Boleros e tangos

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Ter, 21/06/2005 - 16:23


Uma das minhas notórias insuficiências é, não dançar bem. Salvo-me da mofa dos rifoneiros porque meço um metro e setenta e cinco.

Na adolescência uma fraqueza de tal envergadura atormentava as minhas reflexões solitárias. E, não era por falta de vontade, simplesmente porque não acertava o passo. Pecha minha prolongada pela vida fora, não acerto o passo ante as vanidades e farândolas de cada época. Bem sei, a iniciação na arte de bailar começou na formosa aldeia, tendo-se pautado por um soluçado e sincopado bater de tacões ao som de músicas gemidas por músicos de ocasião ou ainda pela rabeca do “Izé” e, raramente pela concertina do meu avô paterno. No inverno os bailes faziam-se em palheiras mal iluminadas, ainda bem, no verão no terreiro e na faceira. Convenhamos, dançava-se mal, sendo as raparigas obrigadas a um contínuo e ingente esforço de modo a salvarem-se das patadas, dos amplexos de braços de sangue vermelho e das conversas de pecado envoltas em promessas de coisas sérias dos rapazes mais experimentados. Em Bragança, outros eram os caminhos da dança. Os pares não balouçavam como um ramo de macieira num dia ventoso, não estendiam os braços, a: dar-a-dar, enquanto os corpos se colavam num porte elegantemente autoritário. Nem de todos é verdade. Mas todos aqueles que eu queria ver, mesmo a certa distância no Clube de Bragança, mais perto nos rebuscados bailes da Associação. A conveniente resposta dos dançarinos aos gritos ritmados dos cantores, fazia-me perguntar qual seria a qualidade necessária para eu dançar primorosamente em vez de rolar aos ziguezagues pelas salas e salões. Um pequenino possuidor das duas qualidades intrínsecas à sua condição – velhaco e bailarino -; aconselhou-me: “ começa pelos bailes das costureiras”. Segui o conselho à risca, as moças tiveram paciência ante o material disponível, não caíram no alçapão do desespero e, terminada a aprendizagem ousei apresentar-me a luzente escrínio no Clube de Bragança. Vestido a preceito segundo o cânone da época: fatinho de ir ver a Deus, camisa branca, flamante gravata e luzidios sapatos, senti-me inspirado a atacar valsas, rumbas, boleros e tangos. Especialmente boleros e tangos. Porquê? Os boleros soavam-me bem, as palavras apaixonadas sustentadas num imaginário de amor para sempre mesmo quando os boleros falavam em perdidas, traições, ciúmes, perfídias e morte. O tango entusiasmava devido a os filmes a preto e branco nos mostrarem carnes opulentas e níveas e, apesar da censura ocular das mães, os mais versados ensaiarem passos dolentes enquanto faziam sentir no pescoço das meninas o bafo quente do desejo recalcado. Nos intervalos um ou outro desfiava vaidades soletrando o nome de Carlos Gardel. Muitos anos depois vim a saber mais do autor de “Mi Buenos Aires, querida”, do “porteño” e, das pampas. Realmente Buenos Aires é uma cidade fabulosa, enquanto Montevideu tem um casino famoso. Os boleros e os tangos logravam grande acolhimento nos bailes do Clube, mas verdade seja dita: os boleros desatavam-me as pernas e a língua, enquanto os tangos serviam à perfeição para os meus receios terem razão de ser dada a exigência no passe e passo certos. Nesses bailes não existia o chamado horário-nobre, todos os minutos valiam a dobrar de maneira os lampeirinhos não ficarem donos das mãos femininas mais requestadas. Os boleros tapavam e destapavam, os tangos desafiavam-nos a ensarilharmos requebros e desenvolturas capazes de entusiasmarem a assistência. Podem acreditar: já assisti a campeonatos e provas de tango em muito lado, no entanto, continuo a dar a primazia na matéria a uma modista bragançana que por razões de socialite apenas mostrava a sua classe na Mútua e, a um bragançano dotado em muitas matérias, sendo uma delas: o tango. Nos boleros as mãos acariciantes faziam-se notar menos, os lábios entonavam a canção, as pernas faziam e desfaziam as notas musicais. Nos tangos a concupiscência do olhar traçava o limite das possibilidades. Nesse baile onde debutei, consegui um feito notável, o virtuosismo foi de tal quilate, que as calças e o casaco limparam alguns metros do soalho devido a um fabuloso escorreganço. Nada de importante para os demais, desagradável na minha óptica por ter ultrapassado os limites da incompetência na matéria. Imperdoável, continuo a afirmá-lo. À guisa de consolo, vou ouvir o bolero: “Besame Mucho” na voz da Consuelo Velásquez, e o tango “Silencio en la noche” do imortal Gardel.
Armando Fernandes
PS. Por razões que entendo por pertinentes não refiro nomes e nomes salientes no desempenho de boleros e tangos. As pessoas são muito susceptíveis.