Professores, esses desconhecidos (Notas)

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Em tempos escrevi um texto sobre os professores onde fazia uma analogia entre as imagens refletidas dos professores e as de Dorian Grey( do “Retrato de Dorian Grey” de Oscar Wilde). Grey tem no reflexo do espelho a imagem dele sempre novo, imutável no tempo e os professores vêem na turma uma imagem que, também, não envelhece . Seria (será?) o seu reflexo. Esse texto tinha umas notas que por razões editoriais não foram publicadas com o artigo. As notas eram sobre a criação de personagens pelos autores de ficção (nota 1) e sobre o fenómeno do “apoderamento”(nota 2). As notas tinham sido introduzidas na altura em que o retrato de Grey passa a envelhecer em tempo real, logo passa a ter dinâmica própria e ao mesmo tempo que se apodera do espírito do retratado pois condiciona-lhe toda a ação. Dizia assim:
(Nota 1) É Barthes e a sua “morte do autor”. Segundo Barthes tem que morrer o autor para nascer o leitor. E este só nasce se as personagens tiverem vida própria, autonomia, liberdade, em suma, tiverem poder de decisão. Tem que morrer Wilde para nascer Grey. Em linha com esta ideia está este apontamento de Jorge Amado, que quando questionado sobre as razões dum casamento contra natura de dois seus personagens – ela bonita, doce, enfim, prendadíssima e ele um bardino, um mau “caratista militante” – disse ter feito tudo para evitar esse casamento mas em vão, não lograra vencer a vontade dos personagens. Ou ainda aquela história curiosa de Saramago com seu último livro “Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas” que não chegou a acabar. A ficção prendia-se com um caso de corrupção numa fábrica de armamento e quem conhecia toda essa maquinação era o Eng. da fábrica. Saramago, que registava em diário os avanços e recuos da sua obra, escreveu então que se o Eng. começasse a escrever um diário com os segredos que conhecia, seria o melhor que lhe podia acontecer, mas que isso não era garantido. Resumindo: tanto Saramago como Jorge Amado não conseguem controlar as suas próprias criações porque elas já tinham ganho “carta de alforria”. Criar é mesmo isso. É dar o sopro da vida. É o personagem criado libertar-se da tutela. Como em todas as religiões Teiístas em que o Homem é entendido como uma criação Divina que ganha autonomia, vida própria, responsabilização. Mas este conceito entra em confronto com o pensamento fatalista criando assim esta dualidade. Tenho liberdade de desenhar o meu futuro ou ele está determinado desde que nasci? Não é pois de estranhar que Cunhal experimentasse algum gozo quando criticava Victor Hugo, e para isso socorria-se de Goethe, acusando os seus “Miseráveis“ de não terem vida própria, de serem “ pau mandado”, de parecerem marionetas, de serem objecto de uma determinação. Assim, o fatalismo, determinismo, é desculpabilizante não exige responsabilização. “É o destino”, “tinha que ser”, “estava escrito”, “não havia nada a fazer” são alguns chavões fatalistas reveladores duma certa cobardia existencial. O fatalismo entende as criações como actores de uma peça teatral cujo guião tem um desfecho conhecido à partida. Criações permanentemente tuteladas pelo criador logo sem autonomia, sem responsabiliza­ção portanto inimputáveis. As­sim entende-se que Giovanni Papinni no seu “Juízo Final” ponha o Diabo a acusar Deus de todos as suas próprias malfeitorias argumentando que a matriz comportamental com que o tinha dotado não daria para fazer melhor. “Não tenho culpa. Sou assim porque fui feito assim” disse o Diabo.

