João Cabrita

PUB.

Falando de …Natália Correia

A sua voz tonitroante deixava marcas por onde passava. Era inconfundível. Lembro-me de a ter ouvido em alta discussão com Dórdio Guimarães, em restaurante, por onde acidentalmente passei.

Marcou uma época. Partiu com um manto de adjectivos. Nem sempre unânime na apreciação dos seus críticos, foi controversa a vida desta mulher que nos deixou há vinte e cinco anos. Votada a algum esquecimento, como é timbre daqueles que em vida foram grandes, importa que lembremos a sua existência.

De seu nome completo, Natália de Oliveira Correia, açoriano, da Ilha de São Miguel, freguesia da Fajã de Baixo. Nasceu a 13 de Setembro de 1923. Figura eclética da intelectualidade dos seus tempos, não deixou indiferente quem com ela lidou, ou que dela ouviu falar. Nascida para o conhecimento, conjugou saberes que vão da poesia, ficção, conto, teatro, ensaio, jornalismo à edição.

Profundamente preocupada com tudo o que a cerca, mantém relações muito próximas com António Sérgio, onde se desdobra na área do cooperativismo. Amiga de Sá Carneiro e de Ramalho Eanes, foi deputada independente à Assembleia da República pelo PSD e depois, também, como independente, pelo PRD. Deputada à Assembleia, convidada para introduzir o discurso cultural, ficou famosa a sua intervenção, quando em 1982, discutindo-se a lei do aborto, em forma de poesia responde ao deputado do CDS, João Morgado que afirmava que o acto sexual era para fazer filhos:

“O acto sexual é para fazer filhos”-disse ele/Já que o coito-diz Morgado-/Tem como fim cristalino,/preciso e imaculado/fazer menino ou menina;/e cada vez que o varão/sexual petisco manduca,/temos na procriação/prova de que houve truca-truca/Sendo pai só de um rebento,/lógica é a conclusão/de que o viril instrumento/só usou-parca ração!-/uma vez. E se a função/faz o órgão-diz o ditado-/consumada essa excepção/ficou capado o Morgado.

               Segundo afirmava, casada as vezes que lhe apeteceu, teve ao longo da sua existência quatro maridos, sendo o grande amor da sua vida, Alfredo Lage Machado com quem casou em 1950. O Senhor Machado, como lhe chamavam, cavalheiro distinto, será o marido companheiro – pai-irmão de Natália. Viverão juntos a partir de 1953, no quinto andar do número cinquenta e dois da Rua Rodrigues Sampaio, por cima da Pastelaria Smarta, que ainda hoje existe. O casamento será interrompido com a morte do marido em 29 de Janeiro de 1989. Em 1990, casa com Dórdio Guimarães, escritor e cineasta, seu “esposo-irmão”, confessando ser um amor casto. A propósito da sua relação com Natália, dirá Dórdio Guimarães que aos catorze anos sendo, portanto, um adolescente, a viu pela primeira vez, tendo ficado terrivelmente impressionado. Será Maria Teresa Horta quem apresentará, mais tarde, Dórdio a Natália Correia.

Apesar dos vários casamentos, nunca lhe apeteceu ter filhos, porque foi muito cedo prevenida pela mãe, que era malthusiana, sobre os efeitos nefastos do momento populacional que são hoje um pesadelo para a sociedade. Nesta linha, demonstrativa de alguma intolerância para o infantilismo existente em grande parte dos adultos, condescendentes em certos comportamentos, publica em 1974 um dos seus livros mais polémicos, intitulado Uma Estátua para Herodes.

Na sua casa, na Rua Rodrigues Sampaio, em pleno salazarismo, enfrentando o regime de ditadura em Portugal, muitas foram as individualidades que por lá passaram. Mário Soares e a mulher, Maria Barroso, Urbano Tavares Rodrigues, David Mourão-Ferreira, foram alguns de uma plêiade de intelectuais que estabeleceram laços de amizade e culturais com Natália Por lá também passaram vultos de renome internacional, como Henry Miller, Ionesco, Claude Roi e Henri Michaux. Avessa a regimes ditatoriais, pugnando pela liberdade, lutando contra a censura vê textos seus publicados em jornais e em livros serem proibidos. O seu percurso político e de defesa da liberdade inicia-se muito cedo, participando no MUD – Movimento de Unidade Democrática. Participará activamente, ao lado de Mário Soares, José Augusto França e outros na campanha eleitoral de Norton de Matos e de Humberto Delgado.

Com um primeiro livro publicado em 1945, Grandes Aventuras de um Pequeno Herói, depois de uma vasta produção literária, onde não falta a participação em tertúlias de poesia, onde declama primorosamente, Natália é julgada em tribunal devido à publicação de Antologia da Poesia Erótica e Satírica, sendo condenada em 1970 a três anos de pena suspensa.

Em luta constante contra a censura, a peça de teatro de Sartre, publicada em 1944, Huis Clos, proibida em Portugal, será representada em casa de Natália Correia que fizera a tradução, a montagem, interpretando um dos papéis. Carlos Wallenstein encarregar-se-á da encenação. Várias foram as individualidades que assistiram à representação, como Almada Negreiros, Urbano Tavares Rodrigues, Sophia de Mello Breyner, Francisco Sousa Tavares, Augusto de Figueiredo, Isabel Meirelles, Isabel da Nóbrega, João Gaspar Simões, Mariana Tânger e Martins Correia.

Em 1967, Lisboa recebe no Teatro Capitólio, no Parque Mayer, o poeta russo Ievetuchenko, trazido pela Dom Quixote, dirigida por Snu Abecassis, amiga de Natália, que mais tarde se enamorará de Francisco Sá Carneiro, tendo Natália oferecido uma recepção ao poeta, na sua residência, que no recital de poesia a interpretará em russo, única ocasião para ouvirem a língua do poeta. Natália exultará pelo momento.

A casa da Rua Rodrigues Sampaio é o salão literário e de convívio da época. O fim do ano será sempre motivo para grande festa com as salas cheias. Alfredo Machado, responsável pelo Hotel Império, é um óptimo organizador destes acontecimentos. Com uma actividade social intensa, não descura a componente intelectual, publicando entre outros, em 1968, o livro de poesia Mátria, tendo David Mourão-Ferreira considerado Natália Correia, um dos casos mais sérios da poesia portuguesa de todos os tempos. Com uma vida plena de actividade, ainda tem tempo para abrir com o marido, Alfredo Machado, e a sua amiga açoriana Maria Mendonça, uma loja na Rua do Salitre, que se dedica à venda de móveis e antiguidades, a que deram o nome de Rodapé.

Algures lemos que a vida veio ter com Natália. Nascida no oceano profundo, vem Natália para Lisboa conduzida pela mãe, Maria José Oliveira, mulher superior, professora de instrução primária, aos livros dada. Do pai vê-lo-á partir para o Brasil, onde tentou angariar contributos que a ilha açoriana não lhe proporcionava. Avessa ao rigor, obstinada, recusando escrever no caderno diário, será expulsa do Liceu Filipa para voltar, depois, à Escola Machado de Castro. Precisava de mundo. De conhecer pessoas, conviver, ler. Ser feliz. Talvez o Colégio Lusitânia, aberto pela mãe, na Rua Morais Soares lhe tenha proporcionado o que desejava: a faculdade de dizer não e de traçar o seu próprio caminho.

