Falando de … Santo António

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O tempo que tudo traz e tudo leva, esse grande construtor, como alguém afirmou, vai-nos avivando a memória, recordando pessoas, coisas, acontecimentos que vão marcando a nossa existência. Vivemos momentos de grande turbulência que dificilmente esqueceremos e que marcarão as nossas vidas por muito tempo. A pandemia viverá connosco até ao infinito das nossas vidas, na memória que nos constrói no quotidiano. Lembrados serão aqueles que com o seu enorme talento fizeram deste país um lugar mais aprazível. Foram grandes os que nos deixaram recentemente para continuar a viver na eternidade do nosso existir: Isabel da Nóbrega, Manuel Ferreira Patrício, Jorge Sampaio e José Augusto França muito acrescentaram ao saber fazer que procuramos de forma denodada. Para esquecer, comportamentos tribalistas de gente a quem dão o epíteto de negacionistas, e do magistrado, em retiro de funções, que não se cansa de pronunciar dislates, em gente considerada pelos piores motivos, onde o impropério, o ódio, a ofensa e a afronta são dominadores dos seus complexos e do seu baixo nível, considerado rasteiro. A barbárie na rua numa demonstração da fragilidade e de alguma impotência das forças que nos protegem e resguardam. Agora, que nos preparamos para um virar de página nas nossas vidas, recordemos uma figura ímpar da nossa história pátria, lembrado como um santo popular, amigo das nossas casas, caseiro, celebrado em noite que não mais finda, eivado de folclore, casamenteiro quanto baste, esquecido como elemento fulcral da cultura portuguesa, que muitos desconhecem e bastas vezes subtraído à lusitana nacionalidade, não fossemos italianos considerá-lo seu compatriota. Falemos de Santo António, que no dizer de Mário Gonçalves Viana, um dos seus biógrafos, foi o primeiro português que se universalizou, reinando em Portugal D. Sancho I. Não havendo certezas quanto à data do seu nascimento, ela ter-se-á processado em Lisboa nos finais do século XII, entre 1190 e 1195. Ainda segundo Amorim Viana, os pais que deveriam ter pertencido à nobreza, fixaram residência junto da Sé de Lisboa, onde o filho terá nascido a 14 de agosto de 1195, tendo sido baptizado pouco depois na Sé de Lisboa. Por seu turno, Maria Cândida Monteiro Pacheco, escreve que Santo António terá nascido no findar do século XII, cerca de 1192. A quarta exumação de Santo António, feita em Pádua, em 6 de janeiro de 1981 e os estudos médico-patológicos e antropométricos levados a cabo, permitem o estabelecimento científico da idade com que morreu, de 39 anos e 9 meses. Terá iniciado os estudos na escola da catedral, na escrita e na leitura, na língua latina que utilizará nos seus sermões, nas disciplinas do Trivium (Gramática, Retórica e Dialéctica), em rudimentos de Quadrivium (Música e Aritmética), além de Cômputo e Canto. Aos quinze anos ingressou na comunidade dos cónegos regrantes de Santo Agostinho no Mosteiro de São Vicente de Fora, que era um dos grandes centros intelectuais de Portugal, fazendo aí, provavelmente a sua profissão de fé, depois de um noviciado de um ano ou pouco mais. Movido pela vivência cultural e espiritual, transfere-se para Coimbra para o Mosteiro de Santa Cruz, compartilhando o prestígio e a protecção real, bem como a reputação dos seus mestres. O Mosteiro de Santa Cruz, fundado em 1131, inicia a vida em comunidade em 1132, aderindo à regra agostiniana por volta de 1134, ocupando um lugar de relevo na recepção e difusão da cultura patrística, relacionada com a filosofia cristã nos três primeiros séculos. Nessa época, Portugal era um país em crescimento, a dar os primeiros passos, com muitas dificuldades, no âmbito da instrução, sendo os clérigos incentivados a aprofundar os seus conhecimentos, ou demandar o estrangeiro, em busca do conhecimento. D. Sancho I (1154-1211), por sua vez, criou bolsas de estudo para que os cónegos regrantes de Santa Cruz pudessem estudar fora do país. Em Santa Cruz, a regra agostiniana baseia-se nas seguintes virtudes fundamentais: obediência, humildade e caridade, assentando a humildade num vector fundamental na vida de Santo António. Entre o Mosteiro de São Vicente de Fora e o de Santa Cruz, onde permaneceu cerca de oito ou nove aos e é ordenado sacerdote, dominam as temáticas do Direito Canónico, Ciências, Filosofia e Teologia, a nível superior, satisfazendo- -o o Mosteiro de Santa Cruz a nível intelectual, embora o tenha desiludido no plano espiritual, interessando-se ainda por obras de Medicina, Astronomia e Aritmética, reflexos da tradição da cultura moçarabe e islâmica, ainda presentes numa fase em que Portugal almejava pelo alastramento do cristianismo por todo o território ,não deixando de ser influenciado pela filosofia islâmica e aristotélica. Em Santa Cruz de Coimbra privou Santo António com os frades franciscanos estabelecidos nos Olivais, por volta de 1219, que vinham pedir esmola ao rico Mosteiro de Santa Cruz, havendo a registar o martírio dos cinco franciscanos em Marrocos e cujas relíquias foram trazidas para Santa Cruz em 16 de Janeiro de 1220, por influência do infante D. Pedro, o que impressionou profundamente Santo António, numa época em que o espírito da cruzada dominava a religião católica, levando Santo António a trocar Santa Cruz pelo eremitério dos Olivais. É a partir da troca do seu estatuto de cónego regrante de Santa Cruz pela sua condição de frade menor franciscano que se vai alterar de forma radical a vida de António, o que provocou o abandono do seu nome de registo de Frenando Martins ou Fernando Martins de Bulhões, filho de Martin de Bulhões e Teresa Taveira, para António, em homenagem ao santo Eremita do deserto, patrono da pequena igreja de Coimbra onde se havia instalado a primeira comunidade de cristãos. Dominado por uma profunda inquietação, o desejo de propagação da fé, alheio ao perigo que a sua atitude pode comportar, o seu objectivo leva-o até Marrocos. Terá partido com cerca de 25 anos, portanto, por volta de 1220, para pregar aos mouros e selar a pregação com o seu próprio nome. Alguma confusão em relação à sua ida para Marrocos. Frei António terá adoecido em África, o que o obrigou a regressar. Na sua itinerância ter-se-á debatido com uma tempestade que o arrojou à costa da Sicília, junto de Messina, onde será acolhido por uma pequena comunidade de franciscanos, conhecendo, depois, São Francisco, no Primeiro Capítulo Geral, de Assis. Neste primeiro encontro, Santo António passa despercebido, não indo além de um frade menor entre outros, ficando isolado e desconhecido, retirando-se para o eremitério de Montepaolo, entregando-se à oração e às humildes tarefas do quotidiano, pondo de lado o labor intelectual. Essa experiência de vida ascética e contemplativa, de despojamento radical, marca profundamente Santo António que terá iniciado a sua condição de pregador no Convento de Romanha, em Forlívio, possivelmente, em 1222, quando lhe pedem para dirigir a palavra aos ordenandos franciscanos, não porque estivessem certos dos seus dotes da Escritura, mas porque se sabia que falava latim. Embora Frei António resistisse, acaba por aceder, provocando espanto em todos os que o ouviram. Forlívio marca o início de uma actividade de pregador que o levará numa itinerância que não terminará. Pregando e ensinando Teologia, quer em Itália, quer no sul de França, Bolonha, Toulouse e Montpellier são alguns dos muitos lugares por onde Frei António passou o seu talento e o seu saber. Eram os franciscanos uma ordem à margem de todas as instituições do saber e do poder, com ausência de regras rígidas para a organização prática da vida das primeiras comunidades e um desinteresse em relação aos problemas dos estudos na Ordem fundada em 1209, sendo a sua regra aprovada em 1215 por Inocêncio III, referindo a tradição que São Francisco de Assis esteve na Península Ibérica, onde terá, ele próprio, fundado o convento de Bragança em 1214. Mereceria Santo António por parte de São Francisco total confiança, tendo a seu favor a sua pregação. A actividade parenética de Frei António vai abrir-se a um outro campo, o do ensino, facto profundamente significativo na época e com imensa projecção nos séculos futuros, tendo São Francisco incumbido Frei António do ensino da Sagrada Teologia aos frades, salvaguardando a hipótese deperderem o espírito da oração e devoção. É através de uma carta. Cuja autenticidade os estudiosos não põem em causa, que São Francisco se dirige a António: A Frei António, meu bispo (…) Agrada-me que ensines a Sagrada Teologia aos frades de modo que se não perca o espírito da santa oração e devoção como está escrito na Regra. E é com Frei António que se inicia a Escola Franciscana, construída de um modo original; a parenética no primado da comunicação entre Frei António e. os ordenandos. O púlpito, instrumento maior do apostolado, de quem um dia saíra de Lisboa parasse integrar nos meandros da fé e da evangelização, não temendo sofrer a condição de mártir como a dos seus arquétipos de Marrocos. Entre 1224 e 1227, encontra-se no sul de França, pregando e ensinando Teologia em Toulouse e Montpellier, desempenhando o cargo de custódio da província de Limoges. A Tomás Gallo, em Vercelli, deve Frei António a sua iniciação na Teologia Mística. A morte de S. Francisco em 1226 e a convocação de um novo Capítulo Geral para Assis fazem regressar Santo António a Itália. Participa no Capítulo de Pentecostes, de 1227e aí é eleito ministro provincial da România. Fazendo da pregação o seu modus docendi para chegar eficazmente às populações, lembremo-nos do Sermão de Santo António aos peixes, que no século XVII inspirou o Padre António Vieira. Ao passar por Rimini, em 1223 onde a heresia marcava um papel importante, abrangendo grande parte da população e a escassez de cristãos era gritante, Frei António terá manifestado o seu desagrado, trocando a pregação a pessoas por ouvintes-peixes. Vós, meus irmãos peixes, entre todas as criaturas viventes e sensitivas fostes os primeiros que Deus criou, entre todos os animais do mundo; e vós sois os maiores em número; vós os maiores na grandeza (…) Ah peixes! E como a vossa E como o vosso me edifica! Ah homens! E como o vosso desprezo me exaspera (…) É Frei António um teólogo inserido na Idade Média, de cultura universalista, dotado de uma memória prodigiosa, ao ponto de o Papa Gregório IX afirmar que verdadeiramente aquele varão de Deus era a arca viva do sagrado testamento, situando-se em colisão num movimento de não perfeita sintonia com algumas linhas do próprio cristianismo. A Igreja tem o poder do saber e quem domina o saber e a cultura é a classe eclesiástica. O saber é de muito poucos, é daqueles que seguiam a carreira eclesiástica, sendo o poder decretado pelos religiosos algo de perigoso. Era Frei António um individuo superior, hábil para poder dialogar numa posição crítica, não sendo Prisciliano ou Orígenes, não se coíbe de criticar certas práticas seguidas, censurando aqueles que por vanglória da celebridade transitória e ambição dedicam o seu tempo às ciências lucrativas, sem recearem a queda, intervindo, ainda, nas lutas fratricidas que ensanguentavam a Itália, o que revela uma autoridade moral e uma grande coragem. Com uma actividade evangelizadora invulgar, são- -lhe atribuídos milagres, ainda envida, havendo quem o considere o Celícola Português. Conhecido como pregador, Santo António chega até nós como o santo popular, folclórico, próximo do povo, adorado por aqueles que desejam chegar ao casamento, afinal, ele é muito mais do que isso. Ele foi o primeiro português que se universalizou, representando nos tempos mais remotos o espírito errante, tal como D. Pedro, Camões, Fernão Mendes Pinto, o Padre António Vieira e tantos outros que em terras estranhas deram a conhecer a existência do país Portugal. Lembrado pelo Padre António Vieira, no sermão pronunciado em 1670, na Igreja de Santo António dos Portugueses, em Roma, no Sermão de Santo António, ouçamo-lo: Sem sair ninguém pode ser grande. Saiu para ser grande, e porque era grande, saiu. Nascer Português era obrigação de morrer peregrino. Nascer pequeno, e morrer grande é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para nascimento e tantas terras para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer toda a terra; para nascer Portugal, para morrer o mundo. Os sermões chegados até nós, 77, segundo José Meirinhos, ou 86 peças literárias, conforme escreve Francisco da Gama Caeiro, ambos grandes estudiosos do taumaturgo de Lisboa, são pronunciados