Bom dia a todos! Que estas palavras vos vejam com bons olhos e que os ares da Primavera vos tragam mais alegrias do que alergias. Hoje venho contar-vos uma história que tinha aqui prometida a um estimado amigo que partilha comigo semelhante trasmontanidade. Não a que advém do local de onde se nasce, mas a que é transmitida por precedentes gerações. No meu caso pelos pais, no caso do meu caro amigo Mikey, pelos avós. Convenhamos que de Bragança a Lisboa não são as mesmas horas de distância do que de Bragança às cercanias de Boston, por isso é mais surpreendente ver como um jovem do outro lado do Atlântico mantém as suas identitárias raízes bem arreigadas. Cruzámo-nos pela primeira vez num local propício a fundar amizades, um campo de futebol daqueles em que uns quantos convivas matraquilham uma bola um par de vezes por semana, embora num país um pouco improvável para um norte-americano e um português descobrirem transmontanas afinidades, em Zhuhai, Sul da China. O Mikey estava a fazer uma formação de futebol, ele que é um jovem treinador de jovens na academia do Chicago Fire, um clube com estatuto na liga norte-americana de futebol ou soccer, como é denominado por lá. O Mikey esteve em Portugal apenas uma vez em modo turista, e acho que nem saiu de Lisboa, durante os poucos dias que por aí passou. Ele é neto do senhor António Gonçalves Carvalho Júnior, nascido em Boticas no ano de 1937. Este senhor geria uma pensão ou residencial em Boticas até decidir emigrar para a Costa Oeste dos Estados Unidos na alvorada dos anos 60, pelo que os seus filhos já nasceram por lá, nomeadamente a mãe do Mikey. Esta descrição está-me a soar àquelas peças introdutórias antes das conversas dos programas da manhã ou da tarde, “Temos hoje connosco a Dona Suzete que não esquece a data de 23 de Março de 2017, dia em que perdeu uma perna derivado da diabetes” ou “deem as boas- -vindas ao Ernesto que um dia ganhou o primeiro prémio da lotaria e hoje vive da caridade de amigos e vizinhos”. Passámos o Natal uma vez juntos em grande confraternização e é no Natal que impreterivelmente trocamos mensagens. Ele envia-me sempre fotografias da mesa natalícia onde não falta o mais característico do Natal trasmontano, misturado com o que é iconicamente português ao longo de todo o ano. O polvo cozido e o chouriço assado no porquinho de barro, o bacalhau com couves e os rissóis de camarão, o arroz- -doce e o pudim de ovos. Não se pode dizer que o Mikey fala português porque não fala, no entanto sabe manear um kit linguístico muito interessante, cheio de utilidade e constituído na sua maioria por iguarias como as anteriormente descritas. Por exemplo, o Mikey sabe dizer “aletria”, só para verem o elevado grau de trasmontanidade. Estamos a falar de uma magnífica sobremesa no seio da nossa doçaria (que eu adoro), mas votada à ostracização no meio de tanta adocicada oferta e modernice. Com muita pena, esta sobremesa rareia cada vez mais nas nossas festivas mesas. A aletria está para as sobremesas como o envio de um postal por correio está para os votos de boas festas. Em desuso, mas a merecer melhor destaque e consideração. O meu amigo não é fluente em português, mas fica absolutamente empolgado ao dizer palavras como “caldo verde”, “chouriço” ou “bolinhos de bacalhau”. E o mais curioso é que conhece perfeitamente o significado destes vocábulos, na teoria e na prática. É realmente incrível como se moldam as identidades de um indivíduo, sendo que não é algo necessariamente ligado - frequentemente não tem absolutamente nada a ver - com o lugar onde arbitrariamente se vem ao mundo. O elo trasmontano na família do Mikey vem do avô, que foi mantendo ativo um modo de fazer as coisas à portuguesa, particularmente à trasmontana. E estas desenvolturas passam para filhos e netos como algo que ajuda a construir quem somos e que nos fazem singulares em relação aos demais, mas também singulares no seio de nós mesmos, da nossa própria individualidade, do nosso sentir, do nosso olhar para o mundo a partir de nós mesmos. Outra coisa muito portuguesa e de refinado bom gosto que o senhor António Carvalho levou de Boticas para aquela zona por onde mais emigrantes europeus entraram na América nos últimos séculos, foi o seu sportinguismo, paixão cujos netos também assumiram como sua. O senhor António Gonçalves, de Boticas, deixou este mundo há poucos meses no lugar de Ludlow, Massachussets, aos 87 anos. A última foto que tirou com os netos, dois dias antes de se aventurar para essa perene viagem, foi tirada em família enquanto assistia a um jogo de futebol do Sporting. Uma partida que daria ao clube verde e branco o seu mais recente troféu, no caso, a Taça da Liga. O avô do Mikey passou-lhe o Sporting, levou-lhe Trás-os-Montes, deu-lhe Portugal. De Boticas a Massachussets, este homem fez obra e passou-a em testemunho vivo e vincado. Por isso, a última foto, como numa última ceia, não poderia ser se não a de um homem feliz, para que o seus netos possam sempre recordar uma missão mais do que cumprida. Neste cenário até o Sporting contribuiu para finalizar em bem este quadro de família. A alma do avô do Mikey não poderia estar mais em paz. Uma bonita história aqui fechada com um forte abraço!