Muito jovem desperta para a política. Conhece gente que a faz crescer: Martins Correia, Tomaz Ribeiro e Mário Soares. Casa muito jovem, sendo jornalista do Rádio Clube Português em 1944, ao mesmo tempo que publica poesia no jornal em que colabora. Livros seus sucedem-se: Aconteceu no Bairro e Rio de Nuvens. Colabora no jornal O Sol até ao seu encerramento pela censura em 1949. Uma viagem em 1950 aos Estados Unidos da América suscitará a escrita de um livro de viagens que intitulará Descobri que Era Europeia, a que acrescentará impressões de mais duas viagens ao mesmo país em 1978 e 1983, o que reflectirá algum descontentamento e decepção pelo visto e vivido.

Mulher de vida plena, rodeado de gente que a admira, de amigos mais de quantos e de detractores que não lhe escasseiam. Original, de invulgar desassombro, de grande lucidez e abertura de espírito, provocadora, por vezes, ela era o centro da atenção, independentemente do lugar que ocupasse. A alegria de viver distinguia-a de outros elementos femininos. A boquilha que utilizou ao longo da sua vida, possuindo várias de diferentes formatos e feitios, era um acessório de que não prescindia, permitindo-lhe confirmar gestos e poses que as suas mãos tão bem sabiam representar. As écharpes, a par das boquilhas, transmitiam-lhe um ar imperial que a sua voz declamatória confirmava. Se durante muito tempo foi considerada uma das mulheres mais belas de Lisboa, das mais atraentes e das mais disputadas pelos olhares masculinos, confessava quase nunca ter líbido, mesmo em nova, o sexo nunca representou grande coisa para si, tendo gostado sempre de homens mais velhos. Era muito pudica no que dizia respeito à sua intimidade, não se despindo ante os médicos que consultava e não vestia fato de banho quando na juventude ia à praia. “A massificação do espectáculo praiante enoja-a”.

A beleza e a elegância perdidas não pareciam incomodá-la. Uma vez por semana a cabeleireira ia arranjá-la a casa. Não comprava roupas e os vestidos eram feitos pela porteira.

Com um mundo que a cerca cada vez mais a agigantar-se, em Dezembro de 1971, abre-se uma nova etapa na vida da poeta. Não gostava que lhe chamassem poetisa. Isabel Meirelles e Natália Correia constituem a sociedade Correia e Meirelles Lda que sob a gerência de Alfredo Machado darão origem ao Botequim, no Largo da Graça, edificado a partir de uma antiga carvoaria com tulhas de petróleo e de carvão. Acerca do Botequim, Fernando Dacosta, íntimo de Natália Correia, escreverá em  O Botequim da Liberdade, publicado pela Casa das Letras em 2013, abundante informação sobre aquele espaço que dominou a noite lisboeta durante vinte anos.

O bar ocupou uma posição estratégica na sociedade lisboeta. É cada vez maior o número de frequentadores em busca de um convívio que não encontravam noutro lado. Políticos, intelectuais, militares e, naturalmente, Natália, discutiam, polemizava, concordavam e discordavam. Pretexto para celebrações que passavam por lançamento de livros, saraus de poesia, acontecimentos científicos e humanísticos  merecem o aplauso , o convite e o apoio daqueles que tornavam o Botequim um lugar de magia, aprazível e feérico. Uma festa onde se construíam e desfaziam utopias, de convívios que perduravam, de amizades, de estratégias, de segredos, de governos, de conjuras e de promessas que se procuravam construir. Natália na sua plenitude, irreverente, afectiva e independente, improvisando, discursando, declamando e cantando chamava a si as honras da casa. Com o 25 de Abril, o Botequim tornou-se uma referência e um baluarte na luta pela liberdade. São muitos os militares que o frequentam. Natália avessa a totalitarismos enfrenta com determinação os ideais democráticos, opondo-se tenazmente à esquerdização em curso. Num período em que Camões e Pessoa são apodados de imperialistas, em assembleia realizada nas Belas Artes e na Sociedade Portuguesa de Autores, Natália Correia é escarnecida. Ao invés, em 1975, quando se desloca a São Miguel é expulsa de um restaurante, juntamente com uma amiga, por ser comunista.

Natália Correia, um ser visceralmente verbal, não deixa de anotar as suas impressões acerca das sinuosidades que marcam o período da revolução de Abril. Acontecimentos do 25 de Abril de 1974 a 20 de Dezembro de 1975 passam à posteridade através do livro publicado por Natália, a que deu o nome de Não Percas a Rosa, recordando a rosa que uma mulher idosa lhe ofereceu quando descia a escada do convento de Tomar.

A propósito do do acto de escrita em Natália Correia, vale a pena transcrever o que anotou Ana Paula Costa em Fotobiografia, editada pela Dom Quixote em 2005, página 165

Escrevo todos os dias e à mão. Não permito que nada me escape da escrita, porque o corpo e a palavra estão unidos. Tudo começou quando a palavra se fez corpo. Deito-me tarde porque o dia divide e a noite une. O poeta tem que banhar-se na lunaridade da festa nocturna. De contrário é um tecnocrata do verso que só conhece metade da vida.

Com uma actividade cívica invulgar, Natália Correia não descura o seu estro literário. Confidenciou que precisava de uma outra vida mais para escrever o tanto que lhe falta, embora ainda tenha tido tempo para criar o Hino dos Açores. Da muita poesia que escreve, é-lhe atribuído o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores 1990, com a publicação de Sonetos Românticos. Responsável por algumas editoras, como Arcádia e Estúdios Cor, Natália Correia desmultiplica-se. Muitas são as condecorações que lhe são atribuídas, quer de carácter cultural, quer cívico. O reconhecimento para quem não se satisfazia com o espectáculo do mundo, mas nele participando, enriquecendo-o.

E nós que procuramos na palavra a desenvoltura que os nossos maiores nos legaram, vamo-nos lembrando daqueles que tiveram voz alta para se afirmarem num Portugal que não pode abdicar dos seus valores, descobrindo novos horizontes como se o mundo fosse uma porta apta para se abrir aos nossos olhos buscando sempre um tempo novo.

Natália Correia, polémica, sagaz, irreverente, sábia e independente e interventiva deu-nos a mão, mostrando até onde o nosso querer pode chegar.

Partiu há vinte e cinco anos. E muito se passou nas nossas vidas… Hoje recordamo-la. Um dever da escrita.

                                                                                                                           João Cabrita   

                                                                           Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico 

 

 

Falando de... António Dinis da Cruz e Silva em “A Cidade do Homem”, de Amadeu Lopes Sabino

É da cidade do homem, António Dinis da Cruz e Silva. Elvas onde foi juiz auditor na guarnição militar entre 1764 e 1775 que nos fala. Desentendimentos entre o bispo Lourenço Lencastre e o deão José Carlos Lara que o leva a recusar-se a apresentar o hissope ao bispo, o mesmo sucedendo ao deão que lhe sucedeu, seu sobrinho, Inácio Joaquim Alberto de Matos.

Frequentador dos serões familiares em casa de Francisco José da Silveira Falcato, magistrado como ele, ia ouvindo o que da querela se propalava na pacatez da cidade de Elvas e o que o deão narrava das suas desavenças com o bispo, da parcialidade do cabido que o condenara a uma coima.

Sofrendo de problemas oftalmológicos, António Dinis ia memorizando o que ouvia, ele que como poeta estivera na fundação da Arcádia Lusitana em 1756. A Cruz e Silva associaram-se outros, Correia Garção, Reis Quita, Francisco José freire, Manuel de Figueiredo. Outros se juntaram, como José Anastácio da Cunha, Filinto Elísio, Tomás António Gonzaga e Cáudio Manuel da Costa, além de Basílio da Gama, Santa Rita Durão e o satírico Nicolau Tolentino de Almeida.

Todos os aderentes se serviram de um nome arcádico, tendo António Dinis da Cruz e Silva, adoptado o de Elpino Nonacriense.

Utilizando como divisa a expressão latina Inutilia Truncat,não foi muito longa a vida da Academia, não indo além de 1777. Como indicia a expressão, o grande objectivo era banir da poesia o que fosse inútil, como as metáforas exorbitantes, as hipérboles, tentando imitar os clássicos, como Horácio, Píndaro, Teócrito, recusando o estilo gongórico e jesuítico, aproximando-se de Camões. Do talento de António Dinis sairão postumamente em 1801, em edição de Coimbra e em 1820, em Lisboa, as Odes Pindáricas onde elogia Vasco da Gama e Duarte Pacheco Pereira.

Dos serões em casa do magistrado Falcato, uma vez memorizados, versejava, ditando o que a sua verve produzia, limitando-se José Falcato a escrevê-los. Estava em embrião O Hissope, poema herói-cómico constituído por sete Cantos, que terão levado dezassete dias a ser compostos. Cantos de versos desiguais, de rima branca, cujos primeiros versos vale a pena conhecer:

Eu canto o bispo e a espantosa guerra/Que o hissope excitou na Igreja de Elvas.

Deste poema escreveu Gar-

rett em Bosquejo da história da poesia e língua portuguesa “O Hissope é o mais perfeito poema herói-cómico do seu género, que ainda se compôs em língua nenhuma: se no castigado da dicção o excede o Lutrin, no desenho da obra na regularidade do edifício, na imaginação, foi o discípulo de Boileau muito além do seu grande mestre”.

O Hissope foi publicado pela primeira vez em 1802, em Paris, com a designação de Londres, reimpresso em 1817 e em 1821, sempre em Paris, então com a designação verdadeira.

Em Portugal não era permitida a sua impressão porque o poema era proibido, contudo durante a curtíssima estada dos franceses em 1808, foi feita uma edição cujos exemplares foram de imediato recolhidos, assim que os franceses foram expulsos.

A Cidade do Homem, produto de um escritor que em Elvas nasceu em 1943 e é condenado em 1972 por crimes contra a segurança do Estado e despachado para Penamacor, local onde assentavam praça todos aqueles que haviam sido condenados, independentemente da sua habilitação escolar, Amadeu Lopes Sabino incorpora a Companhia Disciplinar como faxina na Secção de Justiça, mas, mas depois de um breve período de “empenho exclusivo na limpeza”, “desmerecedor de tocar em armas, mas merecedor de empunhar vassouras e esfregões” (P.525), quando o sabem licenciado em Direito, encarregam-no de despachar dezenas de processos esquecidos nas gavetas da Secção, muitos deles com prazos excedidos, o que permitiu a libertação de muitos militares.

Aprofundando o conhecimento da vida de Cruz e Silva que em Elvas foi juiz e julgou soldados que dos quartéis da cidade esmolavam e desertavam para as aldeias e para Espanha, por falta de meios do estado para custear as tropas, em 555 páginas é possível ler uma época em que o Marquês de Pombal dita leis em Portugal e a rainha D. Maria I é implacável na revolta em Vila Rica, no estado de Minas Gerais.

Terminada a sua missão em Elvas em 1775, Cruz e Silva é colocado como desembargador na Relação do Rio de Janeiro, onde acrescenta o Canto VIII ao Hissope, por despacho de 1776, voltando à Metrópole em 1789, ano da Revolução Francesa.

Se os ventos da Revolução chegam a toda a Europa, a exploração do ouro no Brasil está na origem de altercações em algumas regiões do Brasil para onde emigram muitos portugueses em busca de riqueza fácil e rápida.

Não era pacífico o clima no Brasil. A campanha do ouro era também uma oportunidade para o Rei aumentar os seus rendimentos. Empossado governador de Minas Gerais, em 1788, o Visconde de Barbacena impôs a entrega da derrama anual fixa de cem arrobas de ouro por habitante da província, castigando de forma severa os incumpridores.

Em 1790, Cruz e Silva é nomeado desembargador da Casa da Suplicação, o mais alto cargo legislativo. Nesse mesmo ano, alguns intelectuais, poetas eminentes, antigos colegas de Cruz e Silva na Universidade de Coimbra, participam na Conjura de Vila Rica, capital de Minas Gerais, visando a sua emancipação da mãe-pátria, influenciados pelos ideais de liberdade provenientes da Europa e que já tinham conduzido à independência os E.U.A. em 1776.

A Rainha D. Maria I convoca para o Rio de Janeiro uma comissão de magistrados, constituída por Sebastião Xavier de Vasconcelos Coutinho, António Gomes Ribeiro e António Dinis da Cruz e Silva.

A revolta, conhecida por Inconfidência Mineira, era liderada pelo alferes Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado de Tiradentes, despeitado, pedreiro-livre de quatro costados que conspirava contra a Coroa, que arrancava dentes, curava os desgraçados, era um homem caridoso. Os desgraçados pagavam bem a caridade. Era cirurgião-dentista, para a época.

Julgado pelo tribunal de que Cruz e Silva fazia parte, o Tiradentes é condenando à morte por enforcamento, sofrendo o corpo, depois de morto, sevícias inimagináveis (p.494). Os outros cúmplices, alguns companheiros de letras de Cruz e Silva, acabaram por morrer no degredo.

António Dinis não assistiu à execução do Tiradentes, invocando doença, nesse dia foi visto de boa saúde no Rio de Janeiro, longe do local do “espectáculo”.

Em 1965, a ditadura militar promoveu o alferes a “Patrono Cívico da Nação Brasileira” e, no ano seguinte, impôs um modelo oficial para a reprodução de efígie do herói nacional: um santo laico, precocemente envelhecido, de cabelos compridos e o rosto talhado, evocação de um Cristo tropical.

Segundo o autor, Cruz e Silva, faleceu no Rio de Janeiro a 5 de Outubro de 1799, ocupando o lugar de chanceler da relação do Rio de Janeiro. Antes, em Janeiro do mesmo ano, acordara paralisado do lado esquerdo. O físico da Relação diagnosticou-lhe um estupor, receitando sangria e banhos de água fria.

Foi sepultado na Igreja dos Capuchinhos, demolida no início do século XX, quando o morro do Castelo foi arrasado, dos ossos não houve qualquer rasto.

Oswald de Andrade, escritor modernista brasileiro atribuiu-lhe uma adjectivação muito negativa. A execução do Tiradentes fez de António Dinis da Cruz e Silva uma figura negativa na História do Brasil, apesar de só lá ter vivido 23 anos.

Não sendo um romance histórico, segundo o autor, e omitindo a documentação e os arquivos consultados, há acontecimentos e datas que são indiscutíveis e que não pertencem ao domínio da ficção. Sabemos que António Dinis da Cruz e Silva existiu. Sabemos que viveu em Elvas, que frequentou a casa do Falcato. Que esteve no Brasil e que foi um dos “executores” do Tiradentes. Teve o talento necessário para reavivar o que efectivamente existiu através de uma linguagem tersa. Em quase seiscentas páginas fez-nos um retrato de um Portugal do século XVIII, que poucos conheciam. Lembrou-nos que o retrato do bispo Lourenço Lencastre se encontra exposto no Museu de Arte Sacra, em Elvas. Viajámos pelo Nada que é tudo, pessoano, de Mário de Sá-Carneiro avivou-nos a memória com um pouco mais de Sol, eu era brasa. Muitos outro autores foram chamados à colação. Silva Gaio, Rui Knopfli e tutti quanti.

Quão belo é espreguiçar-nos em páginas onde a cada momento damos conta de que a Literatura Portuguesa é tão rica! E como é bom ter como cicerone alguém que nos ajuda a conviver com a língua, que nos faz distinguir dos outros: a portuguesa língua, à maneira de António Ferreira.

 

Não foi adoptado

o Acordo Ortográfico em vigor.

Falando de... Lutero

Em tempos de liberdade, com o 25 de Abril a ecoar em muitos dos portugueses, sobretudo naqueles que ainda sofreram a amargura dos grilhões da ditadura salazarista, é possível falar de Lutero sem azedume e lembrá-lo, sem receios, em páginas que, alguns mais dados à leitura, aproveitarão para recordar ou conhecê-lo.

Num mundo em mudança, onde as guerras não dão tréguas, parece existir um apaziguamento em relação a personalidades que foram tratadas com alguma acrimónia. A literatura tem este dom: traz à tona figuras da sociedade que mudaram u rumo da história pelas melhores e piores razões. É o livro a eternizar-se e a reclamar a sua importância. Bendito Gutemberg que mudou a face da terra e permitiu ao curioso penetrar em séculos de vida. E desbravar da existência, é possível chegar a Lutero que em Novembro abriu os olhos, em Eisleben, na Alemanha.

De pai, mineiro, origem humilde, dedicado a Deus e à Igreja Católica, é-lhe ministrada uma educação severa, de acordo com os costumes da época. Feitos os estudos primário e secundário, ingressou em 1501 na Universidade de Erfurt, cuja cidade era governada pelo arcebispo de Mogúncia. Uma vez, bacharel em Artes, segue-se uma experiência no curso de Direito, que abandonará. Dedicado a Deus, ingressa na Ordem dos Agostinhos em Erfurt, a 17 de Julho de 1505, sendo ordenado sacerdote em 1507. Sempre em busca do conhecimento, retoma os estudos, cursando Filosofia e Teologia na Universidade de Erfurt, sendo nomeado leitor universitário na mesma Universidade em 1508.

Depois de uma visita a Roma em 1510, que o terá desgostado, bem como a outras personalidades, não poupa críticas à autoridade da Igreja. Por seu turno, Erasmo, no Elogio da Loucura, não se furta a censuras, excluindo do céu o Papa Júlio II. Savonarola pagará com a vida a sua temeridade, numa época em que a vingança, aliada à crueldade não se afastam dos hábitos eclesiásticos.

Lutero, crítico e avesso aos hábitos da Igreja, instala-se em Wittenberg, apoiado pelo príncipe eleitor Frederico, o Sábio, assumindo a cátedra de Teologia, ao mesmo tempo que estuda com vista ao doutoramento, simultaneamente pregando na igreja de Wittenberg, onde a palavra luterana dardejava a figura do Papa de Roma e os seus sequazes.

Se é verdade que os hábitos praticados pela Igreja suscitavam da parte de Lutero profundas críticas, a pregação das indulgências, convidando à sua aquisição com o objectivo de aliviar o sofrimento no Purgatório dos familiares defuntos, provocou em Lutero uma maior indignação. É certo que se tratava de uma prática popular, cuja receita se destinava à construção da Basílica de São Pedro, em Roma.

O perdão dos pecados nunca poderia ser alcançado por intermédio de alguém, só através de uma vida dedicada à penitência, é possível ganhar o perdão de Deus. A Igreja através do Papa, não possuía o poder nem os meios para perdoar os pecados. A fé verdadeira só era possível pela prática e obediência aos princípios da Sagrada Escritura. A autêntica salvação residia no texto bíblico orientador de toda a prática do cristão. Embora já houvesse reformadores anteriores a Lutero, como John Wycliffe que criticou o fausto do Papa e a acumulação das posses da Igreja, Lutero traduz a Bíblia, instrumento indispensável de orientação para uma vida de penitência, de união e de participação na salvação divina. Deus é o centro de todo o argumento luterano, e é com Deus que todo o crente tem que se harmonizar. Nenhum sacerdote, nenhum sacramento, nenhum santo podem fazer chegar o crente até Deus. Tudo fica a cargo de cada um individualmente.

Segundo Lutero, acreditar nas indulgências dava ao homem um falso sentido de segurança que não podia conciliar-se com a salvação evangélica em Cristo. Por outro lado, a sua indignidade revela-se, face às pessoas ligadas ao processo do comércio das indulgências, como por exemplo, o príncipe e clérigo Alberto, da Casa dos Hohenzollern que apenas com 23 anos, já era senhor de duas dioceses, a de Halberstadt e a de Madeburgo.

Perante esta situação indecorosa que era o comércio das indulgências, Lutero resolveu afixar 95 teses contra, na porta da capela do Castelo de Wittenberg, em 31 de Outubro de 1517, data considerada como a do aniversário da Reforma. Posteriormente, surgiram dúvidas quanto à divulgação das teses, aventando alguns historiadores, que as mesmas terão sido remetidas às autoridades eclesiásticas que promoveram a sua ampla divulgação.

Seria fastidioso enunciar as 95 teses escritas, no original em latim, traduzidas para português por Dinis de Almeida, sendo elas no seu conjunto uma manifestação global, em 95 alíneas de refutação às indulgências mandadas pregar pelo Papa Leão X, em 1514. Achamos, contudo, pertinente a transcrição da n.º 36, elucidativa da posição de Lutero:

“qualquer cristão, verdadeiramente arrependido, tem completa remissão, tanto da pena como da culpa; ela é-lhe devida mesmo sem cartas de indulgências”.

Ou, ainda, a n.º 86 que transcrevemos:

“Porque é que o Papa, possuidor hoje de riquezas mais opulentas que as dos mais opulentos Crassos, não constrói ele com dinheiro do seu bolso a Basílica de São Pedro, em vez de a fazer com o dos pobres fiéis”.

Difundidas as teses pela Alemanha e Suíça. Abriu-se o leque dos descontentes com o comportamento da Igreja de Roma. Para Lutero, era necessário melhorar aquele conjunto de afirmações, vindas a lume em 1518, num conjunto de vinte proposições intitulado Tratado sobre as Indulgências e a Graça.

Através do papa Leão X, Lutero é condenado como herege, sendo queimados os seus livros, considerados heréticos pela Igreja, em autos de fé, nomeadamente o tratado, Sobre a Liberdade Cristã. Não foi pacífica a reacção de Lutero e dos seus apoiantes. Em 10 de Dezembro de 1520, junto da porta de Eister, em Wittenberg, acenderam uma fogueira e lançaram ao fogo a bula papal e os pergaminhos que simbolizavam o poder canónico dos Papas da Renascença. Passou esta data a ser considerada a data fundadora do protestantismo.