na língua dos destinatários, embora escritos em latim, são formas resumidas, expostas como que em esquema e não exactamente o que o Santo pregou e que prendiam o entusiasmo das massas que o escutavam e o absorviam o dia todo, sem lhe darem tempo para comer ou descansar, segundo Francisco da Gama Caeiro, tendo sido compostos “pra honra de Deus(…) edificação das almas e consolação tanto do leitor, como do ouvinte, em razão de “os pedidos e o amor dos confrades, que tal empresa lhe pediram””. Foram os sermões publicados em edição integral e bilingue, em latim e português, divididos em Sermões Dominicais e Festivos, numa edição em 2 volumes, saídos em 1987, com uma tradução do Padre Henrique Pinto Rema. Em 1231, sentindo aproximar-se a morte, sofrendo um ataque de hidropesia, pediu ao seu amigo, conde Tiso, senhor de Camposampiero que lhe preparasse uma cela no alto de uma grande e velha nogueira para assim habitar entre o céu e a terra, falecendo a 13 de junho em Arcella, num convento das Clarissas, estando na companhia do beato Lucas Belludi. Depois de grande disputa em torno do local onde o corpo deveria ser sepultado, o que levou a que o mesmo se conservasse insepulto durante quatro dias, foi, finalmente, para Pádua, o que levou os paduanos a gravarem na abóboda da basílica a seguinte inscrição: Pádua feliz alegra-te Porque o Tesouro é teu Começaram os enfermos a acudir ao túmulo milagroso, ao pé do qual se recobrava a saúde. Daí em diante as peregrinações eram constantes. Não havia ainda decorridos um mês, quando a cidade de Pádua requereu a canonização daquele que começou a designar-se pela única palavra O Santo. Onze meses após o falecimento do taumaturgo português, a 30 de maio de 1232, o Papa Gregório IX, que o ouvira pregar e com ele dissertara em Roma, publicou em Spoletto a bula canonizadora. De registar que a canonização de Frei António foi a que se processou, até hoje, em mais curto espaço de tempo. Na Basílica de Pádua guarda-se o túmulo de Santo António, cujo culto depressa se universalizou, sendo Santo António de Lisboa ou de Pádua, o mais universal dos portugueses. A 16 de Janeiro de 1946, o Papa Pio XII, elevou Santo António à categoria de doutor da Igreja com o nome de doutor evangélico, sendo o primeiro da igreja franciscana. Sem nunca ter entrado em guerras, ou ter vestido a farda de militar, Santo António “entrou” para o exército português no posto de soldado raso, para o 2º. Regimento de Infantaria de Lagos, até ser promovido ao posto de general dos exércitos e D. João IV. Num sermão pregado na Baía em 1638, o Padre António Vieira refere-se à intervenção milagrosa de Santo António na defesa da cidade da Baía, havendo os holandeses levantado o cerco que tinham posto à cidade. Numerosos regimentos começaram a tê-lo como oficial ou como simples patrono, não gozando Santo António das mesmas prerrogativas em toda a parte, não havendo uniformidade e unidade na situação militar do taumaturgo. Em cada regimento atribuíam-lhe um posto diferente, conforme o grau de devoção da oficialidade, sendo no Brasil muito apreciado. Dada a circunstância de Santo António ser oficial do exército português, acabava por auferir um vencimento pago pela nação, como qualquer outro oficial. Não existindo a pessoa de Santo António, quem recebia essas quantias? Umas vezes eram as irmandades de Santo António, outras, o soldo deveria ser pago à Ordem Franciscana. Os vencimentos foram pagos até 1904, ano até que o marechal brasileiro Dantas Barreto determinou a suspensão desse pagamento por falta de fundamento legal, passando, finalmente, a general, figurando no Anuário Brasileiro, na lista dos oficiais da reserva. Muito mais haveria para dizer, contudo o espaço do jornal limita-nos a informação. Outros dirão mais e melhor. Como um trabalho desta natureza não se faz a partir de nihilo, ele só foi possível graças a leituras feitas de obras de investigadores notáveis, cuja bibliografia omitimos, por não se tratar de um trabalho académico, mas tão só jornalístico: Francisco da Gama Caeiro José Francisco Meirinhos Maria Cândida Monteiro Pacheco Maria Celeste Natário Mário Gonçalves Viana E outros mais em obras dispersas.

João Cabrita