Chega a ser preocupante

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Sei que não é curial extrair conclusões, tirar ensinamentos de qualquer evento catastrófico quando ele ainda se encontra em desenvolvimento. Eu sei que é imprudente pois em qualquer altura se pode dar um “volte face” e o que hoje parecia certo pode amanhã estar perfeitamente errado. Estou a referir-me, como é óbvio, à pandemia do Covid-19 cujo desfecho não se adivinha para breve. No entanto, do rasto de destruição que ele provocou no nosso País e noutros da Europa podemos exibir alguns dados estatísticos bastante relevantes. Relembremos que no início de 2021 a Europa foi assolada por uma nova vaga. Portugal foi particularmente fustigado a ponto de termos tido mais de 16 mil casos num só dia, numa semana em que a média diária foi de 12.891. Foi um período particularmente mau e se estes números absolutos, ditos assim à bruta, não dão a noção exata da realidade, já comparados com os de outros países permitem-nos fazer uma ideia de quão grave foi a circunstância. Assim, analisando a pior semana de alguns países europeus e fazendo a relação de novos infetados por milhão de habitantes, vemos que a Alemanha na sua pior semana, teve uma média diária de 312 novos infetados por milhão de habitantes; a Itália 583; os Países Baixos 683; a Espanha 818; a Áustria 853; a França 907; a Suíça 964; o Reino Unido 989; Portugal 1.289; a Bélgica 1.478. Só, de facto, a Bélgica é que foi mais massacrada que nós. Já no que diz respeito ao número de mortes por Covid-19, verificadas até então e relacionadas a 1000 habitantes vemos que os Países Baixos verificaram até agora 1,1 mortos por 1000 habitantes; a Alemanha 1,275; a Suíça 1,29; a Áustria 1.4; Portugal 1,8; a Espanha 2; a França 2; a Itália 2,23;a Bélgica 2,3 e por último o Reino Unido registou 2,4 mortos por mil habitantes. Verificamos aqui que os países com menos taxa de mortalidade foram aqueles que menos pressão sofreram dos novos infetados. Excepção feita à Suíça que sendo das mais fustigadas pelo aparecimento de novos casos (964) apresenta uma taxa de mortalidade bastante baixa (1,29). Portugal, que sofreu uma pressão tremenda de novos infetados (só ultrapassado pela Bélgica) teve, no entanto, uma taxa de mortalidade (1,8/1000) que apenas é melhorada pelos campeões do Norte (Países Baixos, Alemanha, Suíça e Áustria). Se por outro lado fizermos o rácio das mortes por número de infetados temos que os Países Baixos registaram 7.3 mortos por 1000 infetados, a Áustria 10.6, a Suíça 10.7, o Reino Unido 14.5, Portugal 15.5, a França 15.6, a Bélgica 15.8, a Alemanha 17, a Espanha 17.6 e a Itália 26.8. Face à pressão dos novos casos, todos os países tiveram dificuldades em tratar os seus pacientes. As imagens da televisão eram aterradoras com doentes em macas porque já não havia camas, doentes que não eram socorridos por não haver ambulâncias. Faltava tudo, médicos, enfermeiros, ventiladores, bombeiros, macas, foi de facto um pandemónio. Mas quem estava preparado para uma pandemia?! Ninguém! e ainda hoje não está. E neste estado caótico houve países que se declararam impotentes e “exportaram” os seus doentes para outros países. Passo a transcrever subtítulos do título maior - “solidariedade Europeia no tratamento de doentes”:

• “7 doentes Franceses de Mulhouse, França, foram transportados por via aérea em 25 de março e estão a ser tratados no Luxemburgo”;

• “11 doentes provenientes de Itália e 3 Franceses foram tratados na Áustria”;

• “46 pacientes dos Países Baixos foram transferidos para a Alemanha”;

• “para a Itália 85 leitos de terapia intensiva foram reservados em 10 Estados Federais Alemães”;

• “130 doentes Franceses foram transferidos para a Alemanha”;

• “para a França 98 leitos de terapia intensiva foram reservados em 10 Estados Federais”;

• “23 pacientes da província de Liege, Bélgica, foram transferidos para a Alemanha”;

• “cidades e estados de toda a Alemanha trataram doentes graves de Itália, França, Países Baixos, Bélgica e República Checa”;

• “Luxembourg Air Rescue repatriou mais 6 doentes provenientes do Grand-Est, França, e que foram tratados no Grão-Ducado”.

Estas manchetes revelam bem as dificuldades que alguns Países experimentaram na prestação de cuidados de saúde aos seus pacientes. Pois bem, depois de toda esta exposição fica uma pergunta: como é que Portugal, país periférico, com fracos recursos e depois de tão fustigado pela pandemia, com dificuldades de vária ordem, com constrangimentos diversos, com situações mais que aflitivas, mas mesmo assim conseguiu tratar todos os seus pacientes em território nacional e com taxas de sucesso que deixa para trás muitos países que são autênticos faróis civilizacionais? Acho que a resposta está nos grupos de profissionais de saúde, abnegados, com espírito de sacrifício, com sentido de serviço público, coordenados e orientados por chefias profissionais mais a logística possível. Isto é o nosso Serviço Nacional de Saúde que, com todas as suas falhas e limitações, não nos deixou envergonhados nesta prestação de cotejo mundial. Nesta guerra contra a pandemia, que nos convoca a todos a envidar esforços contra o inimigo comum, há quem não se sinta bem deste lado da barricada. Vou citar três personalidades: um médico que é deputado, o Bastonário da Ordem dos Médicos e a Bastonária da Ordem dos Enfermeiros. O primeiro quando chamado a pronunciar-se como médico respondia sempre como deputado. Uma vez até inventou um hospital repleto de mortos. Entende-se, mas fica-lhe mal. Quanto aos dois Bastonários sempre que se pronunciaram sobre medidas tomadas pelo Governo, pela Ministra ou pela Direção Geral de Saúde disseram sempre, mas sempre, mal de todas elas. Fossem essas medidas sugestões do Infarmed, fossem recomendações da Organização Mundial de Saúde, fossem medidas já em vigor num conjunto grande de Países, fossem orientações da Agência Europeia do Medicamento, estava sempre tudo mal e dito de forma desdenhosa, escarninha, com uma vontade indisfarçada de que tudo corresse mal. Nunca se ouviu uma palavra de ânimo aos seus profissionais, de conforto aos pacientes ou de serenidade aos ansiosos. Mesmo agora em relação à vacinação dos menores de 11 anos o Bastonário da Ordem dos Médicos disse ter muitas reservas. A Sr.ª Enfermeira, do alto da sua cátedra de Pediatria, de Imunologia, de Virologia, de Infecciologia e possivelmente outras, disse “não concordo”. Ninguém esperava outra coisa. Outra situação que me causa perplexidade é esta súbita debandada das chefias clínicas alegando falta de condições de trabalho, rejeição às horas extraordinárias e falta de pessoal médico. É verdade que o facto de mais de um milhão de Portugueses não terem médico de família aliado ao facto de sucessivos concursos públicos ficarem desertos, sobretudo quando é para colocação de médicos no interior, dão-nos a ideia de carência de médicos. Mas o Sr. Bastonário diz que não. E secundado por todos os Diretores das Faculdades de Medicina que abdicaram das 100 vagas a mais que o Ministro Heitor lhes oferecia. Foi um “tiro no pé” pois o Ministro Heitor deu-as à Universidade Católica para abrir a sua Faculdade de Medicina. Mas dando de barato que as reivindicações das chefias clínicas são justas, não deixa de ser paradoxal que, agora que a pandemia atravessa uma fase de remanso, se reivindiquem condições de trabalho quando ainda há poucos meses elas eram perfeitamente caóticas. Todos queremos melhores condições de trabalho, mas, numa fase em que tudo ficou virado do avesso e em plena pandemia, será que é a altura boa de se fazer uma restruturação serena? Ou será que a ameaça de uma nova vaga pandémica, que torna todos ansiosos e dependentes dos médicos, aliada à proximidade eleitoral, em que o Governo quer tudo menos uma guerra com os médicos, fazem um caldo de cultura óptimo para qualquer reivindicação? Sob o ponto de vista sindical a postura da Ordem é irrepreensível, já sob o ponto de vista da ética e da deontologia tenho todas as reservas. Além de ser preocupante.

Manuel Vaz Pires