O ocaso do voseio português

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Boa tarde, forte gente! Que os dias longos deste novo Verão vos preencham de boas afeições e perspetivas. Um Verão desimpedido e genuíno é de aproveitar com unhas e dentes. Numa época em que as gentes afluem ao Nordeste para estar e conviver, para tornar os espaços mais desentorpecidos, venho falar de comunicação entre pessoas, das palavras que nos saem da boca, vocábulos que definem distâncias, reverências e respeitos. Refiro-me a um bem pequeno, com três letras se diz a palavra vós. Falo do chamado voseamento ou voseio, o uso do pronome vós como forma de tratamento, concretamente aquele que é dirigido a uma só pessoa, que antes se aplicava comummente em algumas zonas do Nordeste Trasmontano. De filhos para pais, de filhos para tios ou avós, no fundo, de novos para velhos. Frases como “Onde ides?” ou “vós é que sabeis” aplicadas a um interlocutor singular, estão em profundo desuso, ouvindo-se já muito raramente. Por exemplo, no seio familiar usavam-se os vocativos “vós meu pai”, “vós minha mãe” ou “vós meu avô/vós minha avó, de que são exemplo as frases, “vós meu pai, vinde cá”, “vós minha mãe, que andais a fazer?” ou “vós meu avô, esperai por mim”. Há algumas décadas, os mais novos não se atreveriam a tratar parentes ou vizinhos mais velhos de outra forma. Este tipo de voseio não é recíproco, ou seja, efetua-se (ou efetuava-se) na forma vós-tu pois as pessoas mais velhas respondiam com a segunda pessoa do singular. É uma forma de tratamento única na língua portuguesa e amplamente desconhecida, inclusive pelas obras de referência dos estudos linguísticos. A Nova Gramática do Português Contemporâneo de Cunha e Cintra (2002) diz em relação ao uso do pronome vós para referir uma só pessoa, “empregar-se uma vez por outra, em linguagem literária de tom arcaizante para expressar distância, apreço social, tendo sido por muito tempo usado por católicos portugueses e brasileiros como forma de se dirigirem a Deus, prevalecendo o seu uso ainda nos dias de hoje” (p. 287-288). De igual modo, Teyssier (1997) em História da Língua Portuguesa afirma que “desde o século XIX a segunda pessoa do plural sai completamente do uso falado” (p. 60), assim como Biderman (1972) que é igualmente elucidativa na sua obra Formas de tratamento e estruturas sociais: “vós desapareceu de todas essas sociedades, conservando-se, enquanto forma, apenas na Argentina e no Uruguai (p. 373).” A verdade é que este vós nem desapareceu, nem saiu ainda completamente. O voseio português sempre viveu entre nós durante todo este tempo, embora despercebido entre as gentes raianas da Terra Fria trasmontana. Os vários séculos de hierarquia, de reverência e de respeito entre diferentes gerações e classes sociais redundaram nas últimas décadas em mudanças socioculturais que alteraram profundamente os cânones das relações interpessoais e das formas de tratamento. A massificação dos pronomes você e, sobretudo, tu, tem desertificado outras formas de tratamento nos mais variados registos e contextos sociais. Nesta perspetiva, podem-se reter as palavras de Cunha e Cintra (2002) de que o pronome tu era até há bem pouco tempo, no Português de Portugal, a forma própria de marcar as distâncias de superior para inferior hierárquico, enquanto hoje “tende a ultrapassar os limites da intimidade, propriamente dita, em consonância como uma intenção igualitária ou, simplesmente, aproximativa (p. 293). Refira-se também Gouveia (2008) quando defende que se vivem tempos em que o discurso público é modelado em função das práticas discursivas da vida quotidiana, como é disso exemplo a forma como os jornalistas se referem às figuras de Estado. É a quotidianização do discurso num sistema de base igualitária onde os indivíduos “não sentem que existam diferenças de poder e de envolvimento entre as pessoas com quem interagem” (p.98) redimensiona e transforma, por sua vez, as interações sociais e a percepção de nós e dos outros enquanto actores sociais. O voseio vós-tu constitui uma forma de tratamento única (e desconhecida) na língua portuguesa. O seu uso circunscreve-se a algumas localidades fronteiriças do Nordeste Trasmontano e tem origens dúbias que alguns autores associam ao mirandês, a dialetos asturo-leoneses, mas também ao português antigo. A inexistência de reciprocidade, o pronome vós é usado apenas unilateralmente, e o facto de a idade e a proximidade com o interlocutor serem factores determinantes no momento de escolher esta forma de tratamento, constituem características singulares e diferenciadoras, por exemplo, do usado no espanhol americano. Este voseio contém uma mistura única de familiaridade e reverência, de intimidade e respeito, de afetuosidade e consideração, de proximidade e distância, enquanto tratamento formal para relações próximas e informais. Como tal, o decair do voseio representa também o esvaecer do tratamento de formalidade dentro da informalidade expresso nas relações familiares e comunitárias em língua portuguesa. Apesar de todas estas particularidades, encontra- -se em acentuado declínio. O ocaso do voseio vós-tu das formas de tratamento do Nordeste representa também o ocaso de um determinado tempo e de uma determinada geração. Considerando-se uma língua como uma herança histórica e cultural que cada geração vai transmitindo à seguinte (Sausurre, 1974) é inteligível que existam usos que se percam e outros que se adquiram ao longo do caminho que as sociedades percorrem. Por hora, cabe ao bós do mirandês manter esta voseada herança nordestina como um dos vários desafios que se apresentam a uma língua minoritária. Em fim de ciclo ou de geração, o voseio vós- -tu do português no Nordeste Trasmontano é hoje pouco mais do que a reminiscência de um passado na iminência de acabar e contra o qual parece haver pouco a fazer. Nota: Ao longo destes anos é a primeira vez que vos deixo umas palavras não de todo originais, uma vez que se baseiam num artigo que publiquei o ano passado numa revista brasileira de linguística, denominado “O (o)caso do voseio português do Nordeste Trasmontano”. Obrigado. Um forte abraço!

Eduardo Pires