Norberto Veiga

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O húmus poético de Fernando de Castro Branco, em Alquimia das Constelações

«A praça escurece de um excesso de luz / e ele hesita entre os simulacros da sobra.»

(Fernando de Castro Branco, 2005:13)

 

«O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos.»

Sophia, Arte Poética II

 

Fernando de Castro Branco nasceu em Duas Igrejas, Miranda do Douro, em 1959. É doutorado pela Universidade do Porto em Literaturas e Culturas Românicas.

É poeta, ensaísta e professor. A sua obra é vasta e reparte-se por vários géneros, sendo um pio sacerdote de Calíope. Em poesia, publicou os seguintes títulos: Alquimia das Constelações, Lisboa, Roma Editora, 2005; O Nome dos Mortos, Vila Nova de Famalicão, Atelier de Produção Cultural, 2006; Biografia das Sombras, Vila Nova de Famalicão, Atelier de Produção Cultural, 2006; Estrelas Mínimas, Amarante, Editora Labirinto, 2007; Plantas Hidropónicas, Cosmorama Edições, Maia, 2007; Marcas de Verões Partidos, in A Carvão, Poesia Reunida, Cosmorama Edições, Maia, 2009; Arte do Espaço, in A Carvão, Poesia Reunida, Cosmorama Edições, Maia, 2009; A Carvão, Poesia Reunida, Cosmorama Edições, Maia, 2009; Assinatura Irreconhecível, Cosmorama Edições, Maia, 2010; A Caminho de Avoriaz, Cosmorama Edições, Maia, 2011; Carta a Mim Mesmo, Cosmorama Edições, Maia, 2016; Desde Portugal, Cosmorama Edições, Maia, 2016.

Saliente-se a dúzia de obras poéticas que o autor já deu à estampa, apesar de ter começado a publicar tardiamente aos (46 anos), em 2005. Desde esse lapso temporal, tem publicado a um ritmo avassalador, acentuando a profusão que mana do filão inesgotável que nutre a sua poesia. A sua obra poética está, também, representada em diversas antologias de âmbito nacional e internacional e espalhada por outras publicações dispersas.

O poeta cultiva, ainda, a ensaística, sendo especialista em Albano Martins. Sobre este autor, publicou o ensaio Poética do Sensível em Albano Martins, Lisboa, Roma Editora, 2004. O rol de revistas em que o ensaísta escreve é considerável, por esse motivo, permito-me, apenas, referir: Colóquio/Letras, Revista da Universidade de Turim, Teia Literária e O Escritor.

Este ensaio tem o desiderato de apresentar ao leitor, sem preocupações demasiado herméticas, uma ‘iluminação’ desta obra assinalável a vários títulos, pois o escopo deste texto é despertar nos leitores o gosto pela fruição da poética deste escritor trasmontano, porque «O acto crítico, precisamente para poder seu uma iluminação, como afirma T. S. Eliot, não pode ser, todavia, uma abstração e não pode, diremos nós, ser uma reiteração do que outros, de outro modo, disseram já» (Cortez, 2019:15). Para a consecução deste propósito, focar-me-ei no livro de estreia do autor Alquimia das Constelações (2005), onde já são visíveis as linhas temáticas que enformarão a sua poética.

 

A obra com que o poeta Mirandês se apresentou ao público abre com dois paratextos relevantes para a sua descodificação. A dedicatória à mãe, à esposa e aos filhos, primeiros inspiradores e destinatários dos seus poemas, reforça os laços de sangue e a progénie familiar; as três epigrafes realçam as genealogias literárias, traves mestras da formação poética de Fernando de Castro Branco. A de Ruy Belo remete o leitor para o pendor narrativo e para o poema de fôlego que vai encontrar, realçando também a importância da escrita para ambos os poetas, «Escrever-te é a maneira de te ter presente». A de Álvaro de Campos acentua a matriz moderna da lírica do autor de Desde Portugal, na senda do heterónimo pessoano. A de Stéphane Mallarmé liga-se à musicalidade e à espontaneidade da composição poética.

Alquimia das Constelações é uma obra estruturada em cinco andamentos. O primeiro que dá título à obra é composto por 38 poemas; no segundo «Lugares do Tempo» o leitor encontra 18 poemas sobre locais da geografia poética, emotiva e sentimental, do escritor, que se espraiam desde Duas Igrejas, sua terra natal, passam por Miranda, Bragança, Vila Real, Porto, Lisboa, desaguando em Portugal, no derradeiro poema deste andamento «À procura de um país» (2005:75). A memória com o seu poder de revigorar, em termos literários, o passado, está patente nos 7 poemas de «Voz Reminiscente». A metapoesia e a reflexão sobre o labor poético opera-se nas 10 composições do denotativo título «As Máquinas Poéticas». Nos últimos 8 poemas, subordinados ao antitético título «O Lado Azul da Tempestade», a voz poética vai-se progressivamente enfraquecendo até se tornar um simples murmúrio inaudível ao ouvido humano.

Omitindo as inferências que o polissémico título da obra possibilita já escalpelizadas por Albano Martins no texto citado de seguida. O autor domina com mestria o arsenal retórico, comparações com elementos naturais: «como troncos devorados lentamente / numa fogueira de inverno» (p.29) e encavalgamentos, na senda de Eugénio de Andrade: «Deixas as palavras florescer na penumbra / dos segredos e o silêncio não ocupa todo / o vazio desse lugar inerme. Na voz com / que te calas latejam os gestos nus, como / aves poisando no céu o voo integral» (p.20). A poética de Castro Branco é uma poética metafórica, figura inerente ao processo poético, como argutamente notou Albano Martins: «José Fernando de Castro Branco é, além de um cultor de formas e ritmos variados, um exímio criador de metáforas. Metáforas são, pois, as sus “constelações”, metáfora é o seu processo de transformação alquímica do real em ouro poético» (2008:39).

As vozes da tradição lírica e literária são convocadas por Castro Branco para os seus poemas, estabelecendo-se um diálogo enriquecedor. Numa plêiade que vem dos gregos (Zenão e Epicuro), passa pelos latinos (Horácio e Ovídio), pela tradição bíblica, demora-se no renascimento (Camões) e no romantismo (Garrett), desaguando na modernidade e contemporaneidade (Baudelaire, Cesário, Pessanha, Pessoa, Drummond de Andrade, Ana Luísa Amaral…), pois a vida, na sémita de Horácio, eterniza-se na escrita e na leitura que o mundo venha a fazer das palavras escritas daqueles escritores que emudecem, mas não morrem.

Esta poesia escora-se na memória, uma vez que os poemas viajam pelo tempo passado recuperando os materiais concretos – as palavras – para resistir ao império da morte: «Lembro-me das manhãs, / ainda o frio morava nas pedras / e já nós ameaçávamos os pássaros / nos bosques / antes que o sol os acordasse / de luz» (p.80). Todo o poeta é um «pastor do ser», na formulação de Heidegger, sendo, por natureza, nostálgico de um tempo e uma unidade passadas e perdidas. Noutro poema do mesmo andamento lemos: «Lembro-me de uma primavera em que / o vento partiu os ramos tenros das roseiras, / e os pássaros se agitavam perdidos / no frio, debaixo do peso das nuvens, / sem saber o que fazer perante / o alarme interno da nidificação» (p.84). Aliás, a memória como pedra angular na poesia de Castro Branco foi, também, identificada por Albano Martins: «é na memória, que não na reminiscência, pontuada de transcendência e platonismo, que descobre a via de regresso ao passado. Com ele parte ao encontro dos seus paraísos perdidos, na tentativa de recuperação de lugares, imagens, sensações, perfumes, sabores, paisagens…» (2008:42).

O pendor reflexivo atravessa toda a obra, embora atinja o clímax no quarto andamento «As Máquinas Poéticas», associado às figurações do poeta. No poema «Esculpindo Manhãs» (30 versos para Albano Martins) o poeta identificando-se com o interlocutor, acaba por assumir-se como um vigia, um perseguidor e um artífice da palavra: «Vestes a inquietude do dia, e procuras / sem descanso um punhado de palavras / lúcidas, como quem procura uma gruta / para esconder o Sol. // Vigias o abismo discreto das palavras, os perfumes do som, a pele imponderável / do sentido, recolhes uma a uma as letras / com que cercas os ângulos, as pontas, / e com elas o canto das coisas treme / na madrugada, dentro dos olhos das aves. // E persegues a justa simetria das cordas, / o ponto exacto onde se cruzam / o silêncio e o discurso, a regra e a nublosa, / como se no vento das harpas e das cítaras» (p.23). Este belíssimo poema sobre o labor poético termina com duas singulares metáforas: «Agora o poema é uma pedra de sol, / um cometa de água e de sangue (…) // Procuras a lucidez das palavras / até à vertigem do poema» (p.24). Assim, ao poeta, esse procurador da lucidez das palavras, cabe a missão de fazer da poesia um passe de mágica de que todos estamos necessitados nestes tempos de indigência. Apresento, apenas, mais um exemplo do aturado labor poético do autor: «Por muito tempo desembrulhei a tarde / para encontrar o fio de um poema. Iluminei as árvores com a sombra / já distante do outono, instiguei ao voo / os pássaros poisados nas macieiras, / e antecipei por meses a primavera / para que rebentassem flores no inverno / e andorinhas montassem os seus ninhos / no bico do vento em pleno gelo» (p.90). Nestes versos está patente a figuração do poeta, um ser empenhado com o seu tempo, lutando com as palavras, para construir com elas realidades ‘surreais’ que possam acalentar a vida humana, pois o texto poético tenta, de forma contínua, perscrutar os sons do mundo, procurando fixar a realidade difusa do presente, único tempo que existe e a única certeza. O poeta é resiliente: «escreve-se o poema / contra as palavras, / e apesar das palavras» (p.38). Constata-se, assim, que escrever para Fernando de Castro Branco é sobreviver, ou reviver. Esta escrita, próxima dum realismo, à Cesário, escorada por uma linguagem que distende os versos, aproximando-os da narrativa, faz-se com precisão e mestria, onde se destila a dor Transmontana e Portuguesa, na senda de Alexandre O’Neil.

Na segunda estrofe da mesma composição, o poeta questiona o próprio poema, a poesia e todas as poéticas, com grande dose de ironia: «não vi chegar o poema que esperava, / mas estes vinte versos, / que embora nunca frequentem / os ambientes selectos das antologias, / me demonstrem claramente a / imponderabilidade do bucolismo / na construção de uma poética» (p.90).

Por último, uma breve referência ao tom disfórico e elegíaco da poesia do autor, consubstanciado, como já referi, num rumor triste, num silêncio dorido, sombrio, e, por vezes, pessimista, presente em versos como estes: «De vez em quando adormeces / em pleno dia / e ninguém chama por ti / e te diz, é tarde / e continuas quieto / ao sol» (p.43). Noutro poema onde há um diálogo intertextual com o Frei Luís de Sousa, que coadjuva a descodificação do poema, o desânimo do poeta vai mais longe: «Anoitece, repito, / e ninguém grita, ou se arremessa / da falésia, / nem drama nem tragédia / na comédia dos dias, / na farsa dentro dos ossos» (p.48). A passagem para o plural cristaliza o abandono a que o Nordeste Transmontano tem sido votado ao longo das décadas: «Dir-nos-ão que os rios são artérias agudas / no corpo do mar, (…) Dir-nos-ão as lentas palavras / na areia da nortada, (…) Dir-nos-ão que envelhecemos / esperando que passem os invernos / sucessivos, (…) Dir-nos-ão que os mortos exibem os símbolos / e as metáforas no silêncio com / que fustigam as raízes dos arbustos, / e as palavras que calam são a cor / escura com que vivem / outra vez. // E nós diremos que por aqui / enlouquecemos vorazmente / entre os gritos do sol / e o silêncio de Deus» (p.52).

Como se viu, as motivações desta escrita são várias e o seu tanger tenta conciliar a linguagem com a forma de expressar o real, pois o poeta sempre encarou a sua poesia como reflexão, questionação e jamais simples repetição da realidade vivida.

Poderá, em sinopse, colocar-se a eterna questão de Ruy Belo, inserta no poema “ácidos e óxidos”, «Que fica dos teus passos dados e perdidos?». A resposta encontra-se nos interstícios de um labor verbal simultaneamente alusivo e denotativo. O que fica, na poética de Fernando de Castro Branco, é a força da linguagem como lugar do desconcerto pessoal, vivido com prazer e dor.

 

Bibliografia:

BRANCO, Fernando de Castro. Alquimia das Constelações. Lisboa: Roma Editora, 2005.

CORTEZ, António Carlos. Voltar a Ler Alguma Crítica Reunida. Lisboa: Gradiva, 2019.

MARTINS, Albano. Circunlóquios II. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa, 2008.

Arado, um adágio peculiar na sinfonia poética de A. M. Pires Cabral

É extensa, reconhecida e apreciada a obra do nordestino A. M. Pires Cabral, em vários géneros. Hoje, cingindo-me à sua poética, enalteço a limpidez, a concisão e a austeridade dos impolutos versos da obra Arado (2009), vencedora do prémio de Poesia do PEN Clube (2010).

A obra abre com a composição poética que dá título ao livro «Arado», poema estruturado em três andamentos. O utensílio agrícola personifica o poeta, pois ambos «enterram» sementes na esperança de que «o deflagrar da vida / que vai dentro das sementes» desabroche e se transforme em frutos. A dicotomia presente/passado, acentua o desencanto atual do poeta perante o arado imóvel e sem serventia, esperando «a hora da corrosão». A simbiose entre o objeto e o poeta atesta-se: «Mas o arado perpetua-se em mim. / De facto, em horas de arriscada exaltação, / gosto de pensar nestes versos como sendo / um arado com que rasgo outras terras / mais voláteis e menos aráveis, / e nelas julgo deixar alguma semente (2009: 13, sublinhado meu). Saliente-se que, nesta opção poética do autor, o arado é associado à escrita, ou melhor ao objeto com que escreve, ou, lato senso, à poesia, como a entendia o poeta Carlos de Oliveira: «Escrever é lavrar, penso comigo, olhando esta Ereira onde se fecha hoje o círculo que o seu cantor traçou com a própria vida. E lavrar, numa terra de camponeses e escritores abandonados, quer dizer sacrifício, penitência, alma de ferro» (Oliveira, 1992: 421). Este esboço adequa-se ao perfil literário de Pires Cabral. As terras são as mentes dos leitores que não «se deixam rasgar / assim facilmente» (13). Em resumo, a composição termina de forma denotativa, regressando o poeta ao arado físico, embora com sentimentos humanos, cuja serventia está reduzida a «poleiro improvisado // pasto de ferrugem e carcoma, // lenha em breve» (13). Numa leitura alegorizante, o arado simboliza o envelhecimento das pessoas e das aldeias transmontanas de que Grijó é sinédoque.

Se o poema que abre o livro referencia o canto e a escrita do poeta, o segundo nomeia a «Terra mater» agora assumida denotativamente, como o terceiro poema nomeará de forma inequívoca. Saliente-se que «Terra mater» é o incipit do primeiro livro do autor Algures a Nordeste que apresenta o sugestivo subtítulo «Catálogo de Feios, Simples e Humildes». O programa poético do autor é enunciado logo na segunda estrofe, «Terra mater, ânsia dolorida de criar / radioso segredo de parir, / ó terra, eu quero-te cantar!» (2006: 9, sublinhado meu). Note-se que a propensão para a tripartição dos poemas cedo se enraizou no labor poético do escritor. A terra, o Nordeste, continua a interpelar o poeta com a sua voz irresistível e com renovada emoção a cada nova contemplação. Na segunda parte do poema é audível a voz nostálgica e desalentada do poeta, tecendo considerações metapoéticas ao considerar a época de formação como «tempos imaturos» e os seus versos de então «de má qualidade». O poeta reconhece que a palavra, qualificada ironicamente como «balburdia oca» é derrogada e que, no presente, a chave para entrar no templo imaculado da Terra mater é o silêncio, que, como assegura Heidegger, é o modo autêntico da palavra.

O processo poético é aprofundado no terceiro poema «Algures a Nordeste parte dois» (15), podendo ser lido como um manifesto poético do autor. O poeta derroga a sua primeva produção poética ao nomeá-la como «um estridente livro verde / relato tão afetuoso quanto imprudente» (15). Contudo continua a cantar a alma do Nordeste, embora reconheça, no encalço de Camões: «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades» e de Sá de Miranda: «tudo o mais renova: isto é sem cura!» (último verso do soneto «O sol é grande»), que «tudo está mudado do que foi». Ato contínuo, elencam-se as maldades feitas ao Nordeste deixando-o irreconhecível, um lugar «em ruínas, infestado de plantas ruins», onde já não resta «a mínima memória do Nordeste» (16). Mas o poeta resiste sempre, mantendo-se fiel como um cão (talvez o Argos da Odisseia, símbolo da fidelidade) dormindo no seu ninho e respirando o pouco ar que lhe resta. Aqui a desilusão é total, o trovador por mais intrépido que se afirme, reconhece que a palavra poética já não tem o poder, como no passado, de nomear o real e ao nomeá-lo o transformar, pois, segundo Aguiar e Silva, «o escritor, ao emitir o seu texto, não só transfigura o real nomeado ou aludido, mas reinventa e instaura o próprio real, o real absoluto» (1988: 334).

O poema «Sabedoria», da página 18, pode ser lido como o programa de vida do poeta. Este não aspira senão à aurea mediocritas. No presente, só esta moderação sensata poderá trazer alguma felicidade, em tempos de grande desagregação ética e moral. A composição desenvolve-se em torno de três verbos de ação: reconhecer, sentar e proclamar. Reconhecer a força da vida na paisagem nordestina e dar-se por satisfeito. Depois sentar-se «à sombra / de algum freixo» (18) a comtemplar a natureza filtrada pela memória, esperando com tranquilidade, numa atitude estoica, a hora derradeira. Por fim, proclamar, a plenos pulmões, que a terra é a única resposta para a fome eterna, isto é, para a sede de conhecimento que atormenta o homem. Este carme postula os três estádios do processo criativo. O primeiro reconhecer, isto é, estudar, documentar-se, recolher fontes; o segundo sentar-se a analisar a informação recolhida com serenidade e memória e, por fim, proclamar, ou seja, escrever para levar ao leitor as suas ideias, ou o resultado do seu estudo. Este processo é autofágico e cíclico, porque o poeta alimenta-se dos restos de um poema para escrever outro, como sustentou Carlos de Oliveira ao grafar: «cada poema, / no seu perfil / incerto / e caligráfico, / já sonha / outra forma» (1992: 223). 

O poema «Casa em ruínas» (19) pode ler-se em dois andamentos. Nas primeiras quatro estrofes, o poeta descreve a situação atual da casa, marcada pela ruína. A casa é a metáfora do homem, visto que ambos têm um prazo de validade, vão envelhecendo e chegam ao fim do ciclo. A segunda parte é marcada pelas cogitações do poeta que sente mágoa ao olhar para a casa e ao lembrar-se de todos os sonhos que ali floresceram e se tornaram inconsequentes. O poeta conclui, amargamente, que as casas, ou seja, as obras do homem não têm «a mesma estouvada vocação / de eternidade / que atormenta os seus donos» (20). Nestes versos finais, pode ler-se uma crítica ao modus vivendi do homem hodierno que resiste azafamado num desejo insano de abarcar tudo, acabando por perder o que é essencial à sua felicidade terrena, ou, recuperando as palavras de Horácio, à aurea mediocritas. O poema seguinte, «De volta a casa ou infância revisitada» (21), amplifica a mesma temática. A casa, em termos semânticos, já não é uma realidade exterior ou física, recuperada a qualquer momento. A situação é mais trágica, porque irrecuperável. A casa para o regressado está transformada numa ideia sentimental escorada nas emoções nela vivenciadas, tendo a paisagem humana desaparecido, a casa fica vazia. A referência bíblica acentua a impossibilidade de o filho pródigo harmonizar o conceito de casa que trazia arreigado.

Terminada a escalpelização das seis composições poéticas matriciais desta obra, o leitor depara-se com um conjunto de poema subordinados a um denominador comum, o reino animal. Esta novena de carmes, de cariz narrativo, reenvia a memória literária do ledor para as fábulas de Esopo, visto que todos encerram uma lição de moral.

O protagonista é o «Melro em gaiola» (23), sendo a ave um alter ego do poeta. O melro apresenta um traço distintivo relativamente às outras aves, o facto de rir e não cantar. Esta distinção é deveras significativa, continuando a encarar a ave com metáfora do poeta, pois o riso está um patamar acima do canto, uma vez que rir implica a difícil tarefa de compreender e inferir o intento do enunciador, ao contrário do canto. Assim, o escopo do poeta passa por provocar o riso no leitor. Este argumento corrobora a faceta reflexiva da poesia de A. M. Pires Cabral. A narrativa prossegue, afirmando-se que alguém, que odeia o riso, meteu o melro na gaiola, colocando-a na varanda para atormentar os transeuntes. Este alguém, na minha ótica, pode ter correspondência real nas instituições e órgãos de poder que tudo fazem para sonegar o direito à informação das populações, com o rol de consequências que essa decisão acarreta. De seguida, o poeta assevera que esta atitude prepotente não produziu os efeitos desejados, uma vez que o melro, não suportando o peso do silêncio, começou a rir, manifestando, desta forma, a sua natureza indomável. Assim, poeta e ave correm riscos conscientes, mas jamais se sujeitam aos interesses instalados, defendendo a gaiola/Nordeste Transmontano. O impulso, a força, a vontade e o querer é mais forte do que as circunstâncias, que o confinam, por isso defende a gaiola às gargalhadas, ou seja, com poemas. Na conclusão, o riso dá lugar ao pranto, ou dito de outro modo, a euforia inicial verte-se em disforia, num espaço a que o poeta se vê confinado por interferência de terceiros que lhe foram coartando a liberdade, com condicionalismos de toda a espécie.

O poema «Pardal» (31), onde ecoa o conto «Ladino» de Torga, apresenta-nos um sujeito rufião e de génio exuberante, até ao dia em que o gato lhe tira a vida e reduz toda a sua história a penas, ou seja, à morte. Mas, como reza o anexim popular, enquanto há vida há esperança e, por isso, o pássaro vive-a com «intensa vitalidade».

O poema «Irmã cotovia» (33) sugere nova lição de vida. A ave vive no chão, em silêncio e meditação, mas, quando necessita, voa para cantar e aliviar as suas penas, regressando, depois, ao seu habitat natural, onde continua a viver medianamente como se nunca tivesse voado. É inevitável a comparação entre a ave e o poeta, pois ambos respondem afirmativamente ao apelo terreno e aéreo/divino, embora a cotovia tenha mais apetências/asas do que o poeta. No cotejo canoro, o poeta perde também, porque a voz da cotovia é expurgada dos artifícios retóricos, logo mais inteligível do que a escrita poética. Ecos do Sermão de Santo António aos peixes, do Padre António Vieira, ressoam no poema «Formiga de asa ou o Ícaro da Mirmecolândia» (35), onde se desenvolve o tópico da ambição e do deslumbramento, configurado nos voadores do sermão.

A estrutura tríade, marca indelével do autor, do poema «Mantis religiosa» (37), apresenta na primeira parte um pastiche do «pai-nosso» ao hiperbolizar a gula do inseto e, metaforicamente, a do homem. Na segunda, onde são audíveis, de novo, ecos do sermão de Vieira, o inseto come as presas sem as matar, continuando a presa a agitar-se do lado oposto, ou seja, a natureza mostra no inseto o seu lado cruel, mas verdadeiro, isto é, a morte. Este relato alegórico representa a exploração do homem pelo homem, como cristalizou Vieira ao pregar que os peixes/homens se comem uns aos outros (Cap. IV). Na derradeira parte, o poeta, numa atitude meditativa, discerne o «meticuloso jogo / de pinças e peças bucais // e também aquela sábia indiferença / da vida pela morte e vice-versa» (39) e rejubila pelo facto de a natureza lhe mostrar o ângulo mais edificante e menos fotogénico. Em suma, a vida, mais visível no campo, e a morte, mais anónima na cidade, são os dois eixos que sustentam o ciclo eterno, não deixando lugar a eufemismos.

No conjunto de poemas cujo denominador comum é o reino vegetal, a composição «Glicínias» (40) lembra-nos a beleza exterior, ou seja, as aparências que embelezam a vida, mas que se traduzem numa «perdulária floração». Na tríade que compõe o poema «Parábola da erva» (43), mostra-se, por meio da alegoria, a necessidade de ser resiliente e de lutar contra as adversidades da vida, não perdendo o sentido de oportunidade. Por fim, afirma-se que é possível matá-la, mas é impossível assassinar a sua vontade de se perpetuar, porque mesmo cortada, a erva é estrume/sangue de outra que nasce. O mesmo ocorre no processo de criação poética, onde um poema é o húmus do seguinte.

A sombra enegrecida do vocábulo morte paira, como presença contínua e indesejada, sobre os próximos poemas. A reflexão poética parte do passado, como é recorrente em vários poemas, certificando o facto de a poesia de Pires Cabral dar grande relevo à memória/passado, onde «tudo era possível», no dizer de Ruy Belo, para desaguar no presente disfórico, apático e abúlico, lembrando Pessoa, onde a seiva do passado dá lugar à morte presente. A vinha, no momento da escrita, «está morta e não está: / perdura viva em mim» (47). A vinha, agora, não passa de uma recordação afetiva e remota que persiste na memória e que perdurará, enquanto o ser biológico viver e se perpetuará na obra poética do autor.

O espaço geográfico do livro é nomeado pelo poema «Os velhos de Grijó» (48). Estes anciãos, que «têm o sorriso / triste e bom de quem foi paciente / a vida inteira» (48), tudo fazem para: «carimbar o passaporte / para a eternidade». Os idosos são um espelho que consome e atormenta o poeta e, por isso, o autor os guarda «na boca», isto é, os imortalizará, no sentido camoniano, através do seu canto/poesia, numa extrema tentativa de os resgatar da lei da morte pela literatura. A este propósito, escreve Eduardo Lourenço: «A morte não é mais que tempo paradoxalmente solidificado. Contra ambos existe e resiste a singular e, no fundo, incompreensível atividade que chamamos, perdendo-a com esse nome, Literatura» (Lourenço, 1994: 11).

Cito, por último, o poema «Miguel Torga»: «Um clamor severo / nomeia a mais lavada rebeldia. // Os contornos da fonte declarados / sob a luz da palavra. // Um deus pressentido – Dionísio, / presidindo ao suor. // O outro lado / da semente esclarecido. // Uma tesoura da poda /podando rama e raiz. // Tudo somado: / a terra feita voz. // Sem frio, sem fadiga / ou morte alguma» (51).

Registe-se o rasgado encómio ao autor de Orfeu Rebelde (1958). A sublevação, a luz das palavras, o Douro, nomeado pelo referente Dionísio, a semente, a resiliência, em suma, «a terra feita voz» são os predicados que A. M. Pires Cabral atribui ao nativo de São Martinho de Anta. O poema pode ler-se como um autorretrato do vate, pois as características que ele atribui a Torga, também, se encontram na sua poética. O emulador almeja fundir-se com o emulado a tal ponto que entre as duas vidas e obras há uma simbiose quase total. A idêntica conclusão chegou Pedro Mexia: «Outros poetas foram escrevendo sobre Trás-os-Montes, com perspectivas geracionais diferentes (casos de Rui Pires Cabral ou de Rui Lage em “Corvo”), mas ainda persiste o cliché “telúrico” associado a Torga, imagem que “Arado” não só não desmente como, a seu modo, homenageia» (Mexia, 2009: 12, sublinhado meu). Em resumo, na voz destes trovadores ficam cristalizados e eternizados o espírito e o pulsar do homem transmontano.

O aglomerado de poemas sobre os meses constitui, em meu juízo, o movimento mais dissonante da sinfonia literária que Arado constitui.

Os próximos onze poemas causam alguma estranheza ao leitor, sendo difícil encontrar um inequívoco fio condutor que os una, embora se possam descortinar ténues teias semânticas: a imperfeição do mundo e da obra humana, no poema «Da fábrica do mundo» (64), onde se retoma a questão do riso. Pois quem projetou o mundo está a rir-se ao observar a nossa dificuldade de contornar «as imperfeições da fábrica do mundo» (64). As complicações tornam-se sofrimento perante a consciência delas, como se afirma no poema «Angústia»: «Coisa alguma é perdurável, / salvo a angústia de o saber» (66). A ideia pessoana de que o saber «insistente comichão» acarreta sofrimento é desenvolvida no segundo dístico do poema.

Os dois poemas da sexta parte, para além do diálogo intertextual, recuperam a questão do riso como sinónimo de entendimento agudo. No primeiro, «Yorick ri de quê?» (73), constituído por seis capítulos, subordinado à epígrafe do Hamlet (Shakespeare), o bobo Yorick ri das «impertinentes / cócegas da eternidade». Mais do que remeter para a vaidade terrena, tema aflorado em outros poemas, e para o memento mori (lembrança da morte) que torna o homem consciente da sua transitoriedade, esta composição, segundo penso, pretende refletir sobre o valor da obra literária que, como se lê no poema, é de tudo o que o génio humano realiza a mais perdurável, uma vez que tudo o resto, a começar pelo corpo, se reduz a pó e a nada. Aqui, ressoam os versos da ode XXX, do livro III, de Horácio que desenvolvem o tópico da imortalidade alcançada pela obra literária. A. M. Pires Cabral está consciente do valor literário da sua obra, embora não viva deveras atormentado com isso, pois confessa que «as cócegas da eternidade» o «têm feito rir antes do tempo» (73). O dístico com que termina o poema, retoma o riso como uma forma superior de conhecimento, como já asseverei atrás, visto que aqueles que se riem da morte, aqueles que a encaram como natural, como defende o estoicismo, acabam por sorrir e viver inteiramente. Na hercúlea empresa de viver, explanada no poema «Judas em Haceldama» (78) – sombra bíblica –, onde se relembra que o homem deve arcar com as consequências dos seus atos (que anacrónicas soam estas palavras…), pois «tudo se oculta atrás / da memória do sangue» (79), ou seja, da vida, a poesia de A. M. Pires Cabral revela-se um auxiliar prestimoso.

No derradeiro andamento de Arado, a primeira pessoa monopoliza a enunciação, refletindo sobre o homem e a sua circunstância. O poeta, no poema «Non sum dignus» (81), apresenta o material poético, ou seja, a força libertadora da palavra que dá vida e alimenta o homem, recuperando os vocábulos bíblicos lavrados no livro do Deuteronómio 8, 3. É, na verdade, a palavra, alimento do espírito, que entusiasma o poeta, como se infere da leitura da última estrofe do referido poema: «Mas diz uma só palavra / e a minha alma flutuará como cortiça / à flor do rio apertado entre falésias, / cheio de pegos e de turbilhões» (81).

À guisa de conclusão, refiro a vida - matéria-prima da poética de A. M. Pires Cabral – apresentada como um jogo, no derradeiro poema da obra «Lengalenga» (87), onde os contendores são o poeta, que aposta na sorte, e Deus, que joga pela certa. O entendimento entre ambos resulta difícil, porque «Tu, loquaz em demasia; / eu, ora mudo ora cheio / de indisciplina sonora» (87). O poema, na minha ótica, apresenta, ainda, um diálogo com o carme Desfecho onde é audível a revolta de Torga contra a omnipresença de Deus, nomeando-a de «A divina presença impertinente».

 

Bibliografia:

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. 8.ª ed. Coimbra: Almedina, 1988.

LOURENÇO, Eduardo. O Canto do Signo. Existência e Literatura. Lisboa: Presença, 1994.

MEXIA, Pedro. “público ípsilon.” Nordeste parte dois. 01 de abril de 2009. https://www.publico.pt/2009/04/01/culturaipsilon/critica/nordeste – parte-dois – 1655072 (acedido em 17 de maio de 2018).

OLIVEIRA, Carlos de. Obras de Carlos de Oliveira. Sd: Editorial Caminho, 1992.

PIRES CABRAL, A. M. Antes que o rio seque. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.

— Arado. Lisboa: Edições Cotovia, 2009.

Autognose existencial em Reflexos de Mim, de António Sá Gué

«A mente é um fogo a ser aceso, não um vaso a preencher»

Plutarco

 

«Para compreender os outros, precisamos mais de aprender os seus silêncios do que as suas palavras»

Ivan Illich

 

«O silêncio é apenas um horizonte no futuro, uma linha difusa que nos conduz a uma longa viagem interior»

Sá Gué

 

Neste pequeno livro, em tamanho, mas denso em reflexões e pensamentos, o autor apresenta-nos um espelho, onde se reflete sem rede e outras proteções. Aqui o ‘poeta’ desnuda-se e abre-nos o seu pensamento, escancara-nos a alma para deixar ver claro, através da pureza imaculada das palavras, a matéria de que é/somos feitos e que, nem sempre, temos a coragem e a ousadia de assumir e, utopia desejável, melhorar, como sugere. Com esta postura, o escritor cumpre a máxima de Gonçalo M. Tavares: «A alma deve encher todos os cantos da casa-corpo» (Tavares, 2018: 112).

O escopo principal do autor não é o pendor biográfico, nem confessional, mas sobretudo, reflexivo e intimista. Assim, as meditações que enformam o livro, sendo do autor, podem ser extensíveis ao leitor que se reverá no espelho, mais ou menos baço, que o escritor lhe apresenta na viagem que faz ao centro de si, como lembram estes versos de Emily Dickinson: «Debaixo! Explora-te a ti mesmo! / Pois dentro de ti encontrarás / o continente desconhecido». 

A obra, estruturada em quatro partes, apresenta-se irregular, uma vez que vale, em especial, pelas duas primeiras. A terceira era desnecessária e, quanto à quarta, é, puramente, um equívoco, como se verá a seguir.

Este último livro de António Sá Gué, abrigado à sombra da epígrafe de Rabi Nahman de Bratslav: «Não perguntes o caminho a quem o conhece pois assim não te poderás perder», pode ler-se como uma peregrinação interior sem qualquer tecnologia de orientação. Nesta viagem nunca a pergunta se resolve, antes se amplia, pois só a questionação pode mitigar as pequenas coisas que tecem a existência humana, aprisionada numa enorme teia. Assim, o escritor valoriza mais o processo, na senda da maiêutica socrática, do que o produto. A leitura destes textos lembra-me as palavras do poeta José Tolentino de Mendonça: «A pergunta “qual é o meu desejo?”, não a encontramos sem consentir primeiro na viagem que só começa quando ousamos entrar dentro de nós próprios» (Mendonça, 2018: 40).

Eis o método do escritor: «Não encontro outro método que não seja arrastar o meu centro de gravidade para o pensamento: deduzo, racionalizo, penso» (55). Confiado nesta metodologia, o escritor esboça o projeto para realizar a caminhada terrena: «Voo para lá dos pensamentos e, mesmo assim, não lhe perceciono o sentido. Procuro personagens, mas não as encontro. Clamo por ajuda ao futuro e não recebo respostas. Olho lá para fora e não há nada para ver. Liberto o vazio e as bombas da vida rebentam mesmo a meus pés: as sombras da escuridão erguem-se nas paredes do desfiladeiro onde caminho, os espíritos do gelo arrepiam-me a pele, mas, mesmo assim, continuo» (Sá Gué, 2018: 11, sublinhado meu). E, num eco do «Corvo» de Edgar Allan Poe, confirma o seu caminho: «lanço-me nesta tarefa de entrar na minha sombra, que não é inédita, mas onde o silêncio me impele a que o faça. Eu sei que há nesta imagem algo de corvo solitário a pousar na árvore fronteira da minha própria janela, eu sei, há o perigo de amanhã lamentar a liberdade pela ousadia de desafiar os deuses do vazio, eu sei, mas a beleza está nestes universos interiores, creio, e não na tenebrosa realidade quotidiana» (12, sublinhado meu). Enunciado o propósito, atente-se, ato contínuo, nas dificuldades dessa romagem interior, escalpelizando a estutura e os conteúdos.

A obra é constituída por quatro partes. A primeira, subordinada ao sugestivo título «Ouroboros», é composta por cinquenta e dois poemas em prosa. O título, nomeando a serpente que devora a própria cauda, remete, em termos metafóricos, para a deglutição interior propiciadora do autoconhecimento do ser humano. A inquietação/caminho interior faz-se, segundo o autor, lançando mão do pensamento «esse inimigo mortal» (16), que aumenta o sofrimento. Esta conceção pessoana do conhecimento e do sonho vem das «catacumbas do ser, da rotunda que sou e nas voltas em torno das ideias» (16). É, de certo, pelas ideias e pelo pensamento que o homem pode atingir a elevação desejada, como recorda Alberto Caeiro/ F. Pessoa: «Porque eu sou do tamanho do que vejo / E não, do tamanho da minha altura...». Perante tais descobertas, o escritor afirma que conhece «a condenada condição humana» (19).

O itinerário interior faz-se, também, de palavras que não conseguem transmitir, de forma límpida e impoluta, o pensamento, como é desiderato do autor: «O ideal seria abrir brechas nas palavras que se alinham em torno do pensamento» (21). No entanto, a palavra/escrita é o único bálsamo ao alcance do escritor que se considera um «caótico pedinte de palavras» (27), com as quais tanto cria «universos informes e incompreensíveis» como «seara de palavras nuas, silenciosas e de olhares ocultos» (52).

Nesta hercúlea caminhada, também, há desânimo: «Sou uma coisa sem futuro» (28); «És árido e a tua aridez seca tudo o que toca» (31); «Os sonhos vão-se desfazendo» (32). A este desencanto associa-se o rancor escondido nos olhares de ódio que «quebram os pensamentos» (43). Mas, de novo, sobrevem a coragem: «Ergo-me. Subo a montanha num movimento sisífico» (48). É este esforço, por vezes improdutivo, que deve animar o Homem para que, aos poucos, encontre o objeto da sua procura, ou, nas palavras de Sócrates, se conheça a si mesmo.

A importância da palavra, tradução imperfeita do pensamento, é realçada no final desta parte, sendo autossuficientes para o escritor: «Bastam-me as palavras. Não necessito de mais nada, apenas palavras para mastigar e me alcançar. Apenas palavras para olhar de fora para dentro e vice-versa» (64, sublinhado meu). É, pois, pelas palavras que se faz a introspeção do Ser nesse trânsito recíproco de fora para dentro e de dentro para fora, remetendo, uma vez mais, para o sentido metafórico da víbora Ouroboros, fantasma que assombra este primeiro andamento.

À segunda parte, apresentando o denotativo rótulo «Pedra filosofal», pertencem trinta e seis composições em prosa poética. O poeta, qual alquimista, utiliza a Lapis Philosophorum para transmutar os metais em ouro. Contudo o metal do poeta, o pensamento, continua, como já acontecia na primeira parte, a ser trasladado no único ouro ao alcance do escritor/alquimista, ou seja, as palavras. Nesse sentido, deseja aprisionar o pensamento, estabelecendo uma comunicação cristalina, sem a impureza das palavras, como se infere desta afirmação: «Fotografar um sonho é a minha utopia» (72). Pois caso conseguisse captar a essência dos pensamentos: «Vã seria a exuberância das palavras e a poesia. Vã seria a necessidade de compreensão…» (72).

Se na primeira parte a busca era pessoal e o Ser respondia à sua interpelação, agora a busca é extensível à sociedade, como comprova a frase de Pessoa, retirada da obra O Banqueiro Anarquista: «Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais» (107). A vida consome-se entre forças antagónicas: montar, desmontar; reconstruir, desconstruir, e nessa roda: «Desmontarmo-nos a nós próprios, com ou sem ajuda de palavras, interpretar de forma diferente esta realidade que damos por adquirida e que diz tudo fazer por nós, leva-nos para outros caminhos» (77). O desejo, associado à ousadia, mantém-se, e o homem empenha-se em superar os seus limites «Ninguém nos obriga a subir a montanha e, no entanto, trepamo-la» (75).  Esta vontade é afetada pela ignorância que tudo explica: «Explica o Homem e a virtualidade do seu imaginário» (78).

A apatia e a disforia apoderam-se do poeta ao qual nada mais resta a não ser esperar, mas mesmo nesse momento abúlico ainda clama: «espero até que o silêncio se torne mais denso e me queime o pensamento» (89). O silêncio aparece com duas conotações: a negativa, «Talvez o segredo seja silenciar. Primeiro silenciar as armas, depois silenciar os pensamentos suspensos. Nesse silêncio darei a volta ao medo que me transforma» (84); a positiva, «mas, simultaneamente, beberei a coragem para continuar a caminhar. Nesse silêncio brindarei aos amores e desamores, à prisão e à liberdade de dizer. Nele encontrarei gotas vibrantes de ser» (84). É, pois, em silêncio, como já asseverei, que o escritor transforma as suas vivências, isto é, a vida em palavras.

Em resumo, o poeta, noite dentro, procura arduamente a sua «Pedra filosofal» que lhe permita transformar em ouro/palavras as suas reflexões, ou os seus Reflexos. Afinal a palavra é o ouro alquímico com o qual o escritor cristaliza o seu pensamento e nomeia o real que o cerca, levando o leitor à cogitação. Para a consecução desse desiderato, o poeta pretende: «Elevar o plasma literário à categoria universal e fixar a ausência das coisas na sinuosidade das palavras é o sonho de qualquer gota de tinta que vive esquecida no mundo absurdo das nuvens» (98, sublinhado meu).

A terceira, «Ad infinitum» título ambíguo, apresenta seis textos que, em meu juízo, encaixavam perfeitamente na segunda parte da obra, pelas temáticas e os motivos que desenvolvem e por amplificarem a pluralidade do eu. Estes seis poemas, segundo penso, seriam a conclusão perfeita da «Pedra filosofal», porque acentuam a vertente escura que vinha galgando terreno. A intrepidez da primeira parte é uma miragem, porque, no presente, se afirma: «Não compreendo esta apatia de ser que me invade» (115). O estado imóvel é acentuado pelo texto «o mito da Medusa» (116), cristalizando-se esta abulia plural em: «Vão cabisbaixos, pensativos, debruçados sobre as sombras que os perseguem. Alheios de si, seguem a escolha já feita e, na vastidão limitada das suas recordações, adivinham a felicidade na igualitária morte. Expulsos do Éden e do seu corpo, acham-se confinados a um vale de lágrimas, esquecem-se de si, delimitam o gesto e as palavras e, na mais profunda das comunhões, o fatalismo da servidão humana voluntária recupera subtis formas de compaixão» (117, sublinhado meu).

No fim, fica o silêncio que «é apenas um horizonte no futuro, uma linha difusa que nos conduz a uma viagem interior» (118). Conclui-se que o livro é circular pois abre e fecha com a ideia de viagem interior, elucidada atrás. O escritor, qual soldado do futuro, não desanima ao afirmar: «Analiso a liturgia das palavras e, de olhos eclipsados, remexo, em círculos, no inerte lodo dos dias que se magoam a enfrentar a realidade quotidiana» (119).

Por fim, na quarta parte «Os outros em mim» deparamo-nos com nove textos sobre obras publicadas pelo autor, enquanto editor. Entende-se, agora, o motivo pelo qual a excluí acima. Estes textos são, cada qual a seu modo, pequenas recensões sobre os livros publicados. Podem, ainda, funcionar como breves apresentações dos mesmos, uma vez que o desiderato do autor é patentear aos leitores possíveis linhas de leitura que as mesmas desenvolvem.

Termino recorrendo, uma vez mais às palavras do escritor, um peregrino da inquietação interior, que resumem o intuito que presidiu à elaboração desta reflexão: «A realidade humana acaba por se concretizar dentro da amálgama do carácter irreal de ser, e nesta fuga, constante e indefinida, tudo se constrói e desconstrói. Chegamos a descobrir a voz dos pássaros nas palavras e, no silêncio dessas vozes, surgem-nos outros sinais, outros pressentimentos e a casa assombrada, esta tragédia humana, vai-se construindo nas bases desse mundo, pessoal e intransmissível, onde tudo cabe» (80, sublinhado meu).

António Sá Gué, com esta obra, continua a admirar-se na aceção de Alberto Caeiro, pois sabe: «ter o pasmo essencial / Que tem uma criança se, ao nascer, / Reparasse que nascera deveras...»; ou, ainda, na senda de Theodor Adorno: «Espanto é um longo e inocente olhar sobre o objeto». Este estranhamento, permanente, sobre o Homem, enquanto ser em construção, obriga-o a uma constante reflexão sobre o conhecimento que tem dele e do mundo. Com estes silêncios, como lembra a epígrafe de Illich, o escritor facilita a nossa dupla compreensão, enquanto incendeia a nossa mente, na aceção plutarquiana. Nesta ação cogitativa, realiza uma viagem de depuração interior, continuando a colocar a eterna questão de Elsinore que torturou Hamlet e que prossegue no âmago da existência humana. A leitura de Reflexos de Mim é, sem dúvida, uma oportunidade de inteleção da mesma.

 

Bibliografia:

MENDONÇA, José Tolentino. O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas.

Lisboa: Quetzal, 2018.

SÁ GUÉ, António. Reflexos de Mim. Carviçais TMC: Lema d’Origem, 2018.

TAVARES, Gonçalo M. Livro da Dança. 2.ª ed. Lisboa: Relógio D’Água, 2018.

A resistência poético-política em Apenas Madrugada, de Francisco José Lopes

 

Criar não é comunicar, mas resistir.

Gilles Deleuze

 

1. Prólogo

A quinta obra de poesia de Francisco Lopes, apresenta uma estrutura tríplice. A primeira parte, composta por vinte e cinco poemas, está subordinada ao título “em pleno dia”; a segunda, com o mesmo número de composições, apresenta o sugestivo e romântico título “noite dentro”. A noite, como momento propício para a criação artística e poética, é uma herança romântica. A noite é o momento da viagem e da inquietação do poeta, mas é, sobretudo, o solo onde germina e cresce a poesia. A terceira, com vinte e quatro poemas, responde pelo nome “apenas madrugada” que acabará por dar título à obra.

 

2. Uma poética de resistência

A poesia e a imaginação asseguram ao ser humano

a possibilidade de libertação.

 

Em tempo, asseverei que a poesia de Francisco Lopes era “a poesia da vida”. Agora, afirmo que a sua poesia é uma poética de resistência, não só em seu benefício, mas sobretudo em prol da coletividade.

A pessoa do autor resiste, encontrado o poeta formas de dizer o mundo e o homem através da linguagem, questionando, em simultâneo, o seu próprio meio de expressão, ou seja, o seu modus faciendi, ou, por outras palavras, o seu processo poético.

Temos, assim, mundo, sujeito e linguagem, três formas de combate no território – não neutro – da página em branco, lembrando Mallarmé. O vate recorda-nos, na composição “Poema da liberdade”, que: “as palavras querem-se livres / mesmo na palma da mão / e uma folha branca / é como a própria vida / nunca se deve usar em vão!”. A linguagem, isto é, a palavra nunca é utilizada em vão, comporta sempre alguns riscos, tanto para o emissor, como para o receptor. A este propósito, lembro o poeta Carlos Oliveira que, no poema “Vento” do livro Cantata, escreve: “quem vos ferir / não fere em vão, / palavras”.

A resistência é, pois, um ato de desafio ao status quo que está escorado e acomodado à menoridade. Neste contexto, a obra poética, como toda a literatura, vale pelo que lá está escrito, isto é, as palavras, mas também pelo que não lá está, ou seja, pelas ideias que promovem e, sobretudo, por compelir o leitor a pensar. E sobre as teias de sentidos que enformam os poemas, recorro às palavras do poeta Nuno Júdice que afirma: “os fios de uma lógica que não passa apenas pelo sentido ou pelo que é dito, mas sobretudo pelo que só a perceção instintiva, sensorial, pode captar, no que está para além do que é dito e se solta das próprias palavras”.(1)

Chegados aqui é tempo de colocar três interrogações, a saber: quem ou que tipo de voz pensa, escreve e resiste; ao que resiste e, por fim, como resiste.

À pergunta quem ou que tipo de voz resiste, respondo que, antes de mais, é a própria poesia, que resiste através da linguagem. Ora, sendo na enunciação literária, a voz que resiste poética e ao ser poética não deixa de ser política, isto é, de ter implicações políticas, pode concluir-se que quem resiste é essa voz poético-política.

Em toda a escritura, e em especial na de Francisco Lopes, está patente a preocupação de fazer da vida algo mais do que o estritamente pessoal, de libertar a vida do que a aprisiona, ou seja, o eu tornar-se voz da comunidade, como já mencionei a propósito de outro livro do autor, pois os problemas que enfrenta e sobre os quais reflete, nos seus poemas, afligem todos. O poeta resiste continuamente, visto que reage ao pensamento dominante cuja finalidade é inferiorizar-nos.

Passando à segunda pergunta, ao que resiste a poesia ou a voz poético-política que no poema se configura. Em primeiro lugar, resiste à própria linguagem, forçando-a a alargar os seus limites, procurando dizer pela linguagem o que ela não diz, ou como já referi, ler o que não está no poema, ou, dito de outra forma, sugestionar outras leituras e interpretações. Neste contexto, esta voz poético-política resiste de forma ontológica e epistemológica à linguagem, lutando contra as formas hegemónicas de articular o mundo.

A página moderna, tal como a linguagem, está já povoada e sobrepovoada pelas intenções dos outros, para usar uma formulação de Mikhail Bakhtin, e a poética de Francisco Lopes, como já referi em vários locais, está pejada de vozes, ou seja, mantém um permanente diálogo intertextual com a tradição literária.

O autor ao escrever de forma diferente do que é esperado desafia a moralidade e a normalidade vigentes, desobedecendo à norma.

Em resumo, a metáfora da página em branco, que a partir do século XIX se impôs, é usada para representar os dilemas criativos do artista perante o vazio que preexiste ao ato criador.

Entrando na terceira questão, como se resiste? Ou por outros vocábulos, como se constrói uma poética da resistência? Há várias formas de resistir, a saber: por oposição, por recusa, por defesa, por não-cedência, por persistência, por insubordinação etc… Francisco Lopes armadilha os seus poemas com o propósito de rebater o convencional e tentar criar uma atitude de pensamento que leve à práxis, criando, assim, uma rutura textual, formal e ideológica.

O próprio estilo, inconfundível, do autor é, também, uma forma de resistência. A língua, para quem escreve, revela-se um sistema desequilibrado, daí que o escritor tente escrever, nessa mesma linguagem, mensagens potenciais que quer fazer passar e aparecer como uma luz que salte da folha escrita e nos faça ver e pensar o que está encoberto pelas sombras das palavras.

Na poesia do autor, como já tive ensejo de escrever, ressoam ecos do romantismo, na medida em que a sua forma é autorreflexiva, onde o poeta procura sentido na experimentação das palavras e na sua relação referencial com o mundo. O ritmo e a musicalidade dos poemas de “Apenas Madrugada” lembram-nos os

poetas simbolistas e modernistas dos finais do século XIX e limiar do XX, onde Camilo Pessanha e Pessoa, entre outros, pontificavam.

Afirmo que opções de leitura e escrita são formas de resistência cultural e não só. O prazer do leitor, perante as composições poéticas de “Apenas Madrugada”, dependerá da sua capacidade de participar na leitura penetrante que os poemas desta obra exigem. Pois estes carmes, mais do que regulamentos de leitura, oferecem experiências que auxiliam a compreensão do outro e do mundo.

 

3. Epílogo

Na primeira parte da obra, encontramos grande agitação exterior, assumindo o poeta a sua culpa por não ter estado atento aos que lhe acenavam em “pleno dia”. Pela segunda perpassa um desassossego interior, onde o poeta “noite dentro” dá azo à sua criatividade literária. Na última parte de “Apenas Madrugada”, o poeta convoca, de novo, à ação os seus contemporâneos para que, decifrando as suas metáforas, se insurjam e lutem por uma vida mais consentânea com a dignidade humana, que é imperativo conquistar, hoje mais do que nunca.

Em resumo, na obra poética de Francisco Lopes e, em especial, no livro Apenas Madrugada o leitor pode encontrar resiliência e inconformismo, intervenção e cidadania, educação e cultura, tudo mediado pela memória e o sonho quimérico de transformar mundo. A memória e o sonho são o património imaterial que alimenta o homem. A memória é o que nos prende à terra, é a raiz que nos sustenta em dias de vendaval. O Sonho é a tentação de quebrar essas cadeias e de ser totalmente livre, realidade inatingível, mas sempre almejada.

Recorrendo a uma linguagem poética cristalina e depurada, o poeta lembra-nos, entre outros cantos e desencantos da vida, que é tempo de resistir e de ter esperança, que ainda é tempo de canção de Abril, abril e maio são dois meses abundantes e significativos na sua produção poética.

O que alimenta a poesia de Francisco Lopes é a paixão pela vida. Por isso, ela é sempre recetiva, dialogando com os outros textos e com os leitores, convocando-os, de forma permanente, para um esforço de memória literária e para uma cumplicidade de camarada de (desen)cantos poéticos e existenciais. Na sua poesia, marcada por um intersecionismo de vozes diferentes, por tempos desencontrados, por leituras diversificadas, o que fica é o que foi resistindo às contrariedades da vida e da literatura.

Numa permanente lucidez à Álvaro de Campos, com uma contínua análise à realidade, a poesia de Francisco Lopes fascina pelo engenho e arte do verso e da organização estrófica e pela coloquialidade que cativa o leitor. Por todos estes atributos, a sua poesia é de grande rigor e maturidade, predicados que o leitor pode encontrar nesta como nas restantes obras do poeta.

Termino, citando as palavras de Jorge Luís Borges. Diz o narrador/Borges no conto “Biblioteca de Babel”: “preparo-me para morrer a poucas léguas do hexágono (biblioteca) em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me atirem pela balaustrada; a minha sepultura será o ar insondável; o meu corpo precipitar-se-á longamente até se corromper e dissolver no vento gerado pela queda, que é infinita”.

Este morto não é o autor empírico, ou seja, a pessoa biológica, mas o autor textual, isto é, a obra, que não perecerá.

Oxalá, que destino semelhante e fecundo tenham os poemas de Apenas Madrugada, vivendo perenemente, na aceção horaciana, na mente e no coração dos leitores.

 

O ónus dos livros e da leitura na autognose humana

“Os livros são o alimento da juventude”, Cícero.
“A leitura engrandece a alma”, Voltaire.

Esta sucinta reflexão é motivada pela efeméride comemorada no dia 23 de abril, assinalando-se o Dia Mundial do Livro e dos Diretos de Autor.
As palavras, sempre atuais, dos mestres citados nas epígrafes encerram o desígnio deste texto, isto é, o encómio da leitura. No entanto, convém contextualizar e recentrar a questão nos tempos hodiernos.
Começo por uma interrogação, que razões nos levam, no presente, a ler? As causas são inúmeras, para não ser exaustivo, elenco apenas: lemos, fundamentalmente, por uma necessidade de libertação e para expressar o nosso inconformismo que não deve aceitar ficar aprisionado dentro dos limites de ideários pré-estabelecidos e de um vocabulário primário. Este progressivamente cada vez mais reduzido por razões demagógicas dos aparelhos de condicionamento das mentalidades e dos media, que se têm esforçado por o afunilar, reduzindo-o a uma elementaridade básica, que não se coaduna com as reais necessidades dos seres pensantes.
Reconheço, a contragosto, que as intervenções que se fazem, coadjuvadas pela propaganda, abrem caminho à custa do abandono da literatura no ensino, por um lado, e pela sua desvalorização nos media, por outro. Por vezes, fico com a sensação de que para os poderes instituídos, tanto a nível nacional como internacional, patentes e latentes, como nos tempos da ditadura salazarista, de má memória, basta que as pessoas sejam capazes de ler, escrever e contar. Estes intentos fazem eco das palavras, infelizmente não anacrónicas, de D. Miguel Forjaz, da obra “Felizmente Há luar!” de Luís Sttau Monteiro: “sonho com um Portugal próspero e feliz, com um povo simples, bom e confiante, que viva lavrando e defendendo a terra, com os olhos postos no Senhor.” Em suma, estas atuações mais não pretendem do que suprimir toda a complexidade, limitando escolhas e tranquilizando espíritos, com o fito de instituir o conformismo, a uniformização e a resignação, de forma acéfala, ao paradigma que se impõe.
Perante este cenário caótico e disfórico, só nos resta uma atitude digna de seres racionais, encarar o livro como um objeto falante, como algo que nos põe a pensar, pois já Platão afirmava que: “o livro é um mestre que fala, mas que não responde”. Essa tarefa cabe, inequivocamente, ao leitor, mas pensar é a coisa mais difícil que o homem pode fazer, como se infere dos versos de Pessoa/Caeiro: “Pensar incomoda como andar à chuva / Quando o vento cresce e parece que chove mais”. O livro é, sem dúvida, um objeto para pensar. Se o livro não cumprir esse desiderato, quem realizará esse encargo? A televisão? Não me parece. Esta, respondendo a interesses ínvios, está apostada em criar cidadãos acríticos que consumam a panóplia de programas, bens e serviços publicitados até à extenuação e, não raras vezes, à náusea.  A este propósito, recordo os versos: “putos que crescem sem se ver / basta pô-los em frente à televisão”, da música, de 1992, “Chuva dissolvente”, dos Xutos & Pontapés, que já, na derradeira década do século XX, alertava para as perniciosidades de uma educação baseada nos curricula da “caixa mágica”, assumindo-se, no presente, como uma enxurrada de irrealidade extraordinária.
Voltando ao livro e às razões da leitura, pergunto por que devemos ler? Lemos para ter lucidez e utilizar esse conhecimento em prol dos outros, isto é, da sociedade.
Assim sendo, impõe-se nova questão. Que relação devemos ter com a leitura? Do rol de réplicas possíveis - cf. Daniel Pennac Como um romance - apresenta-se esta. A relação com o objeto livro deve ser violenta. Devemos encarar a leitura como uma dura peleja entre as ideias do livro/autor e o pensamento do leitor, sendo essa pugna renovada a cada nova leitura. O mesmo se infere das palavras de Italo Calvino, em Porquê Ler os Clássicos: “Interessa-me muito tudo o que Jean-Jacques Rousseau pensa e faz, mas tudo me inspira um irresistível desejo de contradizê-lo, de criticá-lo, de brigar com ele”. Da contenda podemos, por vezes, sair a coxear e a ver menos, isto é, mais confusos; mas, na maioria das vezes, ficamos a enxergar mais e de forma diferente, ou seja, os nossos horizontes podem abrir-se até ao infinito.
Sintetizando, devemos cultivar a insubordinação do pensamento e adotar como estandarte/divisa a insolente liberdade de pensar. Só, assim, escaparemos à pesada sentença de Eugénio de Andrade, presente nestes versos, escritos em 1948, mas que se mantêm atuais, pese embora o caminho percorrido, em 2018: “Passamos pelas coisas sem as ver, / gastos, como animais envelhecidos: / se alguém chama por nós não respondemos, / se alguém nos pede amor não estremecemos, / como frutos de sombra sem sabor, / vamos caindo ao chão, apodrecidos”.
Termino reiterando não só a importância da leitura, mas, sobretudo, uma certa maneira de ler, encarada como um combate, que nos permite conhecer as ideias que o livro explana, honrando, desta forma, o autor e a obra; porque os livros são, indubitavelmente, os objetos mais propícios à autognose, como asseverou Marguerite Yourcenar, escritora belga, primeira mulher eleita para a Academia Francesa de Letras, em 1980, no livro Memórias de Adriano: “o verdadeiro lugar do nascimento é aquele em que, pela primeira vez, se lança um olhar inteligente a si mesmo: as minhas primeiras pátrias foram os livros. Num grau inferior, as escolas”.
O valor da leitura e dos livros é, também, destacado por Italo Calvino, na obra citada, ao afirmar: “A escola destina-se a dar-nos instrumentos para exercermos uma opção; mas as opções que contam são as que se verificam fora e depois de todas as escolas”.
Epilogando, a melhor forma de celebrar o Dia Mundial do Livro e dos Diretos de Autor é, sem dúvida, ler as obras e questionar as ideias nelas plasmadas. Assim, os livros granjearão vida e os leitores concretizarão a autognose almejada, pois, como escreveu Stéphane Mallarmé, em 1897, “Todo o Pensamento produz um Lance de Dados”.
 

Pro memoria de Amadeu Ferreira, e do seu panegírico à Vida em Belheç/Velhice, de Fracisco Niebro

“A velhice não afasta necessariamente os homens da vida ativa porque há
uma atividade muito própria dos velhos: muitos continuam a servir
a pátria com a sua prudência e autoridade; outros entregam-se ao estudo
das letras e das ciências; alguns, ao cultivo das terras”.

 

(Cícero, De Senectute, sublinhado meu)

 

Manuel da Fonseca, num dos contos da obra O Fogo e as Cinzas, “O Largo”, escreveu: “o Largo era o centro do mundo”. Parece-me ser essa a intenção de Fracisco Niebro, no introito da obra, ao colocar o protagonista do relato, “um velho” - enfatizo a utilização do determinante indefinido -, sentado na ombreira da sua porta, isto é, na rua, que dá para um largo (p. 8) do qual faz o centro do “seu” mundo. O ancião assume na primeira pessoa o relato da vida, com laivos autobiográficos do autor. Embora o mundo, para ele, seja tão só a sua aldeia, “nos meus oitenta anos quase não saí daqui. O mundo é grande. (…) Por isso, o centro só pode ficar onde ponho a ponta da minha bengala” (p. 30). A mesma ideia é, de novo, reforçada na página 52, onde se lê: “passo os dias sentado no poial de pedra da rua: quem passa olha para mim”. Esta atitude reflexiva do velho, sobre as pessoas da sua aldeia, coloca o leitor, por sinédoque, perante o espetáculo do mundo e leva-o à autognose. A tarefa é árdua, mas ele não desiste de recordar/escrever para nos questionar, “desde que estou aqui sentado na rua já passaram mais de cem pessoas” (p. 98). 
Qual é, então, o propósito do velho/da obra? As intenções são várias. Em primeiro lugar, reiteramos a questionação do leitor para o levar à reflexão sobre a vida e a melhor forma de a “merecer”. Por isso, o autor nos faculta uma espécie de manual, isto é, uma carta de intenções que, segundo creio, constituiu a sua filosofia/ideias de vida, fixada na página 38, sempre atual e de muita utilidade para o cidadão hodierno.
A reflexão do velho, escrita com grandes dificuldades físicas, é feita em flashback, recordando as memórias do passado para chegar à desconfortável conclusão: “há coisas, por exemplo cantigas, em que já não caibo, mundos que parecem já nada querer ter a ver comigo” (p. 8). Estas palavras trazem à memória do leitor a réplica de Beresford a Principal Sousa, da obra Felizmente Há Luar! de Luís de Sttau Monteiro: “o velho está sempre a ceder perante o novo e o novo sempre a destruir o velho.”  Parece-me que é também para isto que a personagem/narrador/velho escreve, ou seja, para ser memória futura do povo e das tradições que enformaram a sua vida e que persistem em continuar, apesar da veracidade das palavras de Beresford.
Por conseguinte, o velho, ciente do inexorável curso de Apolo, decide perpetuar a sua memória através da escrita, “depois, veio-me a vontade de escrever”, que lemos na segunda página da obra (p. 8). Esta vontade, em meu juízo, traduz-se em dois propósitos: o primeiro, em não deixar morrer as tradições e a língua de um povo, pelas quais o autor se bateu, de forma abnegada, ao logo da sua vida; o segundo cumpre-se no legítimo e almejado desejo do homem, Amadeu Ferreira, em nos legar uma obra perene que jamais possa ser ignorada. Esta postura lembra o tópico da imortalidade que se adquire pelo valor da obra literária, imortalizado na ode XXX do livro terceiro de Horácio .
O ato de escrita aparece-nos, nesta obra, associado ao nutriente que prende o escritor à vida: “escrever é como um alimento que me vai mantendo vivo, tal como a bengala me permite manter-me de pé” (p. 56). Logo, a escrita, aliada à sabedoria da palavra, que é equiparada a diamante que brilha (p. 20), remete, em minha opinião, para a possibilidade de a literatura transformar o mundo real. Pois, como assevera Vítor Aguiar e Silva, na obra Teoria da Literatura, “o escritor, ao emitir o seu texto, não só transfigura o real nomeado ou aludido, mas reinventa e instaura o próprio real, o real absoluto, com a urdidura encantatória do seu discurso.”  Nesta postura do escritor fulge a figura de Prometeu que, lato sensu, simboliza a capacidade de a comunicação literária contribuir para transformar o real, o real antropológico e o real histórico-social. As palavras do autor de Velhice corroboram estes preceitos: “gostam de sentir que as histórias têm uma vida diferente, como os sonhos. As histórias ensinam a sonhar e falam de um mundo tão diferente que fazem nascer a vontade de mudar aquele em que vivemos” (p. 108). No entanto, esta força performativa da palavra pode ser ineficaz se o leitor se recusar a aceitá-la, como se depreende das palavras do autor: “pensamos que já sabemos tanto que nunca somos capazes de encontrar um espaço para aprender” (p. 64).
Na base destas preocupações patenteia-se a ideia angustiante do esquecimento que para o escritor se assemelha à morte: “estar só não é morrer, é não nascer. Uma pessoa morre quando já ninguém olha para ela” (p. 32) . Creio não restarem dúvidas aos leitores mais assíduos da obra de Amadeu Ferreira que a sua luta, ou melhor, a sua escrita, foi sempre esta pugna hercúlea contra o esquecimento, que, não raras vezes, dói mais do que o próprio óbito. É por esta ordem de razões que se aceita que toda a vasta produção literária de Amadeu Ferreira, e esta em particular, foi animada pelo anelo de se “libertar da lei morte”.
Outro grande filão do livro cumpre-se no título desta crítica, isto é, o elogio da existência, sempre associado à ousadia e à vontade de querer vencer e antecipar o futuro, pois “apenas é nosso o que fazemos porque o queremos” (p. 50). Este encómio à vida está patente nas palavras do autor: “quando olho para trás e vejo o que ficou, sorrio. Houvesse quem fora capaz de sorrir e olhar para a frente… Nada há tão difícil como isso. Olhar para diante mete medo. E com medo ninguém sorri com vontade. E quando ninguém sorri, as coisas e a vida ficam tão pesadas que custam a suportar” (p. 44, sublinhado meu). Mas por mais espinhosa que seja a nossa missão, em vez de desistir devemos recomeçar, uma vez que “quando se perde a vontade de começar, começamos a morrer” (p. 46). E Amadeu Ferreira foi um exemplo acabado desse recomeçar, porque a energia e a força telúrica, imortalizada por Torga, que sorvia das arribas do Douro, o impelia a “nunca contentar-se de contente”.
Todavia, uma certa desilusão atormenta o escritor, porque ninguém pensa nada, “para pensar, há que parar. (…) E como ninguém pensa, nada muda” (p. 28). Registe-se que o sofrimento está associado à lucidez e à inquietação das pessoas, pois “quem mais sabe mais sofre.” (Cf. Pessoa “se estou só, quero não estar”.) O ato de cogitar aumenta o conhecimento e, por conseguinte, o sofrimento: “até os velhos, porque pensam mais, morrem mais depressa” (p. 28). O idoso acaba por sucumbir ao afirmar: “por vezes sabe muito bem uma pessoa não se lembrar de nada e ficar encandeada com coisas tão pequeninas como florzinhas de telhado” (p. 126).
Ouso, pois, afirmar, sem ambages e dissídios, que Fracisco Niebro/Amadeu Ferreira se “libertou da lei da morte” e continuará perenemente, como lembra Horácio, a viver na vastíssima e riquíssima obra que nos legou. Pois ele, mais que outrem, teve a coragem de “não morrer”, como se infere das suas palavras: “apenas há um segredo para uma pessoa não morrer: agarrar-se a uma ideia com tanta força que não mais se desprenda” (p. 34). Creio não andar longe da verdade ao afirmar que “a ideia” a que Amadeu Ferreira se agarrou foi a difusão e a ratificação da Língua Mirandesa.
Termino, apelando à leitura da obra deste ilustre Transmontano/Mirandês na qual são audíveis os ecos de uma luta contínua contra a resignação, o determinismo e o fatalismo, instigando-nos a assumir uma atitude de trabalho abnegado, norteado pelos valores e pela ética, alicerces de qualquer sociedade.

1 - O diálogo Cato Maior ou De Senectute de Cícero é, segundo Gérard Genette, Palimpsestes, o hipertexto de Belheç /Velhice de Fracisco Niebro.
2 - MONTEIRO, Luís de Sttau, 1999. Felizmente Há Luar!. Porto: Areal Editores. P. 54.
3 - O poeta latino Horácio, nesta ode, fala da importância da obra literária que resistirá, como nenhuma outra, às intempéries naturais e, consecutivamente, ao esquecimento.
4 - AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel, 1988. Teoria da Literatura. 8.ª ed. Coimbra: Almedina. P. 334.
5 - Leia-se o poema de Fernando Pessoa, que aqui reproduzo, por me parecer que encerra a mesma filosofia de vida que Fracisco Niebro/Amadeu Ferreira defende nesta obra: “A morte é a curva da estrada, / Morrer é só não ser visto. / Se escuto, eu te oiço a passada / Existir como eu existo. // A terra é feita de céu. / A mentira não tem ninho. / Nunca ninguém se perdeu. / Tudo é verdade e caminho” (sublinhado meu). Fernando Pessoa, Poesias, 15.ª ed. Lisboa, Ática, 1995, p. 142.

Memória coletiva em A Magia das Máscaras Portuguesas, de António Tiza

Um pecado ritual interrompeu a comunicação entre o céu e a terra,
e os deuses retiraram-se para céus mais elevados. Desde então,
os homens têm de trabalhar para comer e já não são imortais.

(Mircea Eliade, 2000: 106)

 

1. Enquadramento teórico-temático

Segundo Victor Jabouille, na introdução ao Dicionário de Mitologia Grega e Romana, é possível agrupar em três grandes tipos as teorias interpretativas dos mitos/ritos, a saber: funcionalistas, simbolistas e estruturalistas.
Para os funcionalistas, o mito fundamenta os usos e as normas primárias do convívio entre os elementos de uma comunidade. Assim sendo, os ritos cumprem funções essenciais, tais como: expressar e acentuar a crença, proteger e reforçar a moral e a ética, assumindo-se, desta forma, como um ingrediente vital da civilização humana.
O mito, na perspetiva simbolista, é encarado como uma forma diferente de expressar o pensamento, a cultura e a maneira de observar o mundo de uma determinada comunidade. Deste modo, o mito dirige-se não apenas para a intelecto, mas, sobretudo, para a fantasia e a realidade. Por isso, se institui na energia positiva da representação e da imaginação, criando significado. Neste sentido, o mito é o resultado da aprendizagem que o homem faz da divindade, e o culto mais não é do que a adaptação à diferença entre o humano e o divino. Se em termos psicanalíticos o sonho se explica pela libido pessoal, o mito/rito - sonho de um povo – explica-se pela libido coletiva. Isto leva-nos aos arquétipos de Jung, desenvolvidos por Freud para a noção de inconsciente coletivo. O mito é, pois, a projeção desse inconsciente coletivo transformado numa força - geradora de comportamentos - que irrompe de um desígnio real, concretizando-se na representação. Para Mircea Eliade, citado abundantemente pelo autor, o herói repete um gesto arquétipo que o homem, ao longo dos séculos, integrado na sociedade suportou sem cair no desespero ou na esterilidade espiritual.
Na sémita da Escola de Praga, Claude Lévi-Strauss, o grande investigador do estruturalismo, declara que se podem distinguir dois sentidos no mito, aquele que é percetível a partir da narração/representação do mito/rito; e outro latente que não é consciente. Partindo do princípio de que os ritos são um conjunto ordenado e sincrónico, constituindo um espaço semântico, a partir do qual se produz uma narrativa, é, sem dúvida, este o sentido que o etnólogo pretende em última análise decifrar. 
Sintetizando, o que são, afinal, estes mitos/ritos, que ao longo dos séculos se eternizaram no Nordeste Transmontano e nas outras localidades mencionadas nesta obra? Serão a forma de o homem, na esteira de Sócrates, se conhecer a si mesmo ou, no encalço de Pessoa, apenas “o nada que é tudo”.

2. Conteúdo da obra
Esta obra, circunscrita em termos geográficos ao Norte e ao Centro de Portugal, está estruturada em sete capítulo, organizados de forma diacrónica. O livro escora-se na seguinte metodologia: em primeiro lugar, apresenta-se uma sucinta informação histórico-geográfica da localidade; segue-se a descrição da celebração, no geral, e de alguns ritos, em particular; por último, explana-se a simbologia dos ritos. Este esquema, com algumas nuances, é, em nosso juízo, uma mais-valia para o leitor que dispõe de uma sinopse bastante concreta sobre a localidade e o ritual, sendo estimulado a prosseguir e a aprofundar o seu conhecimento.  

O itinerário da Magia das Máscaras Portuguesas começa com os ritos do Ano Novo Celta, festejados em Cidões, Vinhais, durante a festa da Cabra e do Canhoto, comemorada no dia 31 de outubro. Esta celebração milenar foi cristianizada na Idade Média, com a instituição da festa de Todos os Santos, continuando, todavia, a manter o cunho da Shamhaine celta, ou seja, a comunicação entre os vivos e os mortos. Infelizmente, esta tradição autóctone tende a ser suplantada pelo Halloween, o que configura uma importação acrítica e um desrespeito pela cultura e valores seculares, pois substituímos o culto e a veneração dos entes queridos, pelas nocivas, em termos culturais, travessuras das bruxas. 

Escoltando o carro de Apolo, encontramos o rito do Velho e a Galdrapa, celebrado a 13 de dezembro, na aldeia de Silva (Miranda do Douro) no limiar do advento do solstício de inverno. Em termos alegóricos, o “casal” constituído pela Galdrapa e pelo Velho encerra a essência da fertilidade da espécie humana e, por extensão, da natureza.

Seguem-se, no terceiro capítulo, as várias festividades realizadas durante o ciclo dos doze dias, que começava a 17 de dezembro com as Saturnais em honra de Saturno deus da agricultura. No dia 24 de dezembro tinha lugar a Juvenalia, isto é, a festa dos jovens, sobre a qual a Igreja estabeleceu a festa de Santo Estêvão, primeiro mártir, comemorada no dia 26 de dezembro no ocidente e 27 no oriente (ortodoxos). No dia 25 celebrava-se a grande festa do sol (Natalis Solis Invicti) ao qual, mais tarde, a Igreja associou o nascimento de Cristo, o novo sol. Convém, no entanto, referir que estas comemorações/tradições já veem do tempo em que os povos Celtas habitaram esta região, séculos VI a II a. C.
Neste apartado são escalpelizados os ritos de quinze localidades transmontanas, não se percebendo, em rigor, qual o critério de organização, uma vez que as descrições dos rituais dos Reis surgem intercaladas entre as do Natal e as de Santo Estevão, perdendo-se, desta forma, a sequência diacrónica a que se subordina a estrutura global do livro. Digno de registo são as belas quadras, em redondilha maior, declamadas pelos jovens, protagonistas destas celebrações, que lembram, em termos estilísticos, o paralelismo e o leixa-prem das cantigas de amigo.  Estes rituais desenrolam uma vasta e corrosiva crítica social, onde se detetam ressonâncias das cantigas de escárnio e maldizer do século XIII. Aristóteles definiu o homem como um animal que ri. Nietzsche, no século XIX, afirmou: “esta coroa de rosas é a coroa do homem que ri” (1988: 30). Estas sentenças levam-nos a asseverar, sem dissídios nem ambages, que o riso é porventura a forma mais impiedosa de sátira social.

O quarto capítulo narra os ritos celebrados em sete aldeias do planalto mirandês. A origem destes rituais perde-se nos umbrais da memória, associados aos povos Celtas, Gregos e Romanos. Cabe, aqui, sucinta referência ao ciclo de Deméter que simboliza a germinação, o crescimento e a maturação do trigo, e se desenvolveu nos mistérios de Elêusis, sustentado por um ritual complexo. Nestes sete ritos encontramos, com frequência, a luta dos opostos. O triunfo do bem é um prenúncio para a fertilidade da natureza, garante de paz e de harmonia entre os membros da comunidade.

No próximo apeadeiro, o leitor pode comprazer-se com a descrição dos ritos de Carnaval de oito localidades: Lazarim (Lamego), Podence (Macedo de Cavaleiros), Vila Boa de Ousilhão (Vinhais), Santulhão (Vimioso), Sambade e Alfandega da Fé, Aldeia do Xisto de Góis (Pinhel), Lagoa (Mira) e Vale do Ílhavo (Aveiro). Estes desfiles, uns mais rituais do que outros, uma vez que em muitos se sentem, segundo o autor, os efeitos da “turistificação”, estão carregados de sátira social, brotando da torrencial verborreia que sai da boca dos “testamenteiros”, numa clara reminiscência das cantigas de maldizer. Estes ritos conservam ainda alguns resquícios dos primórdios, associados à purificação da comunidade e à renovação da natureza, no momento em que se anuncia e celebra a chegada da primavera e se abandona a estação escura. O fogo, que queima o entrudo, tem o condão de consumir, também, os faltas dos populares que, desta forma, se sentem purificados para enfrentar com ânimo mais um novo ciclo.

No penúltimo capítulo são patenteados dois rituais celebrados na quarta-feira de cinzas: um em Vinhais - com a Morte e os Diabos à solta –, e outro em Bragança – com a tríade: a Morte, o Diabo e a Censura. Talvez, pelo facto de estes ritos se realizarem já em período quaresmal retire força à componente profana e acentue o cariz religioso dos mesmos. No entanto, as origens e a simbologia destes rituais são, no juízo do autor, as mesmas do Carnaval, pois provêm de rituais de fundo pagão, que consistiam na expulsão do inverno e na exaltação da fertilidade. Posteriormente, foi associada a ideia de purificação dos pecados da comunidade, em conformidade com os desígnios da religião católica propostos para o primeiro dia de Quaresma.

Na derradeira estação desta viagem pelos rituais com máscara de Portugal, tem o leitor oportunidade de se deleitar com o relato das festas de São João ou das Bugiadas de Sobrado (Valongo), em jeito de celebração do solstício de verão. Aqui se representa o “ciclo do pão” e o eterno combate entre o Bem e o Mal. A contenda termina com a derrota do Mal, representado pelo rei mouro, quiçá uma readaptação do rito/mito após as guerras da reconquista cristã.
Nos rituais com máscara dissecados por António Tiza, nesta obra, a alegoria, ao contrário do que sucedeu na antiguidade clássica cristalizando-se em logos, palavra, narrativa, manifesta-se em rito, dança, música, pantomina, elementos fundacionais da tragédia, na aceção Nietzscheana.

Sintetizando, o que se sublinha nestes rituais é a legitimação dos atos humanos através de protótipos extra-humanos, criados in illo tempore. É, sem dúvida, para essa época mítica fundacional que o ator/mascarado/careto, mal coloca a máscara, é transportado, abolindo, assim, o tempo cronológico. 
Estes ritos podem, lato sensu, reunir-se em dois grupos: no primeiro, a comunidade solicita o afastamento dos demónios e das doenças, pedindo, também, a remissão das culpas, através da ação renovadora e purificadora do fogo; no segundo, centrado nos rituais que precedem o Ano Novo, celebra-se a fertilidade e a prosperidade, tanto do homem/comunidade como da mãe natureza. Em síntese, todos estes ritos desejam a passagem do caos ao cosmos, que pela repetição cíclica (anual) configuram o eterno retorno, conferindo realidade aos acontecimentos.
A narração de António Tiza é analítica, permitindo intuir a sátira em que assentam os rituais, deixando, igualmente, espaço para o silêncio, visto que, como assevera Heidegger, o silêncio é o modo autêntico da palavra.
Os rituais, aqui descritos, criam solidariedade social, entrelaçam a moral divina e humana, fazendo com que a vida seja significativa para os membros dessas comunidades. Aceita-se, assim, recuperando a epígrafe inicial de Mircea Eliade, que o mascarado regresse, por instantes, aos céus, partilhando a imortalidade dos deuses.
Epilogando, esta obra ao auxiliar o leitor a pensar, dando-lhe a conhecer os ritos imemoriais, que ao longo das centúrias têm enformado a vida e a cultura dessas comunidades, contraria a sentença de Camus, lavrada na obra O Mito de Sísifo, “ganhamos o hábito de viver, antes de adquirirmos o de pensar” (2007: 19).
 

Bibliografia
Camus, Albert. O Mito de Sísifo. Trad. de Urbano Tavares Rodrigues, Lisboa, Livros do Brasil, 2007.
Eliade, Mircea. O Mito do Eterno Retorno, Trad. de Manuela Torres, Lisboa, Edições 70, 2000.
Grimal, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Trad. de Victor Jabouille, Lisboa, Difel, 1992.
Nietzsche, Frederico. A Origem da Tragédia. Trad. de Álvaro Ribeiro, Lisboa, Guimarães Editores, 1988.
 

O flagelo indefensável dos refugiados, no romance Uma Bondade Perfeita, de Ernesto Rodrigues (com a qual o escritor vence o Prémio Pen Clube da Narrativa 2017)

O amor é forte. / Que coisa forte que é a loucura. / Porque a
loucura canta minada de portas. / Nós saímos pelas portas,
nós / entramos para o interior da loucura.

Herberto Helder (Cruz, 2004: 349)

 

O mundo dobra-se ao peso da injustiça.

(Rodrigues, 2016: 170)

 

O ato de ler a prosa de Ernesto Rodrigues implica, por parte do leitor, ter tempo, para ler devagar, demoradamente, pois, só assim, como lembra Herberto Helder, no poema “Para o leitor ler de/vagar”, o leitor apreenderá os temas, os motivos e as ideias que enformam as obras literárias.
Sem dúvida que Ernesto Rodrigues, quando escreve, tem em mente, não o protótipo do leitor atual, mas, pelo contrário, um lente que “descanse” na lentidão da leitura, como única via de fruir e de apr(e)ender a palavra do escritor.
Nos tempos hodiernos marcados pela vertigem alucinante da (des)informação e da “inexistência de tempo”, este autor exige-nos a tranquilidade de espírito, a leitura atenta e demorada, como um meio libertador da angústia presente. Por conseguinte, o romancista, numa atitude de pertinácia perseverante, consciente e intrépida, convoca o leitor para uma leitura reflexiva, num ambiente de silêncio difícil de encontrar na atualidade, como assevera George Steiner: “o silêncio tornou-se um enorme luxo. Os jovens têm medo do silêncio”. E acrescenta: “o que vai acontecer às leituras sérias e difíceis?” (Steiner, 2011).
Ernesto Rodrigues tem, pois, plena consciência do “sacrifício” que pede ao leitor, intuindo, ainda, as mesmas dificuldades elencadas por Steiner, ao afirmar: “quanto à literatura pesada, deixá-la ficar. Dá dores de cabeça e cansa os músculos”. Pois “as linhas prenhes de prosa derreiam boas intenções” (p. 67).
Para o intelectual francês, “a literatura escolheu o domínio das pequenas realizações pessoais”. Ora, pelo que já se afirmou acima, a postura do autor de Uma Bondade Perfeita não corrobora essa prática, mas, pelo contrário, numa atitude completamente antagónica, não desiste de interrogar a sociedade, questionando-a, com o fito de levar o leitor à autognose.
Uma Bondade Perfeita é, à semelhança da anterior produção romanesca do autor, uma obra fortemente estruturada, onde a trama é pensada de forma holística, para que o mais ínfimo pormenor ocupe e sustente de forma harmoniosa a estrutura global do romance.
O livro encontra-se dividido em duas partes: I – “A NOITE DO CONVENTO”; II – “A VIRGEM E O MENINO”. A primeira subdivide-se em três capítulos, obedecendo rigorosamente à mesma estrutura interna. O número que abre cada capítulo apresenta uma breve contextualização do mesmo, a que se seguem quatro entradas devidamente intituladas. A segunda parte apresenta mais um capítulo, funcionando o quarto como desenlace.
O título da primeira parte remete o leitor para a grande analepse, narrada pelo frade ex-jornalista Filodemo, que concilia, de forma inteligível, os segmentos narrativos. O da segunda remete o leitor, auxiliado pelas imagens da capa, para a problemática central do romance, o drama dos refugiados. Assim, só próximo do final da obra se dá o (re)encontro entre mãe e filha separadas à nascença. Este enleio, segundo pensamos, poderá corroborar a opção do autor pelo Amor/Bondade que, como lembra a epígrafe de Herberto Helder, luta perenemente contra o Mal/Loucura.
A escrita do autor é pautada por um despojamento assinalável, muito próxima da poesia, musa que o autor também venera, cingida ao essencial, reduzida apenas ao osso. Aliás, esta ars narrativa é defendida e cultivada por outro grande vulto da literatura, também transmontano, José Rentes de Carvalho.
Salientamos, ainda, a recuperação da técnica queirosiana de utilizar os verbos com um significado diferente, alargando, assim, o campo semântico dos mesmos. Este recurso permite, também, realçar a cáustica ironia, marca indelével do autor, que valora esteticamente o texto. Vejamos alguns exemplos: “um silêncio roçou” (p. 33); “mas algumas províncias ainda rezingavam” (p. 114). E, por fim: “hienou ela” (p. 186).
O processo narrativo assenta na analepse (cf. Reis e Lopes, 1996: 29), como se deduz das palavras iniciais do romance, pronunciadas por Clemente: “— quero contar como fui convidado a matar minha mãe” (p. 9). Este repto é aceite pelo frade/Filodemo também ele narrador, “peguei na história, cujo fim estava por horas” (p. 10). E “agora, conto eu” (p. 134).
Deste facto resulta que, em termos diegéticos, no romance são audíveis duas vozes. Quem comparece no convento é Clemente (p. 20), com o propósito de salvar a mãe, Alcina, acusada e presa injustamente. Com esse desiderato, expõe o que viu ao frade/Filodemo. Este, por sua vez, passa a narrador apoiado nas revelações de Clemente, na primeira parte da obra, e no caderno de Ágata, na segunda, “a letra irregular do diário conta a sua via dolorosa” (p. 87).
O tempo cumpre no romance uma função axial. O cronológico abrange 38 anos de 1972 a 2010, como lemos na epígrafe, qual epitáfio tumular, inicial da obra.
O psicológico, associado, em particular, à grande violência, tanto física como mental, a que as personagens são expostas, facilita ao leitor a compreensão das forças, que se digladiam continuamente no romance: o amor/bondade e o ódio/maldade.
O tempo da intriga é condensado, à semelhança do que acontece na tragédia grega e no drama romântico, em apenas 8 dias, ou seja, de 22 de fevereiro a 1 de março de 2010. O argumento começa às “sete horas de uma noite fria, sexta-feira, 5 de Março de 2010” (p. 9). Ato contínuo, Clemente e Filodemo desenrolam, em flashback, a trama narrativa até ao epílogo: “na missa de sétimo dia por alma de Ágata, em 8 de Março de 2010, Indira e Clemente misturavam lágrimas” (p. 194).
A frieza das relações humanas, minadas pela desconfiança, indiferença e intolerância pessoal e coletiva, atravessa a narrativa, onde o silêncio propicia a introspeção. Pois, como menciona Steiner, “apenas o silêncio nos ajuda a encontrar o essencial em nós”.
O silêncio, por vezes, é maculado pela presença dos outros, “dirigindo-se ao bar, onde lhe punham à frente, em silêncio sujo, sanduíche de presunto e um copo de leite” (p. 16). O silêncio, alimento do espírito, é associado ao nutriente corporal (sanduíche), “após o que, transportava a sua dose de silêncio para a banca de jornais e lia os títulos” (p. 16).
A crítica à justiça e à forma de a exercer serve de pano fundo ao romance, “os poderes da capital, que se esgadanhavam na reforma de uma justiça que ninguém via: justiça e reforma” (p. 27).
O jornalismo é-nos apresentado como presa dos grupos económicos, destituído da sua nobre missão de informar. “O jornalismo inventa quanto pode. Distraído, não explica. Ou deixa-se levar com duas cantigas pelo grupo económico” (p. 27).
Por fim, registamos a hipocrisia humana face às guerras intestinas que, tanto em 2010 como no presente, devastam as nações e mergulham milhares de refugiados no abismo:
“tanto sacrifício para um fim trágico, no fim de uma guerra esquecida, perdida para a humanidade em cada Afeganistão, que se esvaía, éden para os encenadores do mal, como inevitáveis eram seus «danos colaterais»: aviões aliados massacravam civis. Vigorava o «fogo amigo», demasiado «amigo», ali. As autoridades arribavam desde a véspera, segundo hierarquias e horas de maior audiência; a oposição ao governo vociferava, à distância, para repórteres sedentos, enquanto o olhar sobrevoava poças vermelhas; operadores de câmara eram apanhados em serviço, alguns interpelavam um céu fechado…” (p. 73).
Perante este retrato, que mais palavras se poderão usar para descrever os horrores da guerra, a dissimulação dos governantes, a parcialidade e a teatralidade dos meios de comunicação, a não ser, uma vez mais, as do próprio autor: “«Ele não tinha princípios; tinha fins.» Não: antes de mais, a maldade era um meio. O mal pelo mal deliciava o seu homem” (p. 76).
Uma breve palavra sobre os dois textos citados no romance. O de Séneca (p. 57) justifica o título do livro, corroborado pelos ícones da capa, que recorre às palavras do filósofo latino, e remete o leitor para o amor, a bondade e a perfeição, na aceção de Eça. Refira-se, ainda, que estes matizes já estavam plasmados na carta 34, do livro IV (cf. Séneca, 1991: 125, 126).
O outro intertexto presente na obra é retirado do texto bíblico, Génesis, 6: 5-6 (p. 63), onde se lê que Deus se arrependeu de criar o homem. Se o texto de Séneca justifica e legitima a bondade de várias personagens da obra, a citação bíblica remete o leitor para a maldade, o ódio e o desrespeito pelas normas sociais, personificados na personagem Menigno.
Sendo um truísmo afirmar que se compreendem melhor os tempos modernos lendo os clássicos, onde a magnificência e a crueldade humana se cristalizaram, não é menos verdade que em Uma Bondade Perfeita o ser humano tem uma oportunidade singular para se confrontar com os dois paradigmas (bem/mal) que regem a humanidade e, deste modo, fazer uma opção consciente.
Enfim, tudo depende do arbítrio do ser humano, porque, como escreveu outro clássico, Sófocles, no primeiro estásimo da tragédia Antígona, “Muitos prodígios há; porém nenhum maior do que o homem” (1987: 52).
Este prodígio da natureza vive, ab initio, como joguete, nas mãos destas duas forças primordiais, sendo que esta dicotomia abala, ininterruptamente, a natureza humana. Cabe, pois, a cada pessoa saber agrilhoar uma e alforriar outra. São vários os exemplos literários onde a bondade prevalece. O mesmo acontece em Uma Bondade Perfeita, onde o bem triunfa, lembrando-nos a sentença de Virgílio “Amor omnia vincit” (Bucólicas, 10, 69).
Terminamos com a derradeira proposição da mencionada carta de Séneca: “Não segue o caminho da verdade aquele cujos atos discordam do que afirma”. Ora, a postura de Ernesto Rodrigues tem mostrado que o termo coerência não é, para ele, uma palavra vã, tanto cívica como literariamente.
 

Do Movimento Operário e Outras Viagens, de Ernesto Rodrigues

Um poema é a projecção de uma ideia em palavras através da emoção.
A emoção não é a base da poesia: é tão somente o meio de que a ideia se serve
para se reduzir a palavras.

Ricardo Reis (Fernando Pessoa)

 

Este livro de poesia é composto por quarenta poemas, elaborados como resposta aos estímulos das deambulações do poeta, como se infere da leitura do título “Outras Viagens”. Os topónimos poetizados por Ernesto Rodrigues são as cidades míticas que enformaram a sua cultura, nessa busca interminável do ser por ele próprio e, através dele, pelo outro, lato sensu, pelo homem em busca da sua felicidade, que o poeta só consegue descortinar pelo amor à língua, cultura e civilização.
A obra abre com a composição poética que dá título ao livro, “Do movimento operário”, onde, para além de se fazer uma sentida homenagem ao honesto trabalho com o qual o Homem ganhará o pão, metaforizada no pai do poeta, se compara o ofício da forja, isto é, do ferreiro ao ofício cantante, ou seja, à ars poetica. Assim, para o eu lírico, o processo alquímico é análogo, pois, tal como o ferreiro domina e molda o ferro em brasa para dar forma aos mais belos e proveitosos utensílios, o poeta funde, molda e dá forma às palavras para escrever o verso mais perfeito que consiga auxiliar o leitor na sua autognose permanente.
O segundo poema é um soneto, embora a arquitetura estrófica não seja a canónica, uma vez que é composto por um dístico e três quadras, dedicado à mãe do poeta, onde se patenteia o carinho e a ininterrupta preocupação maternal. Parece-me que o dístico resultaria melhor no final, visto tratar-se da súmula do poema, funcionando, assim, como chave de ouro.
Os poemas deste livro podem reunir-se, segundo creio, em dois grupos: o primeiro marcado pelo tom mais intimista, ou seja, mais lírico, presente nos sete sonetos e nas composições mais curtas, onde se ouve a voz dolorida do poeta murmurando com saudade as doces alegrias pretéritas; o segundo, e mais amplo, compreende o grande número de poemas narrativos, que, na minha ótica, se organizam em torno de duas realidades, significativas a todos os níveis para o poeta, a saber: Europa, e Portugal/Nação/Pátria.
No primeiro grupo, encontramos textos sobre topónimos da Hungria e de outras cidades e países da Europa, que enformaram culturalmente o poeta. Nestes poemas de grande fôlego o tom épico alterna com o lírico, facilitando a comunicação com o leitor.
O seguinte reúne poemas sobre o país, assunto de questionação constante pelo poeta, onde o tom épico secundariza, de vez, a voz lírica, nos quais o eu poemático assume, sem ambages, a atitude prometaica da poesia. Esta atitude leva-o a declarar abertamente o seu intento, que passa por provocar a reflexão no leitor e levá-lo à ação, para que, em conjunto, se possa construir um mundo melhor. Nem outra função pode ser cometida à poesia a não ser inventar novas realidades a partir do real concreto. 
Menciono o poema épico “Outra Pátria”, em jeito de epítome do que afirmei atrás. Esta composição apresenta a estrutura interna da epopeia, pois encontra-se dividida em quatro partes: proposição, invocação, dedicatória e narrações. Aqui, creio que o modelo é Camões, uma vez que as epopeias clássicas não apresentam, na sua estrutura interna, a dedicatória. Poema singular e fulcral na arquitetura do livro, onde imitador e imitado se confundem num derradeiro esforço de refundação da pátria que, por incrível que pareça, continua numa austera, apagada e vil tristeza. Não falo nas aproximações estilísticas, realço, tão só, os motivos e propósitos enunciados no incipit do poema: “A luz, a cor, o dom de minha terra / canto, no tempo mau em que navego.” (p. 50, sublinhado meu) Resulta, também, feliz a decomposição dos versos da “proposição” em elementos, realçando, desta forma, o ritmo e a compreensão da leitura. A primeira estrofe da composição 4 da narração corrobora a ideia de privação e do abatimento que persiste em acompanhar o país, no presente, como se percebe pela interrogação com que termina a estrofe: “Que bravia sombra vem, / ronronante, levando-me por sobre / sonhos gastos de pátria tão pobre?” (p. 61)      
É, ainda, pertinente salientar que este carme é antecedido pelos poemas “Língua” em que lemos: “Eu comovo-me, povo, com teu fado, / a coragem de ser além de nós, / tão pequeno, já solo embarcado, / para longes contactos, uns após // outros – em sintonia cor e língua.” (p. 44); “História de Portugal”, no qual se revisitam os acontecimentos fundadores da nossa identidade como Nação; “Pátria”, onde “Chão, Deus, água, valor, língua, / são quinas de Portugal” (p. 46); “Rimas Pobres”, em dois andamentos: no primeiro o poeta apresenta um retrato mórbido do país, como se pode constatar pela primeira quadra: “A maldade tomou conta de nós. / Prometia baixar impostos; dar / emprego a milhares; ser correcto; / ajudar quem precisa, e avós” (p. 47). A segunda parte encerra com um aviso e a convocação à não resignação dos leitores/eleitores para que não embalem no falar melífluo dos governantes: “Mas, se fores // na conversa, em ti chorarás quanto / buscou evitar-te este meu canto.” (p. 47, sublinhado meu) O vate acredita na possibilidade de a poesia, “este meu canto”, ajudar a transformar o mundo e a tornar o ser humano mais cônscio; “Governo”, onde se faz uma crítica desvelada à imigração e se apela à pátria, adjetivada de amada, para que, tal como uma mãe, continue a sustentar os seus filhos, “O exílio // não é vocação - pesa-, ó amada pátria: sê grande, mas em ti; cria bens;” (p. 48).
A composição “Outra Pátria” precede o carme “Democracia”, um longo poema narrativo organizado em seis partes no qual o poeta, recorrendo a adágios populares e a frases feitas, continua a pintar um quadro do país com cores esmaecidas, onde, apenas, é nítida a falta dessa mesma liberdade que dá título ao carme. O sujeito lírico chega ao ponto de a apostrofar, “Sê, democracia, igual aos que te desejam recta, cultivada” (p. 64). Ato contínuo, o poeta continua a enumerar as desventuras da democracia, recorrendo, despojado das demais armas, à poesia como a derradeira salvação, “A ti cabe, amigo verso, tal / dedicatória (…) Por ti começa, verso, sermos outros” (p. 65). Mas, e apesar destes desejos e incentivos para que a democracia seja o sol do país, a composição culmina de forma disfórica, como se pode constatar pela leitura destes versos: “Tens, ó democracia, sangue vil em ti. / Não digas, pois, que és democracia. Oh, / mas que de ilusões o homem se sacia…” (p. 68) 
Este conjunto de poemas, sob o signo da portugalidade, apresenta três momentos. O primário formado pelo conjunto de carmes que precedem “Outra Pátria”, nos quais o poeta reflete sobre o país no passado, no presente e “sem futuro”. Por essa razão, ele propõe uma alternativa, seguindo no encalço de Camões, que passa por reedificar uma “Outra Pátria”, acreditando que o canto/a poesia, como aconteceu com o épico, pode cumprir esse desígnio. Penso ser essa a inferência que se pode retirar da leitura da estrofe que encerra o referido poema: “Honrar quem nos comove: língua, chão, / dignidade; ser grande na incerteza / lida de viver. Um poema não / faz muito - mas é cais, casa, desperta / asas do sim, que dão cor ao lugar. / Um poema faz-se para criar.” (p. 61, sublinhado meu).
Os antepenúltimos poemas do livro, “Civilização” e “Cultura”, reacendem a proposta de Pessoa na Mensagem. No entanto, o que em Pessoa era sonho, crença e esperança nesse Quinto Império capaz de redimir o país, é, no presente, para Ernesto Rodrigues, desalento, pois “A civilização é um mal sem cura; / sobrevivemos?” É, ainda, miséria e sujeição, “dependência, necessidades falsas – sonho de verbo-acto, adjectivo, / quando a vida é nome pobre” (p. 71). É, por fim, hipocrisia: “Cresce sociedade / no equilíbrio certo / entre o ser e o ter. (…) Morrem / povos famintos. Voam / palavras, que encobrem / os ares; e não vende / arte fora de moda” (p. 74). A deceção é total, como se depreende da interrogação “Que mundo nos calhou, / tão desequilibrado?”
O livro de poesia Do Movimento Operário e Outras Viagens abre com um tom épico cantando as capacidades do homem que, modificando o mundo, pelo trabalho, se transforma. E finda com o registo lírico em tom autobiográfico no poema “Dono de mim, não perco nada. Séneca”, e com a crença nas potencialidades da vida humana em “A vida não é uma linha; tem”, onde as últimas palavras constituem um repto à não resignação do ser humano e à crença nas suas capacidades para transformar o mundo: “Faz / da dor teus pés de lã, rasgando lagos; / do riso, praia nua, que afago” (p. 76).
Epilogando, este livro pode ler-se como uma sonata em três movimentos e em forma circular: o primeiro, onde se faz a apologia épica do trabalho; o segundo, onde ecoam algumas vozes resultantes da fadiga e do ceticismo emanados da espuma dos dias, para, no último andamento, se reforçar, de novo, as capacidades individuais do ser humano.
 

Literatura, sociedade e ironia em Passos Perdidos, de Ernesto Rodrigues

Este confirmado romancista teve a coragem e a sageza de satirizar com grande mestria, acutilância e sentido de ensejo histórico os tempos hodiernos, no geral, e os conluios que sempre se estabeleceram entre política e economia, em particular. Enresto Rodrigues revela ousadia ao abordar este tema premente na nossa sociedade e ao pôr a descoberto as teias que são urdidas no “santuário” da democracia e que têm enredado o país, desde as sementes de Abril até ao presente.

O título Passos Perdidos só é identificável pelo ícone do espaço homónimo do edifício da Assembleia da República, que serve de capa ao romance. No entanto, este título é polissémico, uma vez que perdidos, ou melhor, gorados foram, também, os intentos dos corruptores.   

A obra abre com uma epígrafe retirada da Arte de Furtar, capítulo LX, “Dos que furtam com unhas políticas”, que dá, ab initio, o mote para a trama do romance e permite, segundo cremos, ao leitor inferir o tema a escalpelizar na obra.

Passos Perdidos ergue-se como uma obra fortemente estruturada, visto que é composta por dezasseis capítulos, agrupados em duas partes (cada uma com oito) - note-se a simetria -, seguidos de um sucinto, mas elucidativo epílogo. Quanto à estrutura, o romance apresenta duas partes: a primeira subordinada ao título “A queda de um Anjo”, que, sem dúvida, faz ressoar na memória literária do leitor a obra homónima de Camilo. Outra ilação que o leitor facilmente estabelecerá prende-se com a associação de ambos os protagonistas. João Félix Filostrato é, de imediato, associado à imagem de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda. Contudo, esta associação perde nitidez com o título da segunda parte do romance, “Redenção”, indicando, desde logo, uma inflexão de conduta em relação ao modelo literário adotado por Ernesto Rodrigues. O leitor, facilmente, concluirá que esta queda é mais metafórica do que real, uma vez que a mesma não passa de um subterfúgio para desvendar o ardil, por um lado, e assumir as responsabilidades pretéritas, por outro.

Que Camilo e Eça, nomeado na obra pelo título do romance O Primo Basílio (p. 101), são vultos a quem Ernesto Rodrigues presta contínua e apurada homenagem corrobora-o, para além do que já foi dito, o facto de a intriga do romance ser narrada, nos onze primeiros capítulos, em analepse pela personagem João Félix Exposto. Este narrador/personagem é fruto de uma relação da juventude do deputado João Félix Filostrato, que, também, ignorava este facto. O ritmo cadenciado e preciso da narrativa, mais uma vez a fazer lembrar os dois romancistas do século dezanove, e o desenrolar programado da história prendem o leitor ao texto.

O tempo da ação, à semelhança do que acontece na tragédia, é bastante concentrado em, apenas, nove dias. O narrador desfila diante dos nossos olhos, como se de uma representação teatral se tratasse, os acontecimentos que, efetivamente, vão sendo apreendidos pelo leitor.

Porquê literatura? Porque o romance está pejado de referências literárias tanto explícitas como implícitas. Recordamos, apenas, não querendo ser exaustivos: Camões, Bocage e Garrett. Terminamos com a alusão à “Lacailândia”, isto é, Portugal, onde ressoam ecos da obra A Montanha da Água Lilás de Pepetela. 

Todo o romance é um retrato irónico da sociedade atual, lembrando a arma mais eficaz de Eça. É patente a intenção do autor em desvelar a realidade portuguesa atual, recorrendo a truísmos e a provérbios, por vezes alterados, na senda de Saramago, para provocar no leitor a reflexão, durante o ato de ler, e levá-lo, como é apanágio do teatro épico, à ação, no final da leitura.

Epitomando, Ernesto Rodrigues não ficou aquém dos dois modelos literários, que se propôs preitear neste seu livro, uma vez que as personagens de Passos Perdidos não destoam das que Camilo perpetuou, nos seus romances. Por outro lado, qualquer leitor mais atento deste livro não hesitará em apelidá-lo de queirosiano, devido à forma como a realidade portuguesa atual, filtrada pela ironia, se encontra plasmada nele.