Nós, Trasmontanos, Sefarditas e Marranos - Onde de fala da Peste e dos judeus e médicos Trasmontanos.

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O fecho de fronteiras e as medidas de confinamento não são coisa exclusiva dos nossos dias, provocada pelo COVID/19. São coisa antiga e, na Torre do Tombo, guarda-se, por exemplo, um documento datado de 27.5.1680, com o título seguinte:

- Mandado para que sejam examinadas as pessoas e fazendas que entrarem em Trás-os-Montes vindas de Espanha, onde grassa a peste. (1)

O confinamento, por seu turno, não era feito da mesma forma que hoje, antes pelo contrário. Em tempos de peste, abandonava-se a casa do aglomerado urbano e procurava-se refúgio no campo, mesmo que fosse uma cabana.

Este comportamento aparece refletido em processos da inquisição, como o de Catarina Lopes, filha de Afonso Baeça e Branca Cardosa, moradora no Porto. Nos anos de 1580 começou a peste a grassar naquela cidade e ela e a família foram-se para a Quinta dos 4 Caminhos, nos arredores de Lisboa. (2)

Exemplos vários de fugas das cidades do Algarve para os campos, são apresentados pela Drª Carla Vieira, que conclui:

- Em tempo de peste, a cidade torna-se um local a evitar, onde a concentração demográfica facilita o contágio, a desorganização social é mais evidente e os seus efeitos mais assustadores. O campo surge como um espaço convidativo enquanto se aguarda o fim da epidemia. (3)

 

Ontem mais que hoje, em tempos de calamidades como a peste, surge a necessidade de atribuir a culpa do mal. E se hoje há quem aponte o dedo à China, outros culpam os excessos da sociedade de consumo em que vivemos, com a exploração desenfreada de recursos naturais e a utilização incontrolada de químicos na produção de bens. O coronavírus será a vingança da terra contra a poluição provocada pelo homem.

Mas há muita gente que interpreta a calamidade como um castigo de Deus e apela à necessidade de expiação dos pecados.

Este sentimento era muito mais forte em outras eras e chegou a extremos incríveis, como aconteceu com a peste negra (1347-1350), porventura o acontecimento mais marcante de todo o milénio passado, que, em algumas cidades matou até 70% de seus habitantes e provocou na Europa cerca de 20 milhões de mortos, correspondendo a 1/5 da população. (4)

Tal como o COVID/19, a peste negra veio de fora, trazida por mercadores e marinheiros e foi sobremodo intensa nas cidades. Interpretada como castigo de Deus, só havia uma forma de a combater: orações e procissões, para expiação dos pecados. E ganhou notoriedade uma seita religiosa denominada os Flagelantes. Juntavam-se em grupos, armados de correias, vimes e até correntes de ferro e percorriam as ruas flagelando-se e implorando a compaixão divina em altos brados.

Naquele tempo as comunidades judaicas viviam em ruas e bairros separados e notava-se que entre eles a mortandade era muito menor. Hoje sabemos que tal facto se ficava a dever ao hábito de lavar sempre as mãos antes das refeições e os pés quando se chegava de uma jornada, conforme preceito imposto pela Bíblia. Naquele tempo dizia-se que os judeus morriam menos porque eles é que foram os causadores da peste, envenenando as fontes, os poços e os rios. E, por toda a parte, foi uma tremenda caça aos judeus, acusados que sempre foram de matar Cristo, responsáveis pelo grande pecado que ficou afetando para sempre a humanidade.

Os Flagelantes viraram caçadores implacáveis de judeus, comandando multidões em ataques às judiarias, muitas das quais foram completamente arrasadas e saqueadas, desaparecendo mesmo, sobretudo em terras do sacro-império romano-germânico. A ponto de o papa Clemente VI se ver na necessidade de promulgar um decreto dizendo que os judeus não eram culpados e com grandes ameaças aos perseguidores.

Estudando o acontecimento, historiadores há que manifestam a sua admiração por ter ficado com o nome de peste negra e não com o de peste judaica, por tão feroz e cruel perseguição levada a efeito contra os judeus.

A peste negra não foi a única, antes eram cíclicas e frequentes tais calamidades. Em Portugal ficaram algumas datas marcadas por tais fenómenos e consequentes perseguições aos judeus, e cristãos-novos, depois. Aconteceu nomeadamente depois que foram expulsos de Espanha e acolhidos em Portugal e, depois, em 1504 quando, no seguimento do surto de peste houve incidentes graves com os cristãos-novos da Rua Nova, em Lisboa, que vieram a culminar na chamada matança de Lisboa de 1506 em que terão sido imolados cerca de 2 000 hebreus. (5) A propósito desta matança, diria Francisco Mendes, o Beicinhos, de Miranda do Douro, em 1544, na inquisição de Évora:

- Entende provar que estando ali juntos vieram a falar da matança de Lisboa dos cristãos-novos, que foi há muitos anos, dizendo que os de Lisboa eram a cabeça e não quiseram guardar a lei de Moisés e estar firmes nela e querer ser judeus, quando D. Manuel os mandou ser cristãos e por terem pecado, veio a matança de Lisboa. (6)

Em 1569, o nosso país conheceu uma grande peste, que alguns classificam como “a grande peste de Lisboa” e de que nós encontramos notícia também em Coimbra, no processo instaurado a Francisca Fernandes, de Vila Flor, que foi sentenciada em mesa, pois que por causa da peste não pode realizar-se o auto-da-fé.

Ainda em Coimbra, o ano de 1599 foi também marcado por igual calamidade, que ficou registada em vários processos da inquisição, com a peste a impedir a realização de autos-da-fé. Entre os prisioneiros de Bragança contaram-se os casos de Beatriz Rodrigues, Isabel Luís, Isabel Mendes e Isabel Gomes.

Por outro lado, e desde sempre houve a preocupação das pessoas em preservar a saúde, com os médicos a procurar remédios. Sobre o assunto, o mais antigo documento será o “Regimento Proveitoso contra a Pestelença”, um incunábulo do século XV, impresso em Lisboa, por Valentino de Morávia e do qual José Barbosa Machado Transcreveu algumas partes, nomeadamente o seguinte excerto:

- Em tempo de pestilência melhor é estar em casa que andar fora, nem é são andar pela vila ou cidade. E também a casa seja aguada, e em especial em o alto verão, com vinagre rosado e folhas de vinhas e alimpar o rostro e depois cheirar as mãos; e também é bom, assim em o inverno como no verão cheirar cousas azedas. Em Monpelier não me pude escusar de companhia de gente, porque andava de casa em casa curando enfermos por causa da minha pobreza, e então levava comigo uma esponja ou pão ensopado em vinagre, e sempre o punha nos narizes e na boca, porque as cousas azedas e os cheiros tais opilam e çarram os poros e os meatos e os caminhos dos humores e não consentem entrar as cousas peçonhentas; e assim escapei de tal pestilência, que os meus companheiros não podiam crer que eu pudesse viver e escapar. Eu certamente todos estes remédios provei.

Ignoramos quem fosse este médico. Mas temos notícia do Dr. Francisco Lopes, que fugiu de Bragança, por causa da inquisição, estudou em Montpeliier e Bordéus e foi o médico responsável pelo combate naquela cidade a uma epidemia que então varreu a França, tendo inclusivamente tratado o Cardeal Richelieu. Por isso mesmo foi agraciado pelo governo de França e contemplado com muitas regalias.

Referência também para o Dr. Jacob de Castro Sarmento, outro médico Brigantino fugido da inquisição que se tornou famoso em Inglaterra, na investigação de uma vacina contra a varíola.

Finalmente, citamos o Dr. Francisco da Fonseca Henriques, médico da nação hebreia nascido em Mirandela que foi pioneiro da medicina preventiva, da alimentação saudável e das águas minero-medicinais.

Notas

1-ANTT, Marqueses de Olhão, núcleo Varia, cx 48ª, nº 57.

2-Inq. Lisboa, pº 4235, de Catarina Lopes.

3-VIEIRA, Carla – Uma amarra ao mar e outra à terra Cristãos-novos no Algarve (1558-1650), Tese de Doutoramento, Universidade de Lisboa.

4- SERRÃO, Joel (Dir.) – Dicionário de História de Portugal, vol. III, Peste Negra, ed. Iniciativas Editoriais, Livraria Figueirinhas, Porto, 1971.

5-Ver: MATEUS, Susana Bastos; PINTO, Paulo Mendes – Lisboa, 19 de Abril de 1506 O Massacre dos Judeus, ed. Aletheia, 2006.

6-Inq. Évora, pº 9627.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães