NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Luís (Abraham) Henriques Totta (c. 1694 – 1768)

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Citando Mário de Sá, e avisando que “é pouco exacto nas suas informações”, o Abade de Baçal liga os banqueiros Totta a Bragança. (1) Na verdade a origem da família Totta deve procurar-se em Vinhais onde, em 1583, na sequência da visitação do inquisidor Jerónimo de Sousa foi preso e levado para Coimbra o torcedor de seda Afonso Manuel, juntamente com o filho Pero Manuel e a filha Isabel Álvares. (2)
De seguida, com base nas confissões feitas por estes e outros prisioneiros, chegaram às masmorras de Coimbra 3 irmãos de Afonso Manuel (3) e 5 outros filhos e filhas, (4) para além de quantidade de sobrinhos, que Vinhais foi então assolada por um vendaval medonho. Imagine-se: no curto espaço de uma década, entre 1583 e 1594, a inquisição fez ali pelo menos 150 prisioneiros!
No meio deste vendaval de prisões, escapou apenas o filho João Manuel “que andava por Castela”. Não cabe aqui analisar aqueles processos, que nos dão extraordinárias informações sobre a comunidade marrana de Vinhais naquela época e sobre a própria economia da terra onde sobreleva uma rota comercial muito intensa entre Vinhais e o porto de Vigo, na Galiza, onde ele ia vender sedas e cargas de “cânhamo” e comprar “londres” (tecidos ingleses).
Sobre o patriarca, diremos que ele foi batizado na igreja de S. Facundo e que esteve para ser padre, tomando ainda ordens menores que lhe foram conferidas pelo bispo de Dume D. André de Torquemada.
Da sua descendência, o primeiro que encontramos usando o nome de Tota foi o bisneto Manuel Henriques, filho de Isabel Henriques e Francisco Rodrigues, o abalroar, de alcunha.
Manuel Henriques Tota foi preso em 9.6.1660. (5) Dizia-se “tratante” mas a verdade é que ele tinha uma razoável exploração agrícola constituída por vinhas que lhe rendiam 140 almudes, um souto de castanheiros e 40 colmeias cuja “cera em pães” lhe rendia 12 mil réis. Podemos ainda incluí-lo na classe dos rendeiros, pois trazia arrendado o ramo da abadia de Quirás.
Era casado com Leonor Mendes e, de entre os seus filhos citamos dois: Francisco Rodrigues que foi casar com Ana da Fonseca, irmã de André Lopes da Silva, dono da quinta de Palhares, arredores de Bragança e António Henriques que casou em Vinhais com Francisca Henriques, natural da mesma cidade. (6)
António Henriques Tota e Francisca Henriques tiveram 9 filhos e vários estagiaram também nas cadeias do santo ofício de Coimbra. Um deles, chamado José Henriques Tota, acabou queimado pela inquisição de Lisboa, no auto da fé de 26 de Setembro de 1745. (7)
Outro de seus filhos chamou-se Luís Henriques Tota, o nosso biografado, nascido em Bragança, por 1694. Na sequência de mais uma investida da inquisição em terras de Vinhais e Bragança, antes que os prendessem, Luís, o irmão Francisco e as irmãs Ana Maria, Leonor e Isabel meteram-se a caminho de Coimbra e foram apresentar-se voluntariamente, em Agosto de 1716. (8)
Por 1723, Luís Henriques casou com Catarina da Costa, nascida em Rebordelo, Vinhais, filha de Luís Álvares Nunes, um rico estanqueiro do tabaco assistente na cidade do Porto e que também conheceu as cadeias da inquisição de Coimbra. (9) Em 1724 o casal morava em Lisboa, na freguesia de Santa Justa, onde nasceu o primeiro filho, que batizaram com o nome de Francisco. Ter-se-ão mudado depois para a freguesia do Socorro onde nasceu a filha Clara Maria Rosa, em 1734 e a Angélica, em 1739.
Luís Tota era rendeiro e Lisboa era o palco onde se andava ao par das arrematações. E talvez por ter arrematado a cobrança de rendas em Trás-os-Montes, o casal mudou a residência para a pequena aldeia de Peleias, termo de Nuzedo, Vinhais, onde teriam herdado alguns bens da família de Catarina da Costa. E em Peleias nasceram mais 2 rapazes (Alexandre e Rafael) e uma rapariga, Maria Rosa.
Por 1749, a sombra da inquisição foi pairar de novo sobre Vinhais e Bragança. E vendo prender familiares e amigos, Luís Henriques começaria a preparar o plano de fuga. Não apenas dele e da mulher e dos filhos, mas também dos sobrinhos, alguns dos quais estavam no Brasil e ele suspeitava que estariam na iminência de ser presos. Por isso se apressou a escrever a um deles (António Ribeiro Furtado) dizendo-lhe, em linguagem “criptada” que o tinham denunciado e devia apresentar-se na inquisição antes que o prendessem. Escrevia ele que “a miserável pátria está na maior consternação do mundo, que move a maior compaixão ver os desamparos que vão nela” e acrescentava: “o mais breve que for possível eu também me mudo para Lisboa”.
A carta foi escrita em Peleias, a 26 de Agosto de 1749. Em Janeiro seguinte escrevia de Lisboa a outro sobrinho, António Henriques França, ou Ferreira, que andava também pelas Minas do Brasil, recomendando-lhe o mesmo e informando: “cheguei a esta cidade com tua tia. E depois de 15 dias achei boas casas com vista para o mar”.  
A inquisição não dormia e, 1751, prendeu os dois sobrinhos, chegados do Brasil. (10) Seguiram-se outros familiares, nomeadamente a mulher de Luís Henriques Tota, o filho mais velho e duas filhas. (11)
Saídos da prisão, com penas mais ou menos leves, todos os membros da família de Luís Henriques Tota, incluindo os sobrinhos referidos, abandonaram a pátria em 1756 e foram ter a Bordéus. Ali abraçaram abertamente o judaísmo tomando nomes hebreus.
Luís (Abraham) Henriques Tota poucos anos gozou a liberdade bordelense. A mãe, Catarina da Costa, tomou o nome de Sara Henriques ou Mendes. A filha, Clara (Raquel) Maria faleceu solteira, em Bordéus em 1817. Também solteira ficou Maria Rosa, aliás, Rebeca, falecida em 1812. O mesmo se passou com Mariana, depois Lea, que “vivia de seus rendimentos” e veio a falecer em 1835. (12) Angélica (Ester) Maria Rosa foi a única filha de Luís Henriques a constituir família, casando em Bordéus, com Isaac Mendes Cardoso. Faleceu em 1813.
Os filhos, Francisco (Isaac), Alexandre (Jacob) e Rafael (Moisés) logo embarcaram para S. Domingos, o El-Dourado francês daquela época e ali prosperaram como proprietários e comerciantes. Vejamos uma notícia a eles referida:
- Jacob Totta, venu de Lisbonne avec ses frères Isaac et Moise vers 1756, est allé lui aussi à Saint-Domingue: le 26 mai 1784, il est négociant au Cap, rue Trois-Chandeliers, lorsqu´il conclut pour cinq ans, une société avec Isaac et il  mourra “propriétaire” en 1819. Il en va de même de son frère Moise, 63 ans, qui meurt en 1811 “négociant et propriétaire”. (13)

NOTAS E BIBLIOGRAFIA
1-SAA, Mário de – A Invasão dos Judeus, Imprensa L. da Silva, Lisboa, 1925. ALVES, Francisco Manuel – Memórias Arqueológico Históricas do Distrito de Bragança, V-CV.
2-ANTT, inq. Coimbra, pº 7512, de Afonso Manuel; pº 9322, Pedo Manuel; pº 10501, Isabel Álvares.
3-IDEM, pº 8546, de Francisco Álvares; pº 5146, Pero Manuel; pº 3260, João Manuel, que faleceu no cárcere.
4-IDEM, pº 2019, de Afonso Manuel; pº Henrique Manuel; pº 1043, Diogo Manuel; pº 10501, Beatriz Álvares; pº 551, Violante Álvares.
5-IDEM, pº 5299, de Manuel Henriques Tota.
6-IDEM, pº 9407, de Leonor Mendes; pº 6325, Francisco Rodrigues; pº 3602, Ana da Fonseca; pº 2900, Francisca Henriques; inq. Lisboa, pº 7630, André Lopes da Silva.
7-O processo de José Henriques Tota não foi encontrado e não consta dos ANTT, se bem que o seu nome conste da lista dos relaxados em carne no auto citado.
8-IDEM, pº 8482, de Luís Henriques Tota; pº 9058, Ana Maria; pº 8484, Leonor Henriques; pº 3610, Isabel Henriques.
9-IDEM, pº 9119, Luís Álvares Nunes.
10-ANTT, inq. Lisboa, pº 2801, de António Ribeiro Furtado; pº 2802, António Henriques França, ou Ferreira.
11-IDEM, pº 2622, de Catarina da Costa; pº 2627, Francisco Álvares Nunes; pº 2449, Clara Maria; pº 2457, Angélica Maria.
12-Mariana terá nascido em Alhandra por 1752.
13-Arch. France Outre-mer, notaires de Saint-Domingue, NeTach, nº 1620 ; Arc. Dép. Gironde, 4 E 935, fol. 15vº nº 159. Cit. CAVIGNAC, Jean – Dictionnaire du Judaisme Bordelais aux XVIII et XIX Siècles, Archives Départementales de la Gironde, Bordeux, 1987.

Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães