Fernando de Castro Branco

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Pátrias — Sobre Ars Vivendi Ars Moriendi, de Francisco Niebro/Amadeu Ferreira

"Pátrias” dá título a um poema tripartido integrante de Ars Vivendi Ars Moriendi, último livro de poemas de Francisco Niebro, pseudónimo de Amadeu Ferreira, de cuja vasta obra cultural e literária se salienta a ação preponderante na defesa da sua língua de berço, o mirandês. É um livro escrito por Francisco Niebro naturalmente em mirandês (segunda língua oficial de Portugal), como sempre que o autor fala, ou canta, pela voz deste criador poético, mas acompanhado pela competente tradução para português feita por António Cangueiro e Rogério Rodrigues. Contudo, avançamos desde já que todas as citações ao longo deste texto serão retiradas do texto original, em mirandês, porque é aí que o génio poético do autor mais se consuma, na íntima e pura captação do espírito de uma língua que dá forma e corpo a esta poesia.

Tomamos do poema referido, para título deste texto, esta ideia plural de pátria, pois de várias micro-pátrias se faz verdadeiramente uma pátria: espaço heterogéneo, sincrético e compósito; espaço íntimo, social e paisagístico, e por isso infinitamente mais rico do que a ideia totalizante de um todo indistinto. Pátria viva e vivenciada, pátria de carne e espírito, de fraternidade e cumplicidade: “– pátria, auga / que me mana de pessonas / de que guardo l retrato al fondo ls uolhos, / nun bénen ne ls lhibros de stória” (p. 151). Esta ideia plural de pátria está assim associada à ideia, nele diversa e plural, de línguas, pois que de um verdadeiro bilingue se trata, ainda que, afectivamente, não estranhemos que no coração do poeta, e até do falante, o mirandês ocupe a posição dianteira, ligeiramente mais encostada à emoção. Também porque a posição que ele ocupa no âmago da sua língua, a cimeira, a de vanguarda, faça com que todo o seu esforço se reconduza para a preservação deste património nacional que não está imune à ameaça de desaparecimento, como qualquer outra língua, de resto. Surgindo o mirandês, como todas as línguas, da pluralidade babélica, dessa fragmentação de uma língua global que se queria perfeita, é também aqui que o autor, na sua prática poética, procura essa espécie de regresso a um estado edénico inicial. O mirandês e o Planalto Mirandês funcionam para o poeta como uma espécie de retorno a uma linguagem edénica e adámica, mas também como uma plena fixação, um recentramento, um definitivo enraizamento do ser, no sentido teorizado por Gilles Deleuze; também um reencontro, de gesto em gesto, com uma terra desde sempre prometida, mas que as circunstâncias de uma vida errante a foram sucessivamente adiando, de exílio em exílio: “géstios tan pequeinhos que mal se fázen dar de cuonta, / risas que nun chégan a abrir flor, / raízes adonde s’amónan lúrias de silenço, / calor que bem cun sonidos de que palavras fazírun sues alas” (p. 151). E uma pátria requer uma língua que a diga, que a fale, que a cante, que dê voz e identidade aos que dessa pátria fazem parte, por exígua que seja a terra, por escassas que sejam as gentes: “ua lhéngua que quaije naide fala i mui poucos sáben / que eisiste, nien por esso deixa de ser um pedamiego / de l mundo, pequeinho ye berdade, / mas son siempre pequeinhas las brechas / por adonde ampéçan ls grandes sbarrulhos” (p. 147).

A língua é para Francisco Niebro inseparável da(s) pátria(s), como exuberantemente o afirma no conhecido, e muito traduzido, poema “dues lhénguas”, uma outra forma dessa boca bilingue de que Ruy Belo se fez eco. Línguas que não germinaram no falante da mesma maneira, deve dizer-se: “ua lhéngua naciu-me, comi-la an merendas buí-la na fuonte i rigueiros / outra ye çpoijo dua guerra de muitas batalhas”. Deve ter-se em conta aqui o carácter de ilha cultural do mirandês no contexto mais vasto do português e a própria relação geográfica e cultural do Planalto Mirandês no espaço do país. Esta problemática constitui a questão de uma vida para este autor, que foi não só um autor de pensamento e criação, mas igualmente um homem de ação, um militante de uma causa para ele decisiva: a autonomização e a preservação de uma língua e um modo de estar no mundo que lhe está naturalmente associado, porque, além do mais, é essa a consequência imediata da existência de uma língua: modelar e redesenhar um mundo.

Osvaldo Manuel Silvestre, analisando essa obra-prima que é o poema de Jorge de Sena “Em Creta, com o Minotauro”, acentua o carácter “extraterritorial” da grande literatura moderna: de Pound a Eliot, de Joyce a Pessoa(1). Nesta conformidade, podemos dizer que Francisco Niebro se afasta, não obstante o seu conhecimento do mundo e dos homens, de vasta abrangência cosmopolita, desse desenraizamento moderno para neo-romanticamente procurara as raízes mais fundas de uma cultura, de uma tradição, de uma antropologia, de uma etnologia, de uma identidade que resiste, de uma língua plena enquanto factor agregador e homogeneizador das restantes componentes. Contra a uniformização entediante e a massificação generalizada, opõe o poeta uma forma única de expressão, uma individualização, uma marca historicista, memorialista, libertária; a marca de uma pequena mas nítida civilização.

A escrita levada a cabo por Amadeu Ferreira em todos os géneros e níveis tem sempre como objetivo central captar o génio da sua língua, mas também uniformizar as variedades dessa língua, que embora com um reduzido número de falantes é suficientemente rica para integrar nela uma diversidade de falares e dialectos que nós próprios críamos ser fundamentalmente três (o sendinês, o raiano e o mirandês propriamente dito, que lança as suas raízes a partir de Duas Igrejas), mas que o profundo conhecedor da realidade geo e sócio-linguística que foi Amadeu Ferreira demonstrou serem bastante mais. De modo que a escrita, a escrita em todos os géneros literários, híbridos e não literários, funciona no autor também como factor de estabilização de um dizer que, não perdendo a riqueza da diversidade interna da sua língua, possa enfrentar o futuro com outros fundamentos.

Há quase sempre um autor que, pela forma como se apossa do génio da sua língua, carrega sobre si essa missão sagrada de reunir, integrar, dar forma e corpo aos fragmentos mais próximos ou dispersos que subjazem a uma língua:(2) Camões em relação ao português, Dante em relação ao italiano, Shakespeare em relação ao inglês, Goethe em relação ao alemão, Cervantes em relação ao espanhol. A Amadeu Ferreira coube, obviamente no seu espaço próprio e no contexto da sua língua, exercer este papel diríamos refundador do mirandês. Se esta língua é milenar no plano da comunicação oral, a sua manifestação escrita é muito recente, e após algumas experiências soltas, não sistematizadas, iniciou, efectivamente pela acção liderante de Amadeu Ferreira, um processo decisivo ao nível das práticas escritas em todos os planos da linguagem. E daqui decorre uma vertente central da escrita poética de Francisco Niebro: de facto, o saber com que se apossa das potencialidades comunicativas da sua língua faz com que estabeleça, superiormente, nos seus poemas e narrativas um processo de transição entre a antiquíssima língua oral e a recente língua escrita, o que leva o leitor a senti-la como algo natural, simples, dúctil, não forçado. A beleza da poesia de Francisco Niebro, também neste livro, passa em grande parte por essa capacidade de lhe instilar nos veios dos seus versos um suave tom oral que lhes dá vida, os tornam vivos e vívidos, de uma leveza, uma naturalidade e uma significância expressiva que não têm paralelo nos escritores desta língua e os tornam assim em objetos estéticos e artísticos de altíssima qualidade. Lemos os seus poemas em mirandês como se ouvíssemos uma voz imemorial: pura, límpida, encantatória, que vai expondo um pensamento, uma experiência, uma forma de vida, uma realidade quotidiana executada por um pequeno povo, num mundo longínquo, que o movimento tecnológico imparável ameaça submergir.

Vejamos alguns exemplos desta escrita oralizante, ou desta oralidade meticulosamente transposta para o texto escrito, neste caso para a poesia. A mágica atmosfera criada pelo poeta passa muito por aqui: “quedaba, de you nino, horas a ber las andorinas / a traier barro para fazer l niu i a arredundá-lo cula peitua; / apuis, ls andorinicos de boca abierta a spera de çubiaco / e eilhas nun bolo sien paraige a sticar la tarde, // a la nuitica, talbeç cansadas / de tanta strada de lhuç que chiçcórun cun sues alas, / ponien-se na carreira nun filo a chamar la nuite cun su prumaige negra” (p. 33). Ou neste outro poema onde o labor poético se confunde com o labor agrícola e o espaço da folha em branco com a terra a ser preparada para a produção: “ye agora l tiempo de mirar pula huorta, / ls sucos ancarreirados, poema de tierra i berde: / albantas te cedo pa le abrir la puorta al sol / i armar le l trabiado a la paixarada: // - yá scachou la frol l’oulibeirica, / San Marcos deixou quedar las brebas, mas inda me duolen / dues raleiras nesta malina de poner arbles para apuis de mi” (p. 43).

A sua obra quer-se e assume-se então como um documento durável, que enfrente o tempo com a perene serenidade de uma oliveira: “hei de poner ua oulibeira ne l huorto de casa i pedir-le al mundo que nun le faga mal: / mil anhos apuis, talbeç mais, / inda ls mius uolhos s’assomaran a la jinela de sues angúrrias / i a cada outonho han de passar por negras azeitunas; // culas oulibeiras daprendo a fazer caçuada de l tiempo, / mas la licion ye mui custosa de saber” (p. 73). Ou então, na senda do seu mestre Horácio, o poeta intenta um testamento que fixe a posteridade e que tenha por base o material indócil das palavras sobre um pergaminho, como numa bela alegoria é expresso no poema sete da série “Ls Trabalhos I Ls Diuses”, referente ao testamento de D. Fonso Mendes de Bornes, que transcrevemos na totalidade: “an 25 de febreiro de 1257, / D. Fonso Mendes de Bornes dou / un tércio de ls sous bienes para / ser anterrado ne l Mosteiro de Moreiruola; // ne l berano de 2011, fui me / a saber de l jazigo de / D. Fonso Mendes de Bornes / ne l Mosteiro de Moreiruola: // nien ua piedra quedou, solo / un sbarrulho de manos al cielo / reza, nien raça de / D. Fonso Mendes de Bornes, // puso sue sprança na dureç de la piedra, / sue fé na grandura dun mosteiro, mas / D. Fonso Mendes de Bornes yá solo / eisiste nun andeble i zlido pergamino, // andube pul cascalho de l sbarrullo / i sues beciosas silbeiras, pisei / la tierra i mirában me las seinhas de / ls pedreiros: era quanto quedaba de // l que un die mirou l jazigo de / D. Fonso Mendes de Bornes”. (p. 17).

Regressando propriamente ao livro, de onde na verdade nunca saímos, porque de nenhum dos seus livros sai o autor da sua luta pela implantação decisiva da sua língua, também pela sua arte poética é necessário usufruir o instante: precioso, movente e irrepetível, e para isso vai expondo poema a poema um modo de habitar a terra, de viajar no mundo, de ocupar os dias. É uma filosofia que enraíza nesse carpe diem horaciano, pletórica de ensinamentos estóicos e epicuristas, onde a importância das pequenas coisas, da forma como elas são percepcionadas e vivenciadas pelo sujeito poético, frequentemente em errância e deambulação, assumem um papel relevante quando não decisivo nesta sua arte de viver: “bai daprendendo l’einutelidade de las cousas amportantes, debagarico i de modo natural cumo l aire que passa”, (p. 131), ou em “guarda ls pequeinhos géstios, / ls sfergantes quaije sien tiempo, / ls sítios de que solo te quedou un zlido retrato na mimória: // ls cachicos de ser feliç puoden durar siempre na lhembráncia, / inda que nun pássen dun delor: / tem-los siempre a la mano, cumo quien tem de regar la huorta, / pa rejistir a la calor i atamar las fames de ti.” (p. 129). Uma errância no espaço, mas sobretudo uma errância no tempo; uma agudíssima percepção do tempo que passa: efémero, lábil, contingente, mas lugar único onde a beleza e o sublime se instalam e só aí podem instantânea e eternamente ser colhidos. Espaço percorrido, captado, percepcionado e integrado no próprio espaço interior do sujeito, ou o seu próprio espaço interior refletido no mundo circundante. Pode tratar-se do espaço rural das suas raízes ou o espaço citadino lisboeta que percorre. No primeiro caso, temos o tom dorido de um mundo que finda: “agora, na rue, yá solo mora ua pessona / i las casas arríman se a serbíren de caiato uas a las outras; / las paredes de piedra suolta súdan silenço, / cansado del mesmo; / hai puortas de que yá naide sabe la chabe, / ou lhembra la redadeira beç que fúrun abiertas, todo fui deixando de ser ourgente;” (p. 9). Ou, como se disse, a deambulação por Lisboa onde o intertexto de Cesário perpassa: “solo silenço quedou na nuite / de las puortas cerradas: / pul carreiron / de las rues, retómban fados / yá calhados: / a la falta de guitarras, / ressona l aire nas cuordas de ls stendideiros” (p. 33) […]: dá-me esta Lisboua / absurdos deseios de sufrir: / stou a passar na Stefánia, al lhado de / l Jardin Cesário Verde, i dá-me la risa” (p. 35).

Por vezes, o poeta enfrenta a sua condição mortal com uma ironia amarga e corrosiva, onde a crítica ao aparato social da morte é incisivamente causticado: “ne ls semitérios hai jazidos que relhúzen, guapos, i hai / foias rasas cumo lhombos de tierra” (p. 9). Daqui decorre igualmente o carácter sentencioso, aforístico de que frequentemente se revestem os seus versos. No fundo, é esta dolorida consciência do efémero que desencadeia a sua fala poética desde o primeiro verso, como podemos ver na forma como abre o livro com o poema significativamente intitulado “O Desespero de Orfeu: “Zde siempre tocou Ourfeu la moda de la muorte na sue lira / natural cumo pássan ls dies, triste cumo un mirar / que, nun sfergante, se bai i nunca buolbe” (p. 6). Esta música órfica é a música da sua poesia e a música da sua língua; esse “bruissemente de la langue” de que nos fala Roland Barthes(3) para traduzir precisamente o rumor da língua mais pura que, por ser viva, não pode abdicar da essencial impureza, esse efeito do real, que define o humano e a sua arte impura e o separa da obsidiante perfeição dos deuses. Daí que essa melodia órfica na voz humana se revista da condição precária do ser no mundo, habitando-o de leve através da sua fala mais perfeita, a poesia. Suster a vida através do fio contingente das palavras, procurá-la sem remédio orientado pelo fio da memória, eis também a missão frágil e precária do poeta; as palavras contra o esquecimento, uma represa ameaçando ceder à força das correntes do Letes, que nem os deuses poupam: “L Lhetes ye agora mais abogado a mundiadas, / que nun páran de crecer i de rugir. I la moda / nun se calha, nun zléntan sous sonidos nas cuordas / que ls delores stícan até al anfenito. / Ls próprios diuses yá muitá feridos de muorte” (p. 6). Um paganismo perpassado de um panteísmo estreme vibra nesta invocação da morte enquanto espécie de eterno retorno, regresso às origens pela mão da língua original: “Un die, / – quando será’ – / hei de tornar / a estas peinhas, estas faias, / ala de aire feito, / siléncio lhargo / lhibartado yá de palabras, / suolto de angúrrias / que l tiempo arressaiou na piel de la tierra: // starei por ende, calhado / antre flor de xara i belhotrico de niebro, / até que sperte l Riu / cun sue corriente i sous cachones, / muito alhá las oulibeiras” (p. 79).

Uma dialogia sentenciosa de raiz pagã e panteísta aflora como se disse a cada passo, a cada poema. O poeta parece recusar o ensimesmamento, o fechamento numa interioridade radical, e abre-se a um “tu”, a um próximo que pode eventualmente ser o seu próprio “eu” distanciado, visto à transparência da razão: “nun cerres ls uolhos a las bistas / pochas, nun scondas adonde / l mundo quedou guiro, que nunca / nada de buono te trouxo essa manha / de te cansares a oupir pedamiegos / adonde colgar paraísos birtuales” (p. 117).

Dessa abertura ao mundo, esse “tu” funciona como espécie de alter-ego, mas também como o próximo com quem dialoga e o integra fraternalmente numa esfera humana de afectos e cumplicidades. Daí que a poesia de Francisco Niebro, não raro, assuma uma evidente função crítica, onde a instância testemunhal e o comprometimento humano são amiúde convocados. Cidadão e poeta confluem neste engagement com o semelhante, com o mundo envolvente, expressando-o esteticamente, tomando-o como referência, desencadeando, em simultâneo, a função crítica e a função estética na consecução do seu poema.

O regresso, mesmo o definitivo, é sempre à terra íntima, chão exíguo dessa outra pátria à medida do homem: terra-mater como nenhuma outra. Se bem que breve, nada lhe falta do que a uma pátria se exige: um povo, uma língua, uma história, uma cultura, uma economia de subsistência, um nítido recorte geográfico e humano. Existirá sem tempo, ainda que anonimamente: “hai quien nien sequiera saba que esta tierra eisista, nun conheça l modo de le falar, i muito menos las leis de le tener respeito, que la tierra tem ua denidade mui aparecida a la de las pessonas a quien le dá de quemer, essa denidade que crece pula bida de cada die cumo ua rodriga houmilde” (p. 126).

 

Notas:

1 - Cf., Osvaldo Manuel Silvestre, “Jorge de Sena, em Creta com o Minotauro”, in Sentido que a vida faz – Estudos para Óscar Lopes, Porto, Campo das Letras, pp. 461 – 463, 1997.

2 - Cf. Umberto Eco, Sobre Literatura, Barcelona, Debolsillo, pp. 96 – 101. 

3 - Cf. Roland Barthes, Le Bruissement de la Langue – essais critiques IV, Paris, Éditions du Seuil, 1984, pp. 99 – 102.

Ernesto Rodrigues: Habitar a Casa de Bragança

De há tempos a esta parte pensava escrever sobre o meu conterrâneo nordestino Ernesto Rodrigues, que desenvolve uma relevante carreira académica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e, como autor, pertencendo ao restrito grupo dos que poderemos denominar por criadores literários completos. Apresenta obra de grande valia como ficcionista (nos três subgéneros da ficção), poeta, dramaturgo, crítico, ensaísta, tradutor, incansável pesquisador de temas da literatura e da cultura, sobre cuja investigação faz assentar, para além das obras ensaísticas, também alguns dos seus romances, como é o caso da obra que hoje nos ocupa, A Casa de Bragança (2013), ou O Romance do Gramático (2011), incidindo na figura marcante de Fernão de Oliveira, que com a sua Gramática da Língua Portuguesa de 1536 ganhou o justo título de primeiro gramático da nossa língua. A nossa primeira intenção era abordar a sua vertente de poeta através do livro Do Movimento Operário e Outras Viagens, antologia meticulosa dos seus 40 anos de trabalho poético, mas após a leitura de A Casa de Bragança concluímos que, sem deixar de falar do poeta pelo intimismo e modelo de linguagem que percorre este livro, poderíamos alargar essa referência ao notável romancista que Ernesto Rodrigues é, com um conjunto já vasto de romances publicados.
Embora natural de Torre de Dona Chama, a cuja terra dedica um dos seus romances mais conhecidos, precisamente Torre de Dona Chama (1994), a sua profunda ligação à cidade de Bragança, por vivências e afinidades familiares, que marcam de resto a diegese do romance homónimo, está pois bem plasmada na obra, que assenta em três vectores primordiais que incidem no lexema alegorizante casa: Casa de Bragança no sentido da linhagem dinástica, casa de Bragança no sentido de lar do narrador autobiográfico na cidade, casa ainda enquanto sinédoque, no sentido mais abrangente da cidade que o acolhe, cuja história se propõe narrar em decisivos momentos históricos e quadros sociais marcantes. Acrescentaríamos uma quarta asserção, como não poderia deixar de ser num ficcionista que nunca se esquece, mesmo escrevendo em prosa, da sua condição de poeta, através de uma linguagem intimista, reflexiva, meditativa e contemplativa, minuciosamente trabalhada; poética no primeiro sentido do termo. Linguagem poética também no sentido heideggeriano de casa do ser, porque este é um dos livros de Ernesto Rodrigues onde o ser profundo do nosso autor mais habita.
Do ponto de vista histórico, Ernesto Rodrigues defende três teses fundamentais no seu romance, divergindo, nessa defesa, de Fernão Lopes, entre tantos outros. A  primeira é que teria realmente havido casamento entre D. Pedro e D. Inês de Castro. A segunda é que esse casamento não se teria realizado em Coimbra mas, justamente, em Bragança. A terceira é que o legítimo rei de Portugal seria D. João de Portugal e Castro, segundo filho de Pedro e Inês, nascido precisamente em Bragança, e não o seu meio-irmão D. João, Mestre de Avis, futuro D. João I.
Não pretendemos aqui desvendar naturalmente o real curso da História, mas as peripécias romanescas e a lógica do seu encadeamento, não está na mão do crítico literário questionar ou testar os fundamentos históricos, mas decompor a arquitectura minuciosa da diegese. Assim, tratando-se de um romance histórico, interessará fundamentalmente analisar como o sujeito capta pelo tipo de linguagem esse lugar que ele procura dar a ver miticamente, espiritualizando-o com passagens também elas míticas captadas na História de Portugal, nos momentos em que esta se cruza com a história da sua cidade. Romance histórico simplesmente, com um forte veio estético e artístico. Não nos parece que a obra apresente características típicas do romance histórico pós-moderno, embora haja alguns pontos de contacto, como não poderia deixar de ser num autor de uma funda preparação teórico-literária também nesta área. Mas centrando-nos em determinadas prorrogativas que configuram o romance histórico pós-moderno, podemos constatar que este romance recusa a vertente paródica, bem como a mistificação voluntária entre o verdadeiro e o falso ; o autor quis uma obra elevada, austera, em tom maior, que, entre outros objectivos, homenageasse uma cidade na comemoração dos seus cinco séculos e meio de história. Naturalmente, este facto condiciona o seu horizonte de recepção, visto que é necessário o conhecimento do topos brigantino para uma plena descodificação da dimensão histórica e estética da obra.
Pretende-se, por conseguinte, a narração dos fundamentos da cidade até praticamente à actualidade, através dos narradores autodiegéticos Afonso Roiz e Afonso Rodrigues. O primeiro habita o velho burgo e movimenta-se no âmago dos acontecimentos de Quatrocentos e, numa visão abrangente, baseado em testemunhos orais e vivências, dá-nos as origens e a evolução do antigo burgo até esse momento. Sucede-lhe na retoma da crónica da cidade o segundo narrador, Afonso Rodrigues, que praticamente da actualidade nos reconstitui, baseado em fólios do primeiro, os momentos decisivos da história de Bragança ao longo de cerca de um milénio. Em simultâneo, através desta estratégia diegética, o autor deixa atrás de si, bem nítida, a caminhada da família Rodrigues, ou Roiz, fazendo corpo com a cidade que habita, não obstante suportar errâncias várias com o infante e futuro regente D. Pedro pela Europa e a participação nas campanhas de Ceuta e Tânger: viagens, vitórias, derrotas, exílios, inerentes ao percurso da dinastia de Avis que acompanhou. Mas, sobretudo, salienta o enraizamento nas circunstâncias do tempo e da história que marcam a cidade, e que lhe deram rosto e identidade. História nacional, local e linhagem familiar entrecruzam-se e suportam a composição romanesca. A realidade cruza-se com a ficção; esta serve-se da realidade como material primeiro da obra literária, conferindo-lhe verosimilhança, fisionomia, historicidade.
Talvez seja útil apresentar brevemente a estrutura diegética e dialógica do romance pelas palavras do próprio autor, que tem uma capacidade exímia de ler a sua própria obra, assumindo-se deste modo como seu primeiro e privilegiado leitor. (Já nos foi dado assistir a vários lançamentos de livros de Ernesto Rodrigues e, sistematicamente, é sempre o próprio que os apresenta, em tom pausado, pessoalizado e de certa forma intimista para com a assistência, sempre numerosa, que o ouve e lê os seus livros). Seguindo esta sua marca autoral, e preservando a fidelidade ao fio condutor da acção, servimo-nos então de excertos das suas próprias palavras para resumir o enredo e contextualizar o tempo histórico:

“[…] A narrativa é organizada por Afonso Roiz, cujo pai tanto pode ser D. João de Portugal e Castro como o sobrinho D. Afonso, primogénito do Mestre de Avis e primeiro duque de Bragança. […] As andanças de Afonso Roiz pela Europa, com o infante e futuro regente D. Pedro (1425-1428); a participação no desastre de Tânger (1437), logo companheiro de infortúnio de D. Fernando, Infante Santo, em Fez (1443), a amizade com o segundo duque, D. Fernando I, e presença no arraial de Ceuta, donde trouxe carta de foral dirigida à nova cidade (20 de Fevereiro de 1464) – tudo isso, aventuras ouvidas dos avós e aventuras de um raro observador, retrata o Portugal de Quatrocentos, no concerto europeu e marroquino.
Essas duas partes – quanto ouviu sobre a cidade e os amores de Pedro e Inês, quanto viveu – ficaram em fólios que outro Afonso Rodrigues (nascido em 1956), agora, colige: não só acompanha, aos oito anos, as celebrações do quinto centenário do foral (1964), como, 50 anos depois, no mesmo dia 20 de Fevereiro de 2014 – quando acaba a história -, resolve enigmas da sua vida, junto à Domus Municipalis, inaugurando vida nova com outra Inês do seu tempo de estudante (1974; uma Inês Rodrigues, cujo apelido fazia temer serem irmãos, o que não se confirma), reencontrada 40 anos depois… Será este final indicação suficiente de que, também pelo nome, Afonso Roiz é filho do primeiro duque, Afonso […].
Esta hipótese conjuga o pensamento inicial do livro: reunir, em 2014, as linhagens de Inês de Castro (até à mãe Inês de Castro e filha Inês Rodrigues) e D. Afonso, duque de Bragança (até ao colega Afonso Rodrigues, segundo narrador), subsumidas no facto de todos descenderem de D. Pedro, pai de D. João de Castro e de D. João I, Mestre de Avis.
Deste modo, História local, histórias de famílias e momentos altos da pátria conjugam-se em demanda de afectos e celebração de Bragança, nos seus 550 anos de cidade”.

Este segundo narrador, o já referido Afonso Rodrigues, cuja idade e transes de vida coincidem com o autor, configuram aproximadamente essa abrangência entre autor, narrador e personagem que Philippe Lejeune tem por necessária à presença conceptual no texto do pacto autobiográfico. Tal facto faz com que a mundividência histórica e a vivência pessoal se cruzem e interpenetrem, dando ao romance uma curiosa historicidade poética, numa linguagem também ela, em simultâneo, ágil, dinâmica e de intensa sensibilidade estética. Há pois, do ponto de vista dos narradores primeiro e segundo, um longo percurso dentro de uma genealogia geracional que coincide com a história de uma cidade, que em determinados momentos se funde e confunde com a história do país. A vividez descritiva, o intimismo biográfico, a descrição topográfica da velha vila e da cidade actual, os lugares que centralizaram os principais acontecimentos de Quatrocentos e os mais recentes, estes decisivamente marcados pela transição e consolidação democráticas, conferem à narrativa uma poeticidade que não colide, antes complementa a historicidade. O espírito do lugar, que Ernesto Rodrigues tantas vezes convoca e constrói na sua escrita, está desde logo bem patente na forma como é iniciado o livro, num presente que encerra à partida um enraizamento do sujeito no seu espaço identitário, espaço esse que é igualmente um espaço psicológico, gnosiológico e ontológico, visto que mergulha nas raízes do ser e é uma página escrita na pedra em vista ao conhecimento das origens da cidade e de si mesmo:

“Eu tinha oito anos e nada sabia de mim.
Vivia em rua de filósofo – Oróbio de Castro […] o empedrado desaguava na Rua Direita, que nem por isso, e se chama dos Combatentes da Grande Guerra, mas eu descia a paralela Rua dos Gatos, em sandálias lestas, não me caísse uma varanda em cima.
Dirigia-me à cidadela como quem vai atrás de enigma – enigma quase, quase a resolver-se, cinquenta anos depois.
Estava longe de imaginar que desvendaria alguns segredos: de família, da cidade, mesmo da pátria. Amo este chão, que me fez quem sou, e desejo refrescar-lhe dúvidas, certezas, raízes.
No Largo do Principal, tomava fôlego: obelisco soletrava vidas caídas na França de 14-18; da igreja de São Vicente nascera quadra, que minha avó recitava amiúde […] subir o S invertido da Costa Grande não era pêra doce, irregular nos calhaus de xisto delidos pelo tempo. Vencida a ladeira, ao cimo, um portal quinhentista na então Rua Larga lembrava o primeiro arrabalde deslizando para o rio. Era memória antiga de burgo determinado que já no século XV transbordara da cinza do medo guardado em barbacãs” .

E poderíamos continuar por muito tempo sobre o traçado do mapa da cidade desenhado pelas palavras comovidas do narrador, onde os espaços exteriores convivem, como se disse, intimamente com o itinerário da sua emoção. Através de um processo retrospectivo, os narradores, cada qual recuando no tempo com base em fontes testemunhais orais e escritas, vão portanto seleccionando, filtrando, relacionando, reconstruindo o passado familiar e a memória colectiva da cidade, valorizando essa intersecção com a memória histórica da nação no período decisivo de Quatrocentos. Estamos assim perante camadas temporais e sociais enquanto verdadeiros palimpsestos que segregam por sobreposição as diversas fases da cidade e da linha genealógica dos narradores. Percurso no espaço, no tempo entranhado na fisionomia dos lugares, e no ser da personagem autoral, pela filtragem emotiva e por uma consciência interna crítica e vigilante. Também um percurso iniciático de conhecimento enquanto reconhecimento dos lugares e dos narradores mesmos nesses lugares. Daí, mais que histórico, que o é, sem dúvida, o que ressalta ao leitor é a voz sensível, emotiva de um sujeito em demanda, errância e deambulação no espaço-tempo de Bragança, que perpassa em fundo de episódios, circunstâncias políticas, movimentos populares, reificação e revisitação de mitos. Pratica desse modo o autor uma refinada arte da memória afectiva, sob a elaboração de um meticuloso trabalho de linguagem, sem nunca deixar enredar o fio longo e labiríntico da narrativa, embora, pela poeticidade do texto, sistematicamente a imaginação aja sobre os episódios, a reflexão sobre a acção, a arte da escrita sobre a escrita do real. Parece ecoar aqui a lição proustiana filtrada pela durée de Bergson, na incansável acção do escritor em busca do seu tempo perdido, até às fontes primevas. Essa acção do tempo é de tal forma estruturadora da narrativa que parece-nos não ser despropositada a referência ao roman-fleuve enquanto rumo e intencionalidade. 
Em síntese, confluem na obra as várias facetas que no início do texto apontamos em Ernesto Rodrigues: o ficcionista (na memória inventiva, recriativa e afectiva), o poeta (no trabalho de linguagem e no intimismo descritivo), o dramaturgo (na vivacidade e propriedade dos diálogos, tendo sempre em conta a diversidade das personagens e a sobreposição dos tempos históricos, dando-nos assim uma verdadeira diacronia de falares, personificando igualmente por essa forma a cidade), o cronista, o historiador, o investigador que fundamenta a narrativa com uma sólida base factual e cultural. Essa voz narrativa, esse sujeito que se interna em temporalidades e espaços vários, parece ter como arquétipo orientador os antigos livros de linhagens, procurando dessa forma uma unidade pessoal e social que abarque o sujeito e a sua circunstância, sendo que esta é decisivamente marcada pela cidade que habita, ou, melhor, foi habitando, visto que em cada demanda longínqua, cosmopolita, se seguiu o regresso, o recentramento do “eu”.
Uma passagem crucial em que o narrador convoca o seu leitor não sei se ideal se implícito clarifica a arte romanesca de Ernesto Rodrigues, pelo menos a arte que permitiu a construção deste notável romance, e no qual, reitera-se, o literário e o estético são ostensivamente destacados. Igualmente na passagem que a seguir transcrevemos se pressente o pensamento poético-antropológico de Giambattista Vico: “para ti leitor posto em assédio, construo bairro de letras, onde seja agradável passear; instalo outra casa de água viva, borbulhante, que refresque e alimente, ergo um castelo de enigmas, como na infância dos homens, disposto a ser conquistado” ; ainda uma curta frase que clarifica a alegoria poética da casa: “vista daqui, essa casa é imaginação, como qualquer infância” .

 

[1] Cf., Marinho, Maria de Fátima – Romance Histórico em Portugal, Porto, Campo das Letras, 1999. 

[2] Ernesto Rodrigues, A Casa de Bragança, Lisboa, Âncora Editora, p. 11. 

[3] Idem, p. 17

[4] Idem, p. 16. 

Douro: Pizzicato E Chula: Ou O Rio Poético De A. M. Pires Cabral

Escrevo este texto a um sol transparente de Janeiro, uma luz de cristal chega das lonjuras do Planalto e nenhuma reentrância deixa ao domínio da obscuridade. Não sei por quê, (ou, melhor, sei) esta claridade traz-me ao pensamento, e ao olhar, os poemas de A. M. Pires Cabral, também eles límpidos, concisos, austeros e puros, como este dia imaculado.
Este intróito, quiçá desnecessário, para dizer que reside no Nordeste Transmontano, algures, um dos mais notáveis poetas portugueses contemporâneos. É uma voz singular, que sobressai nítida na sua originalidade e na sua pessoalidade, inscrita em alto-relevo num pano de fundo paisagístico e magmático de rios, montanhas e fragas, o que lhe confere a inflexível ossatura, a intransferível identidade que ostenta. A sua palavra é serena mas firme, sóbria mas sofisticada, telúrica mas fina, depurada mas elegante, contida mas intrinsecamente emotiva, leve mas culta. Claridade, harmonia e equilíbrio de matriz indubitavelmente clássicos suportam cada poema, que se espraia suave e elegantemente na página, cuja brancura também vai bem com a luminosidade da sua linguagem. Os rios que desaguam nesta poesia só poderão ser os dos clássicos portugueses e universais – clássicos de todos os tempos no sentido que toda a obra superior é clássica ou integrando em si uma essencialidade clássica, como explicava José Régio na sua doutrinação estética, na Presença. Assim, nesta meticulosa nitidez de dizer repercutem ecos dos mestres fundadores e renovadores da língua: dos trovadores medievais a Camões, “vão as serenas águas deste rio” , do Padre António Vieira a Camilo Castelo Branco, de Almeida Garrett a Eça de Queiroz, de Cesário Verde ao Fernando Pessoa ele mesmo, para nos mantermos somente de entre os criadores pátrios. Dos seus versos emana uma luz intensa, mas à medida da retina humana, uma cintilância que envolve sem ofuscar, uma rigorosa consciência do lugar da palavra e do silêncio: “porque há lugares tão feitos / para a malha do silêncio, / que uma simples sílaba / apenas murmurada – embaraça” . A unidade de tom, de timbre e de visionamento do mundo é a marca de água de uma personalidade ética e esteticamente exemplar, que mantém em relação às suas raízes pessoais e culturais uma fidelidade sem hiatos. O seu discurso poético e as suas opções temáticas desenvolvem-se numa linha realista/naturalista (enquanto tipologia estética, que não enfeudada a realismos ou naturalismos de escola, ou de correntes histórico-literárias) que nos dá a ver o Real numa voz que é sobretudo fala, diálogo, respiração do ser no mundo, emanando de sua funda individualidade.
É pois sobre uma exímia tangência à literalidade que se desenrola a sua linha poética, linha de rumo de uma coerência inquebrantável e elemento básico de uma eficácia poética verdadeiramente incomum. Da terra nasce a obra deste poeta maior e é ao rés-da-terra que a palavra poética caminha, essencialista e imanentista, sem nunca se levantar em qualquer tipo de estridência dramática e muito menos melodramática. Mas não nos deixemos iludir pela acalmia de superfície, ela é possuidora de uma energia expressiva e comunicativa como poucas e é sem tergiversar que testemunha e denuncia os variados desconcertos do mundo, sobretudo o desconcerto de mentalidades que se abatem sobre uma terra e de uma gente esquecidas ou menosprezadas, situadas para cá do Marão, onde gostariam de mandar os que cá estão.
O livro que hoje aqui nos traz, como se vê no título, é Douro: Pizzicato E Chula: o Douro é, como sabem os leitores de A. M. Pires Cabral, um tema obsessivamente, mas nunca repetitivamente, abordado pelo autor: “tenho o rio na boca” , diz ele em Têmporas da Cinza. E este é também mais um livro sobre o seu rio, extraordinário a vários níveis: unidade de tema e de tom, vivacidade do estilo, reflexão metapoética, crítica irónica, cáustica, corrosiva até, de uma certa maneira de encarar a poesia: artificial, postiça, de pose ou de salão, neste caso de bojo ou de porão. Douro: Pizzicato E Chula é uma unidade poética subordinada ao tema da Viagem, uma verdadeira viagem no espaço, no tempo, no pensamento, no Ser. Viagem metapoética, ainda: poesia e poetas constituem-se em longas paragens obrigatórias. Uma viagem total, pois, não à volta do seu quarto, mas uma viagem na sua terra. E também ele poderia dizer: “e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crónica” ; neste caso uma soberba crónica e também reportagem poéticas.
“A Fábula do comboio e do barco”  não é mais do que uma representação global do livro por metonímia e sinédoque. Não é mister a fábula exigir como condição indispensável ter na narrativa animais como personagens, mas sim configurar uma narrativa alegórica cujo desenlace reflicta uma lição moral em que seja nítida a vitória do bem sobre o mal, em suas diversas faces ou metamorfoses: a fraqueza sensível sobre a força bruta, a bondade sobre o calculismo e o interesse, a humildade sobre a presunção. Aqui, podemos concluir que a lição desta fábula é a vitória da ancestral sabedoria da natureza perante a jactância dos poetas pretensiosos e ignorantes dos segredos do rio, da poesia das coisas perante a poesia das metáforas. Ao contrário da corrida entre o comboio e o barco, aqui, na verdade, não se registou “um empate técnico” , antes uma vitória do Douro por KO.
  O percurso desenrola-se portanto sob o signo do olhar e da poesia, e se o rio é uno e imutável, já a ideia de poesia, de viagem e de beleza variam conforme o ponto de vista dos viajantes, suas intenções profundas, suas formas de estar no mundo e na vida, isto é no Rio, que tudo isso simboliza ou, melhor, alegoriza. Uma estética natural constituída pelo rio, pelas montanhas, pelo céu, pelos vinhedos, pelas aves, pelos peixes, coexiste, em simultaneidade dialéctica, com uma estética e uma poética humanas. Mas se aquela une o humano e o natural, esta, pela artificialidade das palavras calculadas, das metáforas, das imagens, estabelece a separação, a fenda entre as coisas e a linguagem que as nomeia. Neste caso, este grupo de “poetas abrasados nos mais canoros zelos”  não se contenta em olhar, ver, nomear; dentro deles “têm uma oculta segunda intenção: / fazer a derradeira tentativa / de também se decifrarem a si mesmos, / e não apenas o que o cerne do rio / retém por nomear. // Sagazes poetas, que assim alimentam / dois coelhos de uma cenoura só” . Estes poetas ficam-se pela simples retórica da visão e da composição, postergam a linguagem fenoménica da transparência e da essencialidade, não a essência de raiz platónica residente algures na ideia e na pura contemplação, mas a visão pura de quem vê as coisas no seu natural habitat e conquista a beleza pura da simplicidade e da naturalidade. A referencialidade é pois o ponto de partida da poesia de A. M. Pires Cabral: também, sob esse prisma, poeta de excepção na nossa poesia, a tomarmos por boa a afirmação de Jorge de Sena, retomada por Joaquim Manuel Magalhães, de que haveria uma impossibilidade mental na poesia portuguesa de se escrever no arco da referencialidade.
Mas retomemos a nossa viagem dupla, por este rio acima, – ainda que esta tenha por destino Barca de Alva e não Santarém também ela abunda em digressões, como vêem, – na poesia de uns é o rio que corre, na poesia de outros é o artificioso curso das palavras que faz do rio pretexto para o outro texto, que por grávido de metáforas atroadoras é bem possível que afugente as aves “ou, pelo menos, as deixe / desfavoravelmente impressionadas” .
Deve dizer-se, em abono da verdade, que o poeta não se põe de parte dos seus compagnons de route, assume na pele, cúmplice e solidariamente, a condição precária da humana vaidade que aponta aos poetas-viajantes: “piscamo-nos os olhos, / achamos que somos os maiores” . Mas o Poeta vai mais longe, sente dentro de si um percurso inverso da viagem real: estranho, ontológico, desempenhando a imprescindível função de estranhamento própria da verdadeira poesia: “Sigo no barco que sobe o rio. Porém / não sinto que subo o rio: / sinto, em vez disso, / que o rio me sobe a mim” . A diferença entre a poesia do rendilhado, do arabesco e a poesia autêntica é que esta segrega o real nas suas entranhas, e as palavras são, à maneira do Crátilo, de Platão, coisas, seres vivos, ou que com estes se fundem e confundem. E essa poesia, como o Douro sentido e não só percorrido, “escalda como / uma febre nas dunas. Repercute / nas têmporas, magoa / as vísceras da alma” . Desta forma, ninguém sai incólume à leitura de um poema de A. M. Pires Cabral, porque ele não se funda no fogo-de-artifício retórico, mas no fogo magmático de cariz ontológico dos seres e das coisas. Não nos deixemos pois confundir pela ironia poética dirigida aos poetas abrasados e canoros, os mesmos que no “Prefácio” de Têmporas da Cinza eram classificados como “os piores de todos nós”, porque “perfuram o tímpano” . O Poeta não renega em momento algum a sua condição de poeta, seria aliás renegar-se no píncaro da superior missão porque veio ao mundo, ele renega simplesmente o artificialismo e o convencionalismo poéticos. Desde logo, A. M. Pires Cabral é um poeta no sentido atribuído pelo grande romantismo alemão ao poeta e à poesia, ou seja, categoria estética que percorre e é inseparável do homem no mundo e na linguagem. Aliás, ao observar os múltiplos planos segundo os quais se desenvolve a obra de A. M. Pires Cabral, ocorre-me outra observação de Jorge de Sena, referindo-se à sua própria obra, também ela diversa e plural, como é sabido: “sempre achei que a poesia é a minha principal criação, mesmo quando estou fazendo coisas inteiramente diferentes de poesia. Penso que o sentimento poético está sempre por detrás de tudo o que escrevo” . Sendo, por conseguinte, Pires Cabral um poeta ainda quando escreve em prosa, é enquanto poeta tout court que o seu talento atinge dimensões incomuns e renega, por conseguinte, com certa regularidade, a poesia e os poetas com aquela ironia com que o nosso Garrett renegava o Romantismo, precisamente na sua obra romântica maior, As Viagens na Minha Terra: “Romântico, Deus me livre de o ser” , o mesmo é dizer, “os poetas, repito / são os piores de todos nós” .
Pensamos que na velha disputa entre a origem da beleza superior, se a residente no mundo natural, segundo Kant, ou na obra de arte humana, segundo Baudelaire, A: M. Pires Cabral parece inclinar-se, neste e noutros livros, pelo filósofo alemão. Todavia, não sejamos ingénuos, estamos perante um altíssimo produtor de beleza artificial: apesar da naturalidade da sua escrita, ela não é mais do que o effet du réel, uma procura do modelo exemplar na natureza. Ele sabe que apesar da essencial beleza do seu rio e da sua montanha, elas perderiam bastante sem o sujeito sensível e contemplativo, estésico e estético, espectador e transfigurador, que toma essa matéria primeira para a destilar em matéria verbal indelevelmente inscrita na obra de arte de linguagem, ou seja, no poema. Esta questão entre o Real e as palavras que o cantam, sua pertinência ou utilidade, é pelo poeta insistentemente colocada; e este livro não foge a essa regra. Observe-se o poema “Palavras”: “Que queres, Douro, de mim? / Não posso senão palavras, / […] opor palavras contrafeitas / aos ruídos que salteiam este sítio / tão alegremente / […] Com tanto rumor nativo, / com tanto rumor sadio / - para que diabo, Douro, quererás / as intrusas / palavras inquinadas do poeta?” .
Continuemos então a seguir o périplo líquido e escrito, este mundo natural está entranhado até ao âmago pelo mundo humano: construído, destruído, reconstruído, de novo devassado. O Poeta comove-se, revolta-se, compadece-se: o presente cruza-se com o passado, que o mesmo é dizer, a vida sempre intrínseca e dialecticamente perpassada de morte, como se verifica em “Solar em Ruínas”, cujos destroços, mais que destroços materiais de uma construção, são metafóricas ossadas dos seus antigos habitantes e o testemunho de que a pompa não suspende, antes torna mais ostensiva, a acção da morte. Trata-se de uma meditação de carácter elegíaco que não deixa de denunciar a intemporal exploração do homem pelo homem: “Além, sobre o lado esquerdo, / um solar destroçado pelo tempo, / derruído quase até aos alicerces. // Nasceu do chão do suor como um pomposo / cogumelo, e dele prosperou. / Teve lustres acesos nos salões, / porcelana da China nos armários, / garanhões na estrebaria e no quarto das criadas, / tectos de castanho com lavores, / obra de artesãos remunerados a malgas de caldo. // E, por cima de tudo isto, /uma capela muito compenetrada / do seu papel de pára – raios. // Ei-lo porém decaído do fausto, devassado de animais daninhos / que nele nidificam e defecam. // Lastimável como um cão extraviado / do aconchego dos donos. // Resta um pano da fachada, onde / entre as heras que comem do granito / a pedra-de-armas ainda sobrevive / […]” . E nesta linha melancólica e elegíaca em que o sujeito viaja e se viaja, toma o itinerário em sua mais estreme alegoria.
O rio é, em todas as circunstâncias, uma lição de vida e de poesia, “ou não fosse o rio um espelho / antes de rio” . O seu funcionamento perfeito, a sua rigorosa selecção entre o essencial e o acessório, tornam-no num mestre, diríamos, o supremo Mestre e, nessa medida, “De Scientia” apresenta-se como uma soberba arte poética: “Comparativamente, / o rio sabe muito poucas coisas. // Não sabe, por exemplo, que este peixe /que agora mesmo lhe arrufou a tona / é um Barbus Bocagei. // Porém sabe que tem de ir e vai. /Sabe a rapidez com que deve ir / a cada momento. Sabe o caminho. / E sobretudo sabe o sítio / que o dedo do grande destinador / lhe apontou para recolher ao mar. // E eu? // Atento a todas as vozes, / entregue à libertinagem / de tanta sabedoria - / eu, amigos, que sei eu / de mares no fim da viagem?” .
É privilégio nosso, a Nordeste, bem no centro de múltiplos paraísos naturais, como este(s) Douro(s), termos entre nós, um homem, um intelectual, um escritor, um poeta com a dimensão de A. M. Pires Cabral que, como poucos, tem o segredo horaciano do “malho e da bigorna ”  para erigir a escultura poética. E sejamos gratos a quem dá muito e pede pouco, quase nada. Felizmente, a sua reconhecida contenção não o inibiu de pedir à vida um mínimo, para os seus leitores, essencial: “Não pedi demasiado à vida / nem a esta viagem: / uma guitarra apenas, uma voz” .

1 - A. M. Pires Cabral, Douro: Pizzicato E Chula, Lisboa, Edições Cotovia, 2004, p. 47.
2 - Idem., p. 45.
3 - A. M. Pires Cabral, Têmporas da Cinza, Lisboa, Edições Cotovia, 2006, p. 62
4 - Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, Porto, Porto Editora, 1985, p. 15.
5 - Douro: Pizzicato E Chula, ob. cit., p. 27.
6 - Idem., p. 28.
7 - Idem, p. 13.
8 - Idem.
9 - Idem, p. 14.
10 - Idem, p. 53.
11 - Idem, p. 17.
12 - Idem, p. 63.
13 - Têmporas da Cinza, ob. cit., p. 11.
14 - Jorge de Sena, cit. por Luís Adriano Carlos in Fenomenologia do Discurso Poético
– Ensaio Sobre Jorge De Sena, Porto, Campo das Letras, 1999, p. 14.
15 - Almeida Garrett, ob. cit., p. 55.
16 - Pires Cabral, Têmporas da Cinza, ob. cit., p. 69.
17 - Douro: Pizzicato e Chula, ob. cit., p. 24.
18 - Idem, p. 19
19 - Idem, p. 30.
20 - Idem, p. 35
21 - Idem, p. 46.
22 - Idem, p. 57.