class="html not-front not-logged-in one-sidebar sidebar-second page-frontpage">

            

As nossas lembranças

A minha primeira memória nítida tem 25 anos. A minha mãe a olhar para mim, eu com quatro anos, acabada de chegar do cabeleireiro com o cabelo, na altura pêlo de rato meio loiro, cortado à tigela. Ela à porta de casa, num misto de expressão choque-normal, perguntou: “O que é que te fizeram, filha?”. E eu, que até então estava radiante a olhar-me pelo espelho do retrovisor do nosso carro branco (na altura não fazia mal não ter cadeirinhas e ir no lugar do pendura), enquanto ouvia meu pai, que me tinha levado a cortar o cabelo, a dizer que estava muito bem, chorei. “Estou feia, mãe?”. E toda a minha alegria se transformou num pranto, suponho que para deleite da família, que me deve ter explicado, tal como se explica uma criança de quatro anos, que não faz mal porque o cabelo volta a crescer. Tenho fotografias com o famoso corte de cabelo, em que apareço a sorrir, bastante feliz. Curiosamente, não me lembro do dia desse retrato ao pé das roseiras, mas lembro-me do dia em que cortei o cabelo. Até de estar sentada na cadeira, com aquela toalha enorme à minha volta, e de ver o meu pai pelo espelho, a dizer que podia cortar “mais um bocadinho”. Hoje, 25 anos mais tarde e vários traumas com cabelos curtos depois, uso o cabelo por cima do ombro, e gosto. Não é à tigela, mas é bastante curto. Deduzo que seja então verdade que o tempo é relativo e que cura tudo.

O tempo apaga também algumas pessoas, que em algum momento fizeram parte das nossas vidas. Devemos apagar algumas por falta de espaço de armazenamento, porque não nos fazem grande falta ou não nos foram particularmente próximas. De outras, simplesmente nos fomos afastando, muitas vezes sem uma zanga pelo meio ou sequer razão óbvia. E vamos esquecendo detalhes que costumávamos saber de cor, porque ficam fora de mão do uso diário das nossas faculdades. Vão ficando cada vez mais distantes, cobertas de nevoeiro. Num sábado à noite fazia-se uma espécie de reflexão sobre pessoas assim, que tinham feito parte do crescimento, mas que algumas já não figuravam. Alguns deixaram mesmo de falar, apesar de continuarem a cruzar, às vezes, as mesmas ruas. Não se sente mágoa ou ressentimento. Cada um ficou no lugar onde não fazia mal ficar. Todos podemos fazer este exercício, dos colegas da primária, dos amores do secundário, dos amigos em comum, gandas malucos, que não fazemos ideia de onde andarão, apesar de termos passado momentos que achávamos que nos iam unir pela vida fora. De outros, nem do nome nos lembramos bem, e temos que nos recorrer dos amigos que ficam, e que têm mais espaço de armazenamento. Podemos até sentir uma certa nostalgia, uma vontade súbita de retomar contacto. Penso que raramente, ou nunca, o faremos. E muitas vezes por um motivo tão simples e racional como saber que não vamos encontrar essas pessoas no mesmo comprimento de onda, nem nós estamos onde todos estávamos quando fazíamos parte do mesmo círculo.

É que as relações, todas elas, parecem ser circunstanciais. Disseram-me isto, mais do que uma vez. Não quis crer. Até que comecei a ser mais realista. Ainda assim, essas circunstâncias, às vezes, também dependem de nós.

O Mercado da Saúde: será semelhante a tantos outros?

A Saúde tem merecido ao longo dos anos uma atenção acrescida, como parte integrante das políticas sociais, tendo de forma progressiva conduzido à maior cobertura e proteção dos cidadão e famílias, ao aumento da locação de recursos e mobilizado o interessa pela maior racionalização dos meios.

O setor da Saúde com caraterísticas que o diferenciam de outros setores da economia, pelo volume das verbas envolvidas, pela especificidade do mercado em que opera e natureza do “bem saúde”, exige aos prestadores um exercício aprofundado da sua prática profissional.

A necessidade de escolher a melhor alternativa em política de Saúde, nas dinâmicas de Administração e Direção, conducentes a políticas de cuidados e serviços, levam a que o prestador conheça o valor dos benefícios esperados e os custos dos recursos envolvidos.

A Saúde enquanto “bem social” tem merecido debate permanente, nas regras da cobertura, prestação, utilização e financiamento. E conduzindo a soluções mistas no Sistema de Saúde, onde a prestação, regulação e financiamento, se articulam e afirmam de forma díspar no terreno ideológico.

O Serviço Nacional de Saúde como vetor da política de Saúde emergente em 1974, dadas as potencialidades que encerra e o rumo político que pode determinar, tem permitido a apresentação de propostas de menor peso público, “competição gerida” e outros, face ao acréscimo de despesas com a saúde e à maior atenção dedicada aos aspetos da eficiência, que podem alterar a sua matriz universal, geral e gratuita, de profunda inspiração pública e social.

A Saúde nas últimas décadas para além de envolver a maior responsabilização de prestadores e cidadãos, prevê a necessidade de definição de vários níveis de intervenção, formas organizadas de atuação, métodos de financiamento adequados, métodos de avaliação sistemática, entre outros, sobre efetividade, eficiência e a qualidade dos cuidados prestados. Logo, os prestadores precisam de recorrer à informação disponível produzindo saberes e melhores práticas para participarem na mudança estrutural da saúde, onde se inscreve um nova cultura de “Serviço”.

Ressalta dos desígnios e estrutura dos serviços de saúde, dos requisitos dos cidadãos, práticas e objetivos dos prestadores de Saúde, a maior atenção pelas disciplinas sociais, complementaridade de saberes, satisfação de clientes, colaboradores e contribuintes.

Perspetivar o mercado como mecanismo pelo qual compradores e vendedores de uma mercadoria se confrontam para determinar o seu preço e a quantidade, pressupões a existência da soberania do consumidor, que irá decidir com base no conhecimento da utilidade que lhe é oferecida pelo consumo.

No que se refere ao setor dos cuidados de saúde este modelo acima mencionado não se adequa pelas características inerentes à natureza dos seus bens e serviços.

No setor da saúde encontramos características que o distinguem de qualquer outro setor de mercado e que se refletem tanto no que se refere ao próprio objeto de escolha, como no que se refere ao comportamento dos agentes da procura e da oferta, isto significa que muitas das regras básicas do mercado não se aplicam no caso dos cuidados de saúde. Pois, existem algumas razões que, consideradas em conjunto, sugerem que este mercado apresenta caraterísticas específicas.

Assim, em cuidados de saúde a “soberania do consumidor”, não se verifica, quer porque a tecnologia dos cuidados de saúde é demasiada complexa, sendo difícil ao consumidor (doente) fazer escolhas racionais quer porque o consumidor não tem capacidades para escolher (sobretudo com os doentes mentais e em situação de urgência), quer porque o individuo no processo de escolha não consegue revelar as suas preferências que são delegadas numa terceira pessoa.

Acrescentaria ainda como relevante uma outra das características básicas deste setor em relação a outros: a presença dominante da incerteza na tomada de decisões, nomeadamente, a incerteza do individuo quanto ao momento em que necessita de cuidados de saúde e quais os custos envolvidos; a incerteza do médico quanto ao tratamento face a cada situação e, por último, a incerteza quanto aos resultados desse mesmo tratamento.

Terminaria salientado que neste tipo de mercado é evidente que as pessoas se preocupam mais com os cuidados de saúde do que com outros bens, com o acesso a alguns tipos de cuidados do que a outros tipos de cuidados.

 

Marisa Lages

Vendavais - Sem tempo para ter tempo

A corrida às legislativas já começou há muito tempo. Trabalhando na sombra, os partidos têm desenvolvido estratégias no sentido de constituir as suas listas, mas até agora pouco se sabe, a não ser que o PSD já tem alguns dos seus cabeças de lista divulgados na comunicação social.

A reunião com o PS para viabilizar um acordo que aprovasse a Lei de Bases da Saúde não deu frutos. Depois da nega do BE e do PCP às pretensões de Costa, este virou-se para o PSD, mas Rui Rio acabou por desistir das exigências de Costa e veio a terreiro dizer que não queria ser a muleta da geringonça. Claro, mas não se importava de o ser do PS se a negociação desse certo. Mas não deu. Como Costa não tem tempo a perder virou-se novamente para a esquerda e pediu ajuda. Catarina já estava à espera desta deixa e prontificou-se a viabilizar o SNS. Nenhum deles tem tempo a perder. Resta agora saber qual o acordo que vai ser aprovado e quem vai perder ou ganhar com esse acordo. Estão todos numa corrida desenfreada.

Enquanto Rui Rio supostamente trabalhava no sentido de se entender com o PS e apresentar um acordo positivo que lhe desse votos e aprovasse a nova Lei de Bases da Saúde, o PSD, na sombra, andava a constituir as suas listas, mas com indicações claras de Rui Rio e que iriam surpreender o país e o próprio PSD. Rui Rio não será cabeça de lista às legislativas! Surpresa? Talvez, mas o objetivo é claro. Promover alguns rostos desconhecidos que serão eleitos deputados certamente, enquanto os mais conhecidos vão em segundo ou terceiro lugar e que serão igualmente eleitos para deputados. O que mudou? Nada a não ser a ordem dos nomes nas listas. O que ganha o PSD? Talvez elogios ao apresentar listas onde os cabeças são desconhecidos e alguns são mulheres, o que é de louvar. É tempo de mudança, mas não muita. Há quem diga que é uma revolução nas listas do partido. É demasiado forte o termo porque não há nenhuma alteração tão grande que o justifique. A inversão da ordem nas listas nem sequer promove o risco porque este é assegurado pelos segundos e terceiros nomes. O que deixamos de ver é os candidatos habituais e mais velhos e experientes a assumirem os primeiros lugares e por isso mesmo a serem criticados por serem sempre os mesmos. Aqui é que a jogada é meritosa.

Esta jogada de Rui Rio faz-lhe ganhar algum tempo nesta corrida em que não quer chegar atrasado. Falta-lhe tempo para poder estar em todas as frentes e portanto não pode perder tempo algum. Faz lembrar Trump na cimeira do G20 a querer falar com todos os líderes incluindo Kim Yong Un da Coreia do Norte mesmo sem ter agenda marcada e a querer ficar bem na fotografia também ao fazer as pazes com a China. Enfim. O mesmo fez Bolsonaro ao cancelar a reunião com o Presidente da China por este estar atrasado vinte minutos. Claro. Tempo é dinheiro. O que é preciso é ganhar tempo e não perdê-lo.

Vendo esta corrida pelo prisma da esquerda, quem vai acabar por ganhar pontos é o BE, já que Catarina ao não desmarcar da sua posição em termos de acordos com o PS, vê este aproximar-se novamente e volta a espreitar o acordo do SNS aprovado com a sua prestimosa ajuda, ajuda que Costa terá de pagar, seja como for. Ninguém dá nada sem esperar algo em troca. Quem não está a gostar muito desta negociação é o PCP que vê cada vez mais longe ser necessário para a geringonça ser realidade. Como também não quer perder tempo, atira-se ao PS e não só, criticando tudo e todos, para que seja olhado como coerente nas suas posições e assim ir buscar os votos que lhe fugiram nas europeias, embora adiante que o resultado será bem diferente para melhor. Talvez tenha razão.

Se nestas andanças o PSD quer ganhar algum tempo mostrando trabalhado já feito, Catarina parece estar a perder tempo já que nada veio à praça pública sobre o projeto de listas para as legislativas. Será que Catarina também não quer ir em primeiro em nenhuma delas? Pode ser que copie Rui Rio e dê lugar aos mais novos. Ela tem lutado contra o PS porque vê Costa a olhar para o PSD, mas esta perda de tempo não serve a ninguém e muito menos a ela se quer marcar pontos nesta corrida. Não vai querer chegar em último certamente.

Também o CDS anda a tentar ganhar tempo, mas as listas ainda não estão prontas e muito menos divulgadas. Cristas, para não perder tempo, lança o seu livro como estratégia inicial e com o objetivo firme de ganhar votos e tempo para chegar a tempo à meta das legislativas. É uma estratégia louvável. Dará frutos? Faltam os cabeças de lista! E aqui eles têm de ser conhecidos sob pena de se perder tempo e dinheiro. Não há tempo para perder tempo!

Deste modo e tal como a juventude atual, os partidos estão sem tempo para ter tempo. O melhor é não desperdiçar nada.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Bernardo Rodrigues (Carção, c. 1663 – Coimbra, 1695)

A história da família na inquisição começou com o avô paterno, Francisco Rodrigues, o Castelhano, de alcunha. Nascido em Vimioso, morou muitos anos em Castela, de onde veio, por 1650, e se estabeleceu em Chacim. Terá falecido em 1665, com 90 anos, nas celas da inquisição de Coimbra, preso que foi no ano anterior.(1)

No dito ano de 1664, na mesma inquisição, se foi apresentar Francisco Rodrigues, o Sargento,(2) filho daquele e pai de Bernardo Rodrigues. Mandado embora, foi preso 20 anos mais tarde, saindo penitenciado no auto-da-fé de 9.6.1686.

Tios e tias de Bernardo, 6

ou 7 passaram igualmente pelas cadeias da inquisição, o mesmo acontecendo com seus irmãos e irmãs, cunhados e cunhadas. Em Carção, ficou apenas a mãe. Dois irmãos e uma cunhada foram queimados nas fogueiras do auto-da-fé de 25.11.1696: António Rodrigues, Atanásio Rodrigues e Helena Rodrigues.(3)

Fiquemos em Carção, no mês de Junho de 1693, quando a inquisição de Coimbra lançou uma verdadeira operação de limpeza da heresia judaica da aldeia, fazendo prender, de uma só vez, umas 22 pessoas. Imagine-se a quantidade de familiares da inquisição, autoridades civis e militares, padres e beatos mobilizados para executar tantas prisões! Atente-se nos leilões de bens dos presos, de modo a fazer dinheiro para pagar as despesas da viagem e também os ferros e cordas com que os prenderam, as jornas aos homens que os levaram presos para Coimbra e o aluguer das bestas para o transporte!

Entre os prisoneiros contou-se Bernardo Rodrigues(4) e vários membros da sua família. Obviamente que as casas, terras, couros… os bens que tinham foram sequestrados e leiloados na praça pública. A Bernardo Rodrigues, foram ainda sequestrados 39 mil réis em dinheiro. Vale a pena contar, pois é caso exemplar de como os leilões funcionavam.

Dois anos antes, a inquisição prendera seu irmão Francisco Rodrigues e seu cunhado João Fernandes Roldão.(5) E indo à praça os seus bens (uma casa, uma horta, um macho e bens móveis, quantidade de couros) Bernardo e os irmãos os arremataram. Como não tinham dinheiro suficiente, pediram a Francisco Dias, de Argoselo, ficando a dever-lhe 86 mil réis. Para além disso, o mesmo Francisco Dias largou a Bernardo uns couros que ele arrematara, para com eles se governar, comprometendo-se Bernardo “a lhe pagar, assim como fosse fazendo o dinheiro e ao tempo de sua prisão tinha juntos 39 mil réis para lhe entregar, os quais deu, à ordem do juiz de fora, ao comissário para seus alimentos”.(6)

Chegado a Coimbra, Bernardo foi metido na cela com 3 companheiros de Carção, algo que o regimento desaconselhava e que é significativo de como a cadeia estava a abarrotar. Mais tarde, meteram na cela um padre de Torre de Moncorvo, certamente a desempenhar o papel de espia: José Camelo de Meireles, abade de Fornos.

A primeira sessão foi destinada a perguntas sobre a sua genealogia e inventário dos bens. Aqui, Bernardo só apresentou dívidas. Para além dos 86 mil réis a Francisco Dias, de Argoselo, disse que estava devendo ao tendeiro André Rodrigues 6 mil réis ”que lhe emprestou na ocasião da morte do seu pai”, mais 9600 réis a João Francisco, familiar do santo ofício de Braga “de fazendas que lhe deu fiadas para tratar” e mais a um mercador do Porto que lhe fornecia fazendas para vender na loja, que seria da família.

Dos motivos da prisão de Bernardo, diremos que várias pessoas disseram que com ele se tinham declarado e feito jejuns judaicos, especialmente celebrando o Kipur. Veja-se apenas uma dessas denúncias, feita por sua cunhada, Catarina Lopes:

— Disse que haverá 7 anos que os fará em setembro que vem, em uma das varandas de Francisco Rodrigues, sargento, no dia grande, das 11 para o meio-dia, se achou com Luísa Lopes, sua cunhada e com Francisco, Bernardo, António e

Atanásio, irmãos, presos, e com Apolónia Dias, presa, filha de António Rodrigues e Maria Dias, defunta, todos juntos à sombra da dita varanda, e entraram nela Isabel Dias, mulher de Baltasar Lopes, presa, e Inês Lopes, já defunta, mulher de João Fernandes Roldão e a dita Isabel Dias ofereceu tremoços a todos e estes não quiseram aceitar.(7)

Outra série de denúncias respeitou a esmolas que Bernardo deu a várias pessoas para fazerem jejuns judaicos por alma de seu pai, falecido por 1690. Vejamos, a propósito, a denúncia feita por Belchior Pires:

— Depois da morte do pai de Bernardo Rodrigues, este lhe disse que não rezava o padre-nosso nem ave-maria por alma de seu pai, por não serem orações convenientes para isso, e ainda que lhe tivesse mandado fazer os sufrágios na igreja, foi para que o mundo não tivesse que dizer, mas que se não fiava neles e que mandara fazer muitos jejuns judaicos e dava por cada, um tostão, pão e peixe às pessoas que os faziam, e rezava muitas orações judaicas.

Não vamos analisar o processo. Diremos tão só que, ao fim de ano e meio de prisão, Bernardo entrou numa situação de loucura e desespero, tão horrível que chegava a comer os próprios excrementos, vindo a falecer em 20.3.1695. A doença foi acompanhada pelos médicos da inquisição que na “certidão de óbito” escreveram o seguinte:

— A sua morte fora natural e causada por achaques de melancolia e impaciência de que se

deixou vencer e vieram a parar em um tremor universal, em uma convulsão mortal, do qual achaque faleceu.

Acompanhado pelos médicos na sua loucura e desespero, também o foi por um frade dominicano “que lhe assistiu na morte, que o absolveu sob condição, por não dar lugar concludente e aperto da doença, no decurso da qual mostrou o dito preso que estava teimoso e chegou a fazer extremos porque comia nas esteiras o excremento próprio e disseram os seus companheiros que se quisera enforcar”.

Bernardo morreu mas o processo continuou, julgando-se a sua “memória, fama e fazenda”. Para isso mandaram os inquisidores investigar se Bernardo era falto de juízo ou tinha “juízo e entendimento capaz de pecar”. Dos vários depoimentos, escolhemos o de João Tomé, que disse:

— Que conheceu Bernardo

Rodrigues desde o seu nascimen-

to e que fora sempre de bom entendimento e capaz de pecar; que somente há 12 anos, por espaço de 15 dias, se conheceu que o réu tinha alguma falta de juízo, por andar algumas vezes de noite a cavalo pelas ruas, sem necessidade de o fazer.

Terminou o processo no au-

to-da-fé de 14.6.1699 com a execução da sentença pronunciada 4 meses antes:

— Os inquisidores… mandam que em detestação de tão grave crime, seus ossos sejam desenterrados, feitos pelo fogo

em pó e cinza, por ordem da justiça secular a quem o relaxam e sua estátua e seu nome…

 

NB. – Cumpridos mais de 3 anos de contínua colaboração neste jornal, pensam os autores ser razoável tirar umas férias, suspendendo a sua colaboração por algum tempo. Aos leitores assíduos, pedimos compreensão. Obrigado.

 

 

Notas:

1 - ANTT, inq. Coimbra, pº 6034.

2 - Idem, pº 4830.

3 - Idem, pº 7396, de António Rodrigues; pº 4395, de Atanásio Rodrigues; pº 7094, de Helena Rodrigues.

4 - Idem, pº 7077.

5 - Idem, pº 364, de Francisco Rodrigues, o moço; pº 4840, de Francisco Fernandes Rodão, viúvo de Inês Lopes.

6 - Pº 7077: — Bernardo Rodrigues (…) disse que ele, sua mãe e seus irmãos são obrigados a pagar 86 mil réis a Francisco Dias, curtidor de Argoselo, procedidos de couros e mais bens que arrematou ao fisco e foram de seu irmão Francisco Rodrigues, o moço, os quais bens largou a ele confitente para ganhar sua vida e lhe pagar assim como fosse fazendo o dinheiro, e ao tempo de sua prisão tinha juntos 39 mil réis para lhe entregar, os quais deu à ordem do juiz de fora ao comissário, para seus alimentos. E que ele e seus irmãos estavam de posse de umas casas que foram de João Fernandes, preso e de uma horta defronte das ditas casas, as quais partem com as de Atanásio Rodrigues, irmão dele declarante e um macho e móveis que foram do dito Francisco Fernandes, preso e confiscado, sobre os quais deu ele 50 mil réis que está devendo a Francisco Dias, que lhe emprestou.

7 - Idem.

SEFARAD

De 19 a 22 de Junho decorreu em Bragança o Congresso de Cultura Sefarad, Sefardin ou Sefardita. Participei fugazmente, apresentei os travejamentos de uma comunicação acerca da influência da cozinha judaica na cozinha tradicional portuguesa e zarpei de seguida. Não tive tempo para conviver nem tagarelar um pouco sobre a cidade das minhas paixões assolapadas e sopradas pelos ventos cortantes vindos da Sanábria provocando procura de garimo e fuga das raparigas quando entorpeciam as mãos e os pés.

Apareci no Congresso por obra e graça da Dra. Carla Alexandra, uma das organizadoras do mesmo a qual há um taleigo de anos integrou comigo uma equipa de investigadores de messianismos e visionarismos na Europa e Brasil tendo como figura tutelar Bandarra. O António Carlos Carvalho e o Manuel Gandra faziam parte do núcleo duro, o historiador Josué Pinharanda Gomes ouviu-me pacientemente, o filósofo e cabalista António Telmo além de convidar-me a ir a Vila Viçosa onde reunia com outros cabalistas, teve a generosidade de indicar pontos de referência, recordar bibliografias fora do circuito habitual e receber-me na sua caverna iluminada em Estremoz. Os anos passaram, o Centro de Interpretação da Cultura Judaica em Trancoso ficou aquém das nossas espectativas mormente na programação, cada um continuou a estudar e a Dra. Carla entendeu «obrigar-me» a produzir uma comunicação embrionária de um futuro livro. Só por isso, agradeço-lhe a lembrança prometendo produzir estudo que se possa apresentar sem mácula, logo a preceito e não escorreito. Poderá ser apodado de presunção o desejo ora escrito, sabendo de a presunção e água benta, cada um toma quanta quer, ao modo de um senhor freguês da Sé abusador na ablução ficando com rosto bem molhado.

Os operadores turísticos pronunciam intenções um pouco na esfera da dita presunção quase a enunciarem galinhas repletas de ovos de ouro como se este segmento estivesse confinado a Portugal, à rede de judiarias e os tesouros patrimoniais a coberto e a descoberto existentes no interior dando a impressão de olvidarem tudo o mais que é muito começando nos vários públicos caminhantes procurando o rasto dos antepassados e passos por eles calcorreados durante a fuga aos esbirros da Inquisição acolitados pelos vizinhos videirinhos sugadores do alheio não hesitando em denunciar gente de trato das comunidades sefarditas. Estes públicos não são turistas vulgares, possuem conhecimentos aprofundados da religião professada, não ficaram acorrentados ao «catecismo» da infância imitando a maioria das pessoas católicas só presentes nas cerimónias recheadas de fotografias e farândolas superficiais, antes pelo contrário, cumprem o preceituado sem preguiça ou numa toada «Maria vai com as outras».

Vêm à procura do passado daí a imprescindibilidade de terem boas genealogias à sua espera, sem erros, antes de visitarem as nossas terras estudaram as localidades berço natal dos longínquos avós, as tecnologias de ponta dão-lhe acesso a todo o tempo e hora à documentação existente, por essa razão desculpam melhor o engano dos explicadores locais ao confundirem a festa do Purim com um pudim festivo do que o lapso ou a faltas nas descrições da parentela. Salvo melhor opinião a base do êxito na captação do turistas não acidentais escora-se na qualidade e agilidade mental de quem recebe salientando a argúcia e engenho dos judeus no sacudir do jugo da escravidão mental, moral e física, os horrores sofridos fazem parte da sua herança, daí alegrarem-se ante episódios jocosos e similares tão bem retratados nos romances, poesias e peças de teatro de autores judeus exímios na exploração de um humor ferino, risonho, até burlesco.

Há anos no decurso de um almoço onde pontificava o rabino de Jerusalém dois convivas atentos impediram a colocação de pratos contendo tiras de presunto e rodelas de chouriço, o profissional ficou surpreso e aflito. Trago à colação este episódio a fim de apontar a importância dos detalhes, as leis dietéticas do Talmude impõem cautela e caldos de galinha na celebração das ementas a apresentar. Volto a repetir os turistas de origem judaica se pretendermos a sua volta, obrigam a cuidados especiais, caso assim não aconteça despedem-se até nunca mais! Gostava de ter falado no painel dedicado à indústria cultural, deixo estas breves e simples notas fruto de andanças e

O acontecido no mês de Junho não deve ficar soterrado na pilha de boas intenções, Bragança já é notório e nutrido centro de saber, logo das duas culturas, parafraseando E. Snow, importa cimentá-las recorrendo-se às tecnologias de forma a expandir-se sustentadamente nos quatro cantos do Mundo.

Por experiência própria sei quão exigentes tentam ser na procura das causas das coisas obrigando os «guias» a esforçados conhecimentos do exposto, mostrado e minuciosamente comentado. Não chega citarmos o Abade de Baçal, Mendes dos Remédios, António José Saraiva, Révah, Vicente Risco, referências entre outras, não basta erguermos o estandarte do judaísmo eivado de orgulho localista, refiro-me a Oróbio de Castro, não basta indicar-se historiografia regional, todos os intervenientes no projecto têm de estudar de cabo a rabo os seus trabalhos porque a sorte do mesmo dá um ingente até à colheita dos frutos escondidos no meio de abrolhos, urtigas e cardos.

Ninguém pode reivindicar a exclusividade do património judaico em termos gerais, no referente a Bragança a Autarquia ao acarinhar e investir na defesa e promoção das especificidades locais desse mesmo património obriga-se a tudo fazer no sentido de conduzir, orientar e vigiar a boa execução do mesmo. Ao contrário do pensado por muitos orçamentistas de café investir na cultura gera juros em múltiplos vectores da sociedade rural e urbana. Façam o favor de abrirem os olhos!

 

O meu touro querido

Provocado pelas minhas saídas a Espanha com a escola, memórias dos lameiros da infância mirandesa, que sonho esquisito tive a noite passada! À minha frente estendia-se um circo de pedra em ruinas. Distinguia-se ainda muito vagamente a forma de origem. Ao centro da arena destruída, um animal brutal e cintilante pronto a atacar. Fixava-me com os seus olhos de ouro. Parecia convidar-me para o combate. Não compreendia mesmo nada do que se estava a passar. Sou muitas vezes algo cobarde, oh meus amigos. Quando o ouvi dizer-me, rapando com os seus cascos de areia onde tantos antigos combates tinham sido travados: estás no lugar onde se encontram um dia todos os que não conseguem tomar a decisão certa. Não posso revelar até ao fim do texto como eu pude sair deste sonho, mas vi-me, nesta arena, a partir dos traços ridículos do rapazito franzino, hesitante e introvertido que fui nas terras de Miranda nos anos sessenta e princípios de setenta.

Confesso que me persegue a questão de saber se tenho tido na verdade a coragem ao longo da minha vida de rachar, de abrir caminho, de decidir, para avançar. Este tipo de combate, foi efetivamente conseguido? De que parte ferida da minha infância? Interrogo-me sobre aquilo que a minha mãe e o meu pai puderam transmitir-me da coragem, ou mais dolorosamente, o que eles não puderam fazer, por fraqueza ou compaixão perante a violência da vida, confiar-me um pouco dos seus próprios combates, conseguidos ou abortados. Teriam pensado que eu acabaria por encontrar sozinho alguma chama necessária que desejariam secretamente que eu descobrisse em mim num qualquer seminário? Não sei ainda hoje, sinceramente, se este ardor pode ser transmitido aos nossos filhos. O combate a ser travado contra as nossas próprias derivas.

Gostaria de poder descobrir a fonte da coragem de viver. Aquela que ajuda a atravessar os desafios, as provas permanentes. Face ao touro do meu sonho, dum negro lustroso como certas noites de verão em que temos o sentimento de que tudo pode ser abalado por qualquer acontecimento, sei que se travava no meu interior o drama da minha vida. Aceitar a luta, aceitar receber o desafio ou renunciar. E talvez, viver dignamente, oh meus amigos, não passe deste sim dado ao combate, ao mistério vivo e furioso que se nos apresenta todos os dias e até ao fim. Menos o combate ele-mesmo do que a afronta ; este frente a frente, este cara a cara. Fixar o animal que nos amedronta e descobrir no seu olhar o nosso próprio rosto.

Observo os meus dois filhos crescer demasiado, penetrar também no labirinto da existência contemporânea. O que levam eles do poder necessário para avançar e que eu lhes tenha dado e confiado, eu que tantas vezes preferi recuar, adiar? Como encontrar esta força que salva, a opinião certa, a decisão conforme ao Bem, sobre aquilo que é necessário apreender ou o que não temer, aquilo que se chama coragem? A força a encontrar nas adversidades e nas dores, nas alegrias, e nos medos. Creio que podemos, que temos o dever mesmo, de tentar transmitir tudo isso aos nossos filhos, mas essa transmissão é também um combate a travar contra as nossas próprias errâncias. Os nossos medos gelados ou febris. 

   Creio também que esta coragem de viver, cada um é convidado a encontrá-la sozinho, criança, contra a vontade dos pais ou mestres, em tudo o que desmantelamos, na reserva dos nossos medos e das nossas resignações. A decisão de viver, de enfrentar a vida viva, é um tesouro escondido na descarga da História como na dos nossos pequenos lares que nós gostaríamos, ingenuamente, que estivessem protegidos por muralhas insuperáveis.

Para que a transmissão da vida viva se produza realmente, é preciso deixar vir o touro à arena, essa força bruta que nos mete medo e aceitar manter-se à sua frente – o desejo de viver – como à beira do furacão. Nesse frente a frente, podemos lembrar-nos dos nossos pais, de todos aqueles que nos terão guiado no caminho da existência, contudo sabemos bem que para continuar estaremos sozinhos frente à coragem de viver, de decidir viver. No meu sonho portanto, no momento de ver o touro a atacar-me, acordei bruscamente. 

Esta arena meio destruída e invadida pelas ervas loucas do tempo, era a minha vida. Tinha em sonho enfrentado o meu próprio medo de viver. E este touro brilhante de suor, era o meu coração que me desafiava. Que me pedia para escorraçar todos os medos gelados e suados, os pensamentos perigosos, as sombras que eu não quisera enfrentar e que já não podia evitar. Investindo sobre mim, o meu touro querido juntou-se a mim para nos reconciliarmos, eu o menino que ainda sou. Agora sei que todos os meus medos não precisam de ser vencidos, mas sim combatidos, devo lembra-me disso para sempre. Tenho de o dizer a todos os que amo. As noites todas que temos de atravessar não reclamam forçosamente a luz, todos os monstros que nos assustam e que vêm desafiar-nos não atacam para nos destruir, mas unicamente para nos reconciliarmos connosco mesmos, com o nosso pobre coração tantas vezes despedaçado.

João Eusébio assume cargo de Team Manager do Bragança e José Teixeira de coordenador do departamento de formação

Dom, 30/06/2019 - 18:43


João Eusébio vai ter a ser cargo o departamento de “potencialização e desenvolvimento de atletas”, como se pode ler na publicação do GDB na sua página no facebook.

O treinador já orientou o Esposende, Rio Ave, Gil Vicente, Sp. Covilhã, Chaves, Trofense, Freamunde e Varzim.