Traduzida a Bíblia para alemão, a Reforma toma novo fôlego, unindo pobres e ricos, letrados e iletrados. Os alemães uniram-se em volta da palavra de Deus, criando uma nova unidade. A Bíblia estava mais perto das pessoas. Já não era património exclusivo do clero, trazendo consequências transversais para toda a Alemanha, Suíça, Holanda e países nórdicos. Henrique VIII já podia dissolver o matrimónio e voltar a casar. A Bíblia traduzida por Lutero acabou com o purgatório e com as indulgências, bem como com um conjunto de práticas que dividiram definitivamente os cristãos em católicos e protestantes.

Lutero deixa de pertencer à Igreja Católica e ao Sacro Império de Carlos V. Não está só. É seguido por aqueles que discordam de Roma e que não perderam a fé: clérigos, humanistas, príncipes, gente simples e importante. A Igreja Católica continua a persegui-lo a nível político e religioso. A Universidade Católica de Lovaina e a de Paris escreveram contra ele.

A ruptura com a Igreja Católica, fá-lo adoptar preceitos que não se compaginavam com a rigidez que lhe era timbre. Não atribuindo ao matrimónio estatuto eclesial de sacramento, afirma que o matrimónio existiu desde o princípio do mundo e existe também entre os infiéis, não havendo razão para afirmar que se trata de um sacramento da nova lei ou exclusivo da Igreja.

Em Wittenberg as ideias de Lutero eram cada vez mais presentes. Karlstadt, um dos primeiros discípulos de Lutero, juntamente com Gabriel Zwilling, monge agostinho, exigia uma reforma da Igreja mais drástica, radical e mais rápida. Sugeria a extinção do celibato e das ordens religiosas. Todos os sacerdotes, monges e monjas deveriam casar.

A indisciplina, a desordem e o caos reinavam na Alemanha. Estudantes e operários, em luta contra os monges, provocavam a destruição e a ruína. Foram abolidas as imagens dos santos, criticado o baptismo das crianças, abolidos os jejuns. Alguns mosteiros foram fechados. Os monges casavam-se. Lutero intervém para que os casamentos fossem dignos, incitando-os à fidelidade à palavra de Deus.

Com a sociedade mais serena, a Reforma iniciada por Lutero espalha-se pelo mundo civilizado. Protegido pelo príncipe Frederico regressa a Wittenberg, onde continua a sua vida de professor e de pregador. Na Igreja Católica, morria Leão X, sendo eleito Papa Adriano VI.

Amado e detestado, com quarenta anos, abandona o celibato. Em 1524, decide casar com uma ex-monja, Catarina de Bora, de 20 anos, que pertencia à nobreza alemã e que aos 18 anos decidiu, com outras monjas, abandonar o convento. Da sua relação matrimonial, deu à luz seis filhos. Muito dado à família, assistiu à morte de alguns dos seus filhos, lamentando-a profundamente em cartas a amigos. Não abdicando da oração diária, em companhia da família, leva uma vida de grande disciplina e austeridade, frugal, sujeitando-se a frequentes jejuns, embora os seus opositores católicos o acusassem de comer bem e beber melhor. Bom anfitrião, não deixava de acolher em sua casa hóspedes de todos os géneros, com quem compartilhava a mesa, ao mesmo tempo que na sua porta eram recebidos mendigos. Pouco dado aos assuntos domésticos, delegava na mulher, a quem tratava por Kathe, e a quem escrevia cartas quando se ausentava.

Com a Igreja Católica a tentar resolver a crise que a avassalava, Paulo III convoca um concílio que terá lugar na cidade de Trento. Será o maior concílio da Igreja, iniciado em 1545 e terminado em 1563. A Contra Reforma tentava questionar a crise, imaginando soluções para os seus males. Passado um ano, falecia Lutero. Em 18 de Fevereiro de 1546, onde nascera em Eisleben, findara o homem que estivera na origem da maior dissidência religiosa. De morte natural, apoplexia ou angina pulmonar, é matéria de investigação para os estudiosos. Jaz na Igreja do Castelo de Wittenberg. Terá publicado mais de 400 obras, sob orientação da mulher, que administrava a casa de família.

De entre os livros escritos por Lutero, citamos: Da Liberdade do Cristão, o Catecismo Maior e Menor, do Cativeiro Babilónico da Igreja, Nascido Escravo, Somente a Fé e Magnificat.

Com o ecumenismo que o Papa Francisco e sus antecessores contemporâneos têm trazido até nós, é possível ler hoje, sem rebuço, Lutero e a sua obra. E é de uma figura grada da Igreja de Portugal, que nos servimos para a confecção deste trabalho. Em cerca de 450 páginas, o Padre Joaquim Carreira das Neves, cujo óbito ocorreu em 28 de Abril de 2017, proporcionou-nos Lutero – Palavra e Fé, editado pela Editorial Presença.

Lutero, homem do mundo, para além da grande figura da religiosidade, lida nos nossos dias, sem azedume, é, sem dúvida, uma das figuras centrais da cultura alemã.

Se as ideias de Lutero motivaram a divisão dos alemães, provocando sofrimento, guerras e conflitos, a tradução da Bíblia, suscitando a sua leitura, forneceu as bases para o desenvolvimento da língua alemã. Divulgando a Bíblia, vertendo-a para o falar da sua gente, incentiva o povo a aprender a ler e a escrever. Diminuindo a iliteracia, promove o acesso ao conhecimento, melhorando os níveis de cultura dos alemães. A religião ao serviço do povo. Lutero e os meios de comunicação com a tipografia a dar os primeiros passos. Homens da cultura, na esteira do luteranismo a divulgar teses que se opunham frontalmente ao dogmatismo da Igreja Católica, a perder apostolado, a favor do homem que, em Wittenberg, ousou enfrentar o Papa todo poderoso.

Não foi fácil o caminho percorrido até hoje. Lutero aparece durante muito tempo como uma entidade demoníaca, perversa, teimosa, contumaz. A adjectivação da negatividade que a Inquisição de forma implacável procurou exterminar. A Europa a dividir-se e a chamar a si a subjectividade da sua crença. A Ibéria, obediente ao Papa de Roma e intolerante às práticas seguidas pelas gentes do Norte, onde a França, adepta do Calvinismo, parece marcar a fronteira entre católicos e protestantes.

De herança imensa, Lutero, para muitos, criador do mundo moderno a quebrar a hegemonia de uma Idade Média, que se pautava pelo anacronismo e pela contestação silenciosa. Nome intolerado no século XVI, do Concílio de Trento, é voz corrente que o nome de Lutero servia de arremesso quando o insulto era uma arma para desfeitear o próximo. Frei Bartolomeu dos Mártires protestava vivamente quando o apelidavam de Lutero. Inadmissível, segundo ele.

De difícil aceitação no nosso país, por razões várias, Lutero viu chegada até nós a Igreja Luterana e Reformada Alemã, em 1761, por seu turno a Igreja Evangélica Luterana Portuguesa só seria fundada em 1959.

Com credos e seitas a proliferar, com a liberdade a celebrar-se por toda a parte, Lutero pouco publicado e pouco lido, é hoje nome pronunciado e gritado a plenos pulmões, ao mesmo tempo escrito sem temor em terras dominadas pelo catolicismo e onde a religiosidade abunda.

 

Não foi adoptado o Acordo Ortográfico em vigor

 

Falando de …. Van Gogh

Voltar atrás faz parte do nosso existir, tentando, ao mesmo tempo, resistir à força destruidora que todos os dias nos avassala. Vamos preenchendo a existência, tentando concretizar objectivos que outros já ambicionaram. Conquistar e vencer, criando modelos, indo além dos arquétipos, é programa de vida para muitos de nós.
Ultrapassar, tentando a inovação, não claudicando, recusando o estar esgotado, continuando sempre, sublimando defeitos, experienciando o vivido, filtrando obstáculos, afastando-nos de males que tentam enfrentar-nos, faz parte do nosso existir.
A vida nem sempre é fácil. Difícil se torna à medida que caminhamos. Para alguns a meta é já ali. Enfeudados a grupos onde o nepotismo campeia, para esses o ruído não existe. Alcandoram-se a lugares cimeiros, conquistando troféus, são os sequazes do princípio de Peter.
É assim desde há muito. Em tempos de monarquia, o título e a ociosidade era privilégio herdado. A sinecura pertencia ao currículo. Muitos anos volvidos, as práticas não estão distantes. Televisão, rádio e jornais mostram-nos à saciedade.
A democracia concede-nos o direito de falar e de escolher. Dá-nos acesso à liberdade. O diálogo faz parte da comunidade. A palavra pertence-nos, a menos que apareça algum Ayatola a cercear-nos o que o pensamento dita. Torquemadas de tempos modernos a patinhar no lamaçal construído por si próprios, ainda existem. Brandindo o chicote que arvoram, ameaçam quanto podem, diante da intolerância de punho fechado. A irracionalidade no seu melhor à janela dos nossos olhos, para quem goste e se deleite. Afinal talibans de barbas por crescer há-os por cá.
No meio deste desvario, ainda existe quem não peca a esperança e que encontre sempre uma nesga aberta a uma hipótese para a compensação dos seus projectos. Há a capacidade de ser sempre melhor. De avançar sem desvario. Conquistar espaço e dar azo a que sonhos façam parte da auréola de cada um. Os nossos amigos ainda existem. São eles que estando connosco salvaguardam a condenação à esterilidade e ao tédio a que estamos sujeitos, aos atropelos que nos fustigam e à astúcia dos que nos esmagam.
E há a arte. O belo que nos compensa e inebria. Os homens e as mulheres que trouxeram o mundo para junto de nós, confortando-nos no sonho e no prazer da vida. Ficaram perto de nós, mesmo tendo-se afastado. Aconchegaram a nossa existência, tornando o universo mais unido, unilingue na sua pluralidade, não interessando países ou nacionalidades. Globalizaram o espaço para nos fazerem mais humanos e mais pessoas. Foi assim e continua a ser.
De entre os que à arte deram o melhor do seu talento, como se dessa arte fizessem parte, predestinados para um mundo melhor, cabe-nos citar Vincent Van Gogh que na imortalidade escreveu o que de mais notável existe na pintura recente. Holandês, de pátria, nasceu em Zundert, a 23 de Março de 1853, filho primogénito de uma família que gerou mais cinco filhos, cujo progenitor era pastor protestante, profissão que ainda tentou sem sucesso. E sem sucesso é, praticamente, toda a sua existência. Incapaz de constituir família, incapaz de custear a própria existência, vivendo quase sempre do auxílio que lhe prestava seu irmão Theo (Theodorus), quatro anos mais novo, mesmo incapaz de manter contactos sociais. Como pintor encontrou um meio de se opor à misantropia que o dominava. A arte era para ele uma forma de equilibrar a sua existência, onde não faltaram tentativas falhadas de suicídio, que o conduziram à morte a 29 de Julho de 1890, com 37 anos, em Auvers-sur-Oise, aldeia situada a cerca de 34 quilómetros a norte de Paris, quando o relógio acusava 1h e 30m da madrugada. Através de um revólver, conseguido por meios ainda hoje não esclarecidos, dispara contra si próprio em pleno peito.
De vida difícil e saúde periclitante, depois de passar por Inglaterra e Bélgica, Van Gogh, em 1886, decide-se pela França, habitando com o irmão. Renegando o Protestantismo que havia professado, blasfemando em relação aos valores do Cristianismo, em Paris frequenta o Moulin Rouge, cabaret predilecto do seu amigo Toulouse-Lautrec, onde renegavam o Cristianismo. Face ao himeneu do irmão, parte para o sul de França. Arles, na Provença é a localidade escolhida, onde produzirá em quantidade grande parte da sua obra. Não existe ninguém para criticar a sua pintura e aí aperfeiçoa a sua técnica pictórica. A solidão domina-o. A Casa Amarela que imortalizará através da pintura, será o local onde residirá, depois de tornar um espaço inabitável numa habitação relativamente acolhedora. Insistindo no convite a Gauguin, finalmente a 20 de Outubro de 1888, acompanha-o na sua estada em Arles; para o efeito abandonaria a mulher e os cinco filhos legítimos. Quando vende algum quadro, nunca se lembra de enviar qualquer importância à família. Van Gogh passa fome e vive na maior austeridade com a escassa mesada que Theo lhe proporciona.
Gauguin, de ascendência peruana, chegou a ser condenado judicialmente por defender os direitos dos indígenas explorados pelos colonos franceses. A amizade entre Van Gogh e Gauguin vai-se deteriorando. A 23 de Dezembro de 1888, Vincent corta a orelha direita e dá-a embrulha em papel de jornal a Raquel, prostituta preferida num bordel de Arles. Era noite de Natal de 1888. Gauguin parte para Paris, alegando que Vincent o tinha querido matar com uma lâmina de barba. Vincent é atacado por epilepsia. A morte é a única solução para os seus males físicos e psíquicos. Chega a ingerir o conteúdo dos tubos de tinta de óleo e a beber essência de terebentina e as cores que ele tanto amava. Lavagens ao estômago, alimentação a horas e repouso forçado no hospital psiquiátrico onde o internaram trazem-lhe de volta à vida. São desta época o auto-retrato onde se apresenta com a orelha direita envolta em pano branco. O quadro Ísis é executado em Maio de 1889, dentro do seu quarto do hospício psiquiátrico. Em Junho de 1889 pinta a “Nuit étoilée avec cyprès”, hoje exposta no Museum of Art, de New York, em que antecipa o Expressionismo e o Abstraccionismo.
Em 1890 expõe na galeria Les Vingt, em Bruxelas, recebendo uma crítica elogiosa no Mercure de France, mudando-se posteriormente para Auvers-sur-Oise, onde findará os seus dias, sendo aí sepultado a 30 de Julho. Após a morte de Vincent Van Gogh, Theo desejava dar a conhecer a obra do irmão, o que não levou a cabo por ter morrido de sífilis, meio ano mais tarde, tendo sido trasladado em 1914 para Auvers, onde ficou enterrado junto do irmão.
A mulher, Jo van Gogh-Bouger e o filho Vincent Willem, herdeiros da obra, administraram-na segundo os desejos de Theo, vendendo uma parte da colecção e o resto emprestaram-na para exposições, tendo publicado as cartas de Theo a Vincent, que fazem parte de um conjunto de 820 chegadas ate nós, documentando o percurso artístico, as suas motivações e lutas pessoais.
Depois da morte da mãe, Vincent Willem passou a cuidar da colecção, tendo criado em 1962 a Fundação Vincent Van Gogh que pôs as obras à disposição do Estado Holandês, sob a forma de empréstimo permanente. O Museu Van Gogh, abriu as portas em 1973, mostrando-se a construção de quatro andares exígua, devido à afluência crescente de visitantes.
O Museu van Gogh gere a colecção da Fundação Vincent Van Gogh: as obras de Vincent, as suas cartas e cadernos de esboços, correspondência familiar, colecção de arte de Theo, objectos na posse da família, tais como umas caixas de laca com modelos de lã que Van Gogh usava para as suas combinações de cores.
Só depois da sua morte, lhe foi tributado o reconhecimento que não lhe tinha sido outorgado ao longo dos tempos. Vincent, o mal-amado, tornou-se herói, à medida que a sua arte se estabelece e se afirma no universo pictural. Com uma conduta depressiva, por vezes irascível, a que se juntava um percurso sentimental de insucesso, é a pintura o seu modo de se afirmar perante a sociedade e a sua tentativa de equilíbrio.
De fracasso é a sua primeira exposição apresentada em Paris no restaurante Du Chalet, no Boulevard de Clichy, em 1887, com Toulouse - Lautrec, Bernard e Louis Augustin. Nada foi vendido, sendo a apresentação acompanhada de grandes discussões, conduzindo à troca das obras entre si. Cézanne observava que as pinturas de Van Gogh eram Obras de um louco.
Desistindo das várias actividades por que passara, encontra a sua vocação aos 27 anos. A pintura fascina-o. Vai aperfeiçoando as suas figuras, tanto no volume como nas posições. Procura apoio nos livros e noutros meios auxiliares. Instalado em Haia, gostava de retratar os habitantes, como os habitantes de um lar de idosos com os seus característicos casacos negros e chapéus altos. A vida dos camponeses foi o seu tema principal, numa +época de industrialização e urbanização crescentes, enaltecendo a vida honesta e simples dos trabalhadores rurais. Uma vida ligada à natureza com os seus ciclos de semear e colher de vida e de morte.
Andava pelos campos, desenhando e pintando os tecelões e camponeses, para além de paisagens e motivos do seu ambiente mais próximo, tais como o jardim da casa paroquial e a igreja antiga com o pequeno cemitério ao lado.
Vivendo de modo precário e cheio de dificuldades, propõe a Theo entregar-lhe quadros a troco da mesada que lhe enviava. São deste período 100 cabeças do povo, afirmando que não são retratos mas tipos de pessoas que labutam no campo desde há séculos. Segundo o irmão, era difícil vender as suas telas predominantemente sombrias, em Paris, numa época em que o impressionismo com as suas cores frescas e claras estavam a conquistar terreno. Nesta linha, aparecem “Os comedores de batatas” e muitos dos quadros retratando a sua vida familiar com mulheres com quem conviveu.
Em Paris, onde viveu quase dois anos, pintou muitas naturezas mortas com flores, mas também um par de sapatos gastos. Gostava de objectos pelos quais tinha passado a vida. Utilizava cores novas e mais vivas e sobretudo tons mais claros. Pintava muitos auto-retratos. Registava a vida citadina parisiense, pintando cafés, lugares de diversão e jardins. À procura do seu estilo próprio, experimentava técnicas de pintura, com cor, com o traço de pincel, linhas e planos. Trocava obras com outros artistas e exibia quadros.
Na Provença, encontrou a luz clara e o sossego que procurava, que comparava ao Japão devido à clareza da atmosfera e dos alegres efeitos da cor. Quando chegou a Arles, as amendoeiras começavam a florir por toda a parte, iniciando-se na pintura de pomares em flor e nas cenas das colheitas. Em 1888 pintou Barcos pescadores na praia de Les Saintes-Maries-de-la-Mer. A Casa Amarela decorou-a com quadros, entre os quais Os girassóis, de que tinha pintado cinco versões de tonalidades diferentes. Gauguin não lhe reconheceu o génio, embora Van Gogh apreciasse o quadro que foi vendido há uns anos por 25 milhões de dólares. Pintar à noite, ao ar livre, à luz artificial é um desejo supremo de Van Gogh. A noite é mais viva e mais rica em cores do que o dia. O seu ponto mais alto é a noite estrelada.
Um mês antes da sua morte, pintou “Campo de trigo com corvos”. Outras pinturas mais alegres terão surgido do labor do artista.
Deprimido, inseguro, receando sobrecarregar o irmão que o ajudava, ainda lhe resta tempo para ser triste ante a infelicidade que, dizia, ameaçava o irmão
Consta que em vida não vendeu mais do que um quadro. Adquiriu-o em Bruxelas, Ana Boch, irmã do poeta, Eugène Boch, por 400 francos. Chamava-se “A vinha vermelha”. Talvez não tenha sido o único, como frequentemente se afirma.
No quase anonimato partiu para se inscrever na imortalidade. Hoje, são muitos os que o desejam conhecer. E se personalidades como esta nos arrastam do quotidiano penoso e hostil para o mundo da tolerância e da vida positiva, não há como lê-los, vê-los e contemplá-los, para sermos mais perfeitos, melhores e mais solidários…

João Cabrita   

Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico         

Falando de … Raul Brandão, António Nobre e Camilo Pessanha, nos 150 anos do seu nascimento

Aconteceu em 1867. Viram luz no norte de Portugal. Aí prosperaram e foram enormes. Por vezes, esquecidos, mas nunca minorados. Ensinaram gerações a amar a beleza das letras, tornando-as mais viçosas e prósperas.
As escolas vão passando ao lado, mas, sabem que eles existem. Os programas encasulam-nos no olvido, mas é, também, com eles que Portugal vai sendo maior.
Falamos de Raul Brandão, António Nobre e Camilo Pessanha. Em páginas de jornal, lembremo-nos da sua vivência. Alguns dados biográficos que tornem mais fácil o acesso a estas individualidades que tão bem dignificaram a língua portuguesa e que de quando em vez são lembradas em tertúlias literárias ou em concursos televisivos onde, esporadicamente, se questiona o acervo cultural do país que é nosso e que pede meças a outros cuja dimensão histórico-cultural nos fica muito aquém, não fosse Portugal terra com mais de oito séculos de existência.
Viveram em tempos convulsos. A Regeneração originada pelo golpe do duque de Saldanha depõe o governo de Costa Cabral, abrindo as portas a um período de estabilidade, o que permitiu introduzir reformas políticas, económicas e administrativas, transmitindo uma imagem de paz e de progresso, sendo publicado o Código Civil, do conde de Seabra e entrado em vigor o Código Administrativo. É abolida a pena de morte para os crimes civis, extinta a roda dos enjeitados. Júlio Dinis publica As Pupilas do Senhor Reitor.
Apesar da melhoria do clima social, assiste-se à afirmação de um grupo de intelectuais que constituem a geração de 70 que levou a cabo as Conferências Democráticas do Casino. D. Carlos enfrentará a crise originada pelo Mapa Cor  Rosa e o Ultimatum Inglês de 1980.
A 12 de Março de 1867 nascia na Foz do Douro, Raul Germano Brandão que deixou o seu talento ligado às letras com o nome de Raul Brandão. Rapazinho espigado, louro e inocente, chamavam-lhe o pernalta, tinha os seus treze anos, era aluno no Colégio de São Carlos, o mesmo que fora frequentado por Trindade Coelho. Apaixonou-se, sem saber o que era o amor, por uma sombra que sorriu e passou. Era uma padeirinha que distribuía o pão nas proximidades do Colégio. Nem o nome lhe sabia. Por ela todas as manhãs faltava à escola, por isso ficou reprovado em Geografia. Depois de terminado o Liceu, matriculou-se no Curso Superior de Letras.
Tendo-se dedicado muito cedo ao jornalismo, não sendo indiferente à situação em que vivia o pais, absorvido pela condição humana, dedica muitas das suas reportagens à miséria, ao pessimismo, à sentimentalidade rústica, aos vícios e a tudo o que punha em causa a existência dos humildes e alimentava a crise social. No jornalismo dirigiu a Revista de Hoje e A Arte. Em 1890 lança o primeiro livro Impressões e Paisagens.
Aos 24 anos ingressa na Escola do Exército, colaborando no jornal Imparcial, de Lisboa. É de Raul Brandão a afirmação, “Durante o tempo em que fui tropa, vivia sempre enrascado. Tudo me metia medo, os homens aos berros que ecoavam no quartel, castigo para um lado, castigo para o outro; e as coisas negras, feias, agressivas, a parada, a caserna, as retretes.”
Durante o estágio de dez meses, em que esteve na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, fez um relato dos acontecimentos do curso, que publicou na revista Arraial, tendo colaborado, também, no jornal Correio da Manhã, fundado por Pinheiro Chagas.
Findos os estudos militares, foi colocado como Alferes em Guimarães, onde conheceu em Maio de 1896, uma menina de 18 anos, que viria a ser sua mulher, durante mais de trinta anos. Casa em Março de 1897, indo viver para a Foz do Douro. Transferido para Lisboa, continua a escrever em jornais, sendo ameaçado de transferir-se para Bragança.
Com Julião Brandão escreve a peça de teatro Noite de Natal, apresentada no teatro D. Maria II em 1899. Note-se que foi longa a camaradagem com Julião Brandão, cuja comunidade de apelido não revelava nenhum parentesco.
Distribuindo a sua produção pela narrativa e pelo teatro, tendo sempre presente a condição humana e a simpatia pelo trabalho da gente humilde, vai produzindo títulos, como:
O doido e a morte (1923), O Avejão (1929), Os Pobres (1906), A Farsa (1903), Húmus (1917), Os Pescadores (1923), Pobre de Pedir (1931), O Gebo e a Sombra (1923), O Rei Imaginário (1923)e História de um Palhaço(1922).
Dando conta na sua obra das dificuldades por que passam as personagens, onde não falta a simpatia do produtor da escrita, é certo, também, que os proscritos são alvo de incitamento, como se renunciar fosse abdicar. E porque em Raul Brandão há marcas de solidariedade, onde o ostracismo não pontua, é possível ler-se no livro de Memórias, volume I, Tomo I, “ O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe couber em sorte. De dor também”. Em colaboração com Teixeira de Pascoaes publica em 1927 Jesus Cristo em Lisboa.
Resultado de uma viagem à Madeira e aos Açores escreve As Ilhas Desconhecidas em 1926. Em colaboração com a mulher, Maria Angelina Brandão, publica Portugal Pequenino em 1929.
Homem de grande valência no meio cultural do seu tempo, faz parte do grupo fundador da Seara Nova, em 1921, que se propunha reformar a mentalidade portuguesa através de uma intensa acção pedagógica e política.
Ao seguir a carreira militar, renunciou à frequência do Curso Superior de Letras, reformando-se em 1911, no posto de major, confessando não conseguir ser um militar a sério. Em Nespereira, próximo de Guimarães, na sua Casa do Alto, a partir de 1903, procura o refúgio e o lazer de que necessita. Partiu em 1930, em Lisboa, deixando muitas das suas Memórias publicadas em três volumes datados de 1919, 1925 e 1933.
Num outro contexto social, nasce em 16 de Agosto de 1867, António Nobre, no Porto, no número 469 da Rua de Santa Catarina, quinto filho do casal Pereira Nobre, família pequeno-burguesa que vive entre a capital do Norte e os campos dos arredores de Penafiel e da Lixa. Raul Brandão em Memórias, volume I, Tomo III, lembra o encontro com António Nobre que, pelo insólito, merece ser citado:

 

…foi num barco, ao lado dum velho pescador, que conheci o António Nobre, que logo me perguntou se não tinha uma Bíblia que lhe desse.
- Para que quer você a Bíblia?
- Para deitar a cabeça, quando for no caixão.

Se é verdade que António Nobre tenha caído no esquecimento de grande parte dos portugueses, ainda são alguns os estudiosos que se têm debruçado sobre a obra do poeta. José Régio, na Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa, trabalho que lhe serviu de tese de licenciatura, no Curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, dedica algumas páginas num artigo que denominou António Nobre-tendências nacionalistas, num capítulo relacionado com o modernismo na poesia portuguesa, aponta a liberdade do ritmo, arrojo do vocabulário, capricho das imagens, elementos que conduzem à renovação que então se operava na poesia. Considera-o um romântico, se não um ultra-romântico, e é também aos nossos românticos que vai pedir, renovando-as e variando-as algumas das suas cedências mais aliciantes, em verso de oito, nove e onze sílabas, em que ninguém, entre nós, se lhe avantaja, em que as esquisitices do seu temperamento de tísico e nevropata o conduzem. Misturando o romantismo, o realismo e o simbolismo, ao sabor da sua boémia fantasia criadora conseguiu essa maneira única, tão natural e tão extravagante que enfeitiça o país através de contínuas edições.
Uma análise de um poeta feita por um poeta, atento e exímio observador do que se ia passando no universo literário português, onde não faltam encómios à poesia de Florbela Espanca. Afirmando ser Nobre passivo ante o sofrimento e a vida, acrescenta que a volúpia da decadência, da dor, da humilhação, do abandono, dá aos seus versos essa resignação suavemente desesperada, onde não falta algum humorismo catalisador da sedução.
Não passou ao lado do olhar de Fernando Pessoa a escrita de Nobre. Aos 27 anos, em 25 de Fevereiro de 1915, escreve um artigo de opinião no jornal de Coimbra A Galera nº. 5-6, intitulado Para a Memória de António Nobre, que seria reeditado pela Ática em 1980, em Textos de Crítica e de Intervenção, que transcrevemos, “Quando ele nasceu, nascemos todos nós. A tristeza que cada um de nós traz consigo, mesmo no sentido da sua alegria é ele ainda, e a vida dele, nunca perfeitamente real nem com certeza vivida, é, afinal, a súmula da vida  que vivemos – órfãos de pai e de mãe, perdidos de Deus, no meio da floresta, e chorando, chorando inutilmente, sem outra consolação do que essa, infantil, de sabermos que é inutilmente que choramos”.
Autor de estro precoce, datando os primