

Com o conceito do “visto claramente visto”, de Camões, Duarte Pacheco Pereira inicia um ciclo de conhecimento baseado na observação que começará, de pronto, a dar frutos. Assim, no Colégio dos Jesuítas de Santo Antão, funcionará uma cadeira de Matemática ou “lição de esfera” pela qual o rei se interessou, mantendo desta forma um protocolo com o Colégio, pugnando pela manutenção dessa cadeira “muito necessária para a instrução dos pilotos e mais pessoas que costumam navegar para a Índia”.

Esmeraldo de situ orbis, um livro no mundo de Quinhentos, escrito entre 1505 e 1508, por um homem dominado pela voragem do esquecimento, falecido entre 1532 e 1533. É necessário e conveniente que seja lembrado, tal como o recordou António Dinis da Cruz e Silva, autor do Hissope, nas Odes Pindáricas, publicadas postumamente em 1801.

Se Duarte Pacheco Pereira esteve no Brasil em 1498, em livro recentemente publicado, A Confissão do Navegador, de Duarte Nuno Braga coloca-o no Brasil em 1493.

Do que foi escrito, há uma clarificação que deve ser feita: antes de Pedro Álvares Cabral no Brasil, Duarte Pacheco Pereira por lá andou. Acrescente-se, ainda, que Duarte Leite, na História da Colonização Portuguesa, publicada no Rio de Janeiro em 1921, dedicou muito do seu saber à descoberta do Brasil, desmistificou Os Falsos Precursores de Álvares Cabral, onde não cabe Duarte Pacheco Pereira. Acrescente-se que em Castela as descobertas ou as pseudo-descobertas eram publicitadas, ao contrário do que acontecia em Portugal, devido à política de secretismo adoptada pelos monarcas lusos. Afonso de Hojeda, Vicente Eanes Pinzon, Diogo de Lepe e Afonso Vellez de Mendonça são nomes apontados como falsos precursores de Cabral.

Em forma de conclusão e respondendo à questão – A quem se deve atribuir a descoberta do Brasil? Responde Duarte Leite – “ A descoberta do Brasil, como quer que entendamos o termo, cabe a Álvares Cabral; os quatro castelhanos a quem comummente a atribuem, não passam de falsos precursores”.

Sendo assim, não serão mais que percursores. Um fenómeno de metátese, que relega castelhanos para um segundo plano do achamento de terras de Santa Cruz.

O desejo de sabermos mais, para além do vulgarmente conhecido acerca do feito de Pedro Álvares Cabral, levou-nos ao Esmeraldo de situ orbis. O mundo aí era mais conhecido. Não perdemos o nosso tempo. Como o saber não ocupa lugar, ficámos satisfeitos por colaborarmos no constante interrogar neste universo dos porquês. O cepticismo e o dogmatismo lado a lado nas nossas vidas…

 

Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico