A nova vaga e as que hão-de vir

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Seg, 21/09/2020 - 23:06


Ainda não chegou o frio mas já nos sentimos rodeados de Inverno, esse tempo de precipitação involuntária na prostração, antes da retoma de todas as esperanças, que é a pulsão trazida por cada nova primavera.
Não faltarão dias de calor até ao São Martinho, quando se prova o vinho, que poderá ser bem bom, neste ano que deixará, pelo que se vai vendo, memória de grandes misérias.
Misérias individuais, que o tempo desvanecerá, como sempre tem acontecido na longa história da humanidade, do ombro a ombro com a morte, das perdas irremediáveis, da saudade perpétua. 
Mas haverá outras, insidiosamente presentes no próximo futuro. As dificuldades económicas poderão reinstalar o individualismo quase selvagem, predatório ou do salve-se quem puder, com consequências trágicas.
Temos notícia de momentos altos de misericórdia em situações semelhantes no passado, mas a lucidez na observação revela que a tendência geral dos comportamentos não passou por aí, antes revelou o lado obscuro dos seres humanos, que se pretendem semelhantes aos deuses, mas não se libertaram das características que apontam aos demónios.
Fenómenos como os que vivemos desde o último inverno, agora em vias de agravamento, têm sido integrados pela humanidade, apesar de verdadeiras razias entre os viventes. Os tempos que se lhes seguiram foram, muitas vezes, de perda de referências morais e éticas, de diluição de valores civilizacionais aparentemente consolidados, mas também de procura ansiosa de salvadores, recorrendo às divindades tradicionais, capazes da piedade, mas também da crueldade, ou descobrindo novos profetas, sem cerimónias para abrir caminho por entre o sangue, o suor e as lágrimas dos outros.
Há cem anos, depois das vagas da pneumónica, em 1918 e 1919, enquanto alguns se dedicavam a sorver até à última gota os néctares do prazer mundano, que já então se sabia que a vida são dois dias, muitos outros se deixaram arrastar por autoritarismos messiânicos, como aconteceu na Rússia, que se tornava na União Soviética, onde pontificou Stalin até à década de cinquenta, na Itália, que venerou Mussolini e o seu modelo fascista, até que, no início da década de trinta, o mundo viu emergir Hitler, ferida moral de que ainda não se redimiu.
Os tempos que aí vêm serão de mais angústia e desespero, que a resistência e a coragem têm limites. Não vale a pena arengar sobre nova normalidade, porque a vida nunca vingará se nos afastarmos da natureza humana, para nos tornarmos produto quase artificial, sem emoções, sem espontaneidade, sem sentimentos nem pecados, que também nos iluminam o caminho.
Por enquanto só podemos esperar para ver. Entretanto, o respeito básico por nós e pelos outros há-de permitir que cumpramos as regras, que têm dado algum resultado, se compararmos com realidades do passado.
Uma das lições desta tragédia passa por reconhecer que uma obrigação fundamental dos sistemas políticos, para além de defender a liberdade, a igualdade e a fraternidade, proclamadas como desejos, é a procura sistemática de instrumentos que garantam a segurança de todos e de cada um perante ameaças que a ciência vai identificando e que não devem ficar à mercê de descuidos, omissões, oportunismos ou negócios caprichosos, porque o direito mais fundamental é a vida.

Teófilo Vaz