Um dia inesquecível

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21 de Agosto de 2019. É a noite do arraial. Mas na Praça da Sé, o coração de Bragança, não há luzes coloridas, não há música, não há balões, não há pipocas e não há ”vinho, riso, poesia e uma mão ladina em cima de carne morna” porque … porque não há gente. Não se vê vivalma. Exceptuando o bar “Praça” tudo está fechado. As pessoas ou foram ao concerto ou ficaram em casa. E sentado na praça deserta ouvindo ao longe o rumor da agitação do concerto, dei por mim a pensar que essas imagens não me eram de todo inéditas. E de repente, “touché”! Vejo correr na memória um filme que vi há mais de 40 anos na “Torralta”. Chama-se “una giornata particolare”, em português “um dia inesquecível”, filme do cineasta italiano Etore Scola. Scola mais conhecido pelas suas comédias de costumes, todos temos na memória os “Feios, Porcos e Maus”, desta vez largou a brejeirice, vestiu smoking e, socorrendo-se de dois “monstros” do cinema Italiano, Marcello Mastroianni e Sophia Loren, fez um filme sobre …intimidades. A história de suporte do filme, o guião, conta-se breve. É assim: a 6 de Maio de 1938, Hitler e o seu estado maior, Ribentrop, Hess, Himmler, Goebels, Goring e outros visitam Roma para assinar acordos militares que iriam estar na génese da união bélica que ficou conhecida como as “Potências do Eixo”. Mussolini quis homenagear os visitantes fazendo uma festa nacional e para isso convidou (convocou) todos os Romanos a participarem na festa e, claro, tudo, tudo foi para a festa. E no Palácio Federici, bloco de habitação social com 650 apartamentos, só ficam 3 pessoas: (metáfora subtil sobre os rejeitados pela sociedade) a porteira que não pode abandonar o seu posto mas que acompanha a festa pelo altifalante que colocaram à entrada do prédio; uma dona de casa que seguindo as regras fascistas e machistas da época fica em casa pois tem de preparar o dia seguinte. É mãe de 6 filhos e o marido já lhe prometeu o sétimo só para lhe por o nome Adolfo; (curiosamente Alessandra Mussolini, neta do “Duce” faz parte do elenco deste filme): e um homem da rádio recentemente demitido por homossexualidade e que prepara o suicídio tentando antecipar-se à polícia que a todo o momento o virá buscar para o enviar para o degredo na Sardenha. Então, a propósito da fuga de um pássaro da gaiola, a dona de casa conhece o homem da rádio. Ela oferece-lhe um café para agradecer a captura. E então, como se de repente tivessem sacudido a pressão que todos os dias os esmaga, ouvindo ao longe o ruído da festa para que não foram convidados, começam a falar deles próprios. Dos seus anseios, das suas angústias, dos seus temores, das perspectivas que tinham, das esperanças que ainda têm. Bom, coisas que nunca tinham falado a ninguém e que não são boas de contar.

Isto é ficção mas a realidade…bom, na realidade tenho esperança que, na noite do arraial, a Praça da Sé não seja mais a réplica do velho Palácio Federici daquela noite inesquecível onde dois ostracizados lambiam as suas feridas.

 

Manuel Vaz Pires