(Nota 2) Seja este romance ( refiro-me ao “Retrato de Dorian Grey”) uma ficção que está para lá do místico ou tão só um expediente tático para suportar uma efabulação é um facto a preocupação do autor com o tema do apoderamento, da apropriação da personalidade, da cativação das vontades. Clarisse Lispector preocupou-se com o tema e falou dos nomes que se apropriam das coisas, coisas que se apropriam de coisas, pessoas que se apoderam de outras. (casos do dia a dia que tratamos de forma mecânica, de certa forma, confirmam isso: dizemos Katerpillar quando devíamos dizer tractor de rastos da marca Katerpillar porque Katerpillar é só uma marca; também Black&Deker refere um berbequim que pode ser de variadíssimas marcas; dizemos Jeep quando nos referimos a veículos todo o terreno quando afinal Jeep é só uma marca desse tipo de veículos. A marca, nome, apoderou-se de todos os objetos com a mesma função. No Brasil, fotocopiar diz-se Xerocar pois a fotocopiadora mais conhecida é da marca Rank Xerox. E o que é o “cimbalino”? É um café “tirado” de uma máquina cuja marca pode ser ou não “La Cimbali”. E porquê dizer que o pavimento de uma rua é em paralelo (de paralelepípedo) quando é quase sempre em cubos? E as “boutades”, que não deixando de o ser, são elucidativas como “uma lata de sardinhas de atum”, o” aviário de coelhos” não esquecendo a “alheira de bacalhau”). Virginia Woof também conjecturou nesse mesmo tema com a sua teoria dos espelhos côncavos. A própria Igreja preocupa-se com esse fenómeno tendo até um organismo, a Congregação para a Doutrina da Fé, para resolver questões de cativação da vontade por outrem ou por outra coisa, sei lá. E a nós ficamos com o silêncio das não respostas. O que são os possessos? Quem é Dr. Jekyll e Mr. Hyde? Quem é Drácula? E o Lobisomen? O que é estar com os espíritos? O que é o mau olhado? Para que servem os amuletos? Quem são os “tifosi “, esses adeptos de uma equipa de futebol, que a propósito de um (simples?) jogo tem posturas das quais, no dia seguinte, eles próprios se envergonham? Ficam, embora temporariamente, cativos de quê? E que dizer dos fãs de um qualquer cantor Rock que nos concertos, choram, gritam, entram em transe, transfiguram-se, parecendo autenticamente possessos? E que pensar daquele actor que depois de ter interpretado a figura da Abraham Lincoln numa peça teatral, (como se sabe Abraham Lincoln foi morto a tiro num camarote quando assistia a uma peça de teatro) passou o resto dos seus dias em camarotes assistindo a peças teatrais à espera de uma bala que fosse o desfecho” óptimo” de toda a sua encenação? Valerá a pena lembrar o requiem que foi encomendado a Mozart e que se apoderou de tal forma do espirito do autor destroçando-o, física e psiquicamente, atirando-o para uma morte que ele próprio achava um corolário lógico dessa sua última criação? O que é um “fetiche”? E o que é o “Santo Graal? E a espada do Rei Artur? E a premonição? E a ferradura na porta? E a superstição? E quem, num dia em que suspensos e tementes de uma revelação importante, não escolheu uma camisa, uns sapatos, um trajeto ou qualquer outra coisa onde nos pareceu ver inscrito aquilo que Afonso Henriques viu nos céus de Ourique? E o que é um exorcista? E quem é o exorcizado? E exorcizam o quê? E já agora um exemplo grosseiro mas com alguma graça: quando o Bibi, o da casa Pia, saiu da cadeia, vinha de fato escuro, óculos escuros e uma imagem em nada parecida com aquela dos tempos em que rebentou o escândalo, que era a de um homem acossado e sempre vestido de casaca vermelha. Isto levou a que alguém tivesse dito, que aquele não era o Bibi, porque o Bibi era o “gajo” da casaca vermelha. A coisa a apoderar-se do homem? Não sei.
E qual é a função da cabeleira dos juízes? E do vestido de noiva, do fraque ou da capa e batina? Será que o criador desses adereços e destas vestes talares quis tão só fazer um elemento distintivo e puramente estético ou por outro lado pensava que assim haveria uma certa cativação do espirito daqueles que os usassem? Em “morena de Angola “ Chico Buarque é assaltado pela dúvida – “será que ela mexe no chocalho ou o chocalho é que mexe com ela?”
Jude Law actor cinematográfico interpretou num filme a figura de um Papa. Numa entrevista sobre esse filme fez esta revelação: “Vesti a roupa de Papa e senti-me um super-herói. Aquelas vestes são como uma declaração de princípios.”
O hábito não faz o monge? Será que ajuda?
 

Manuel Vaz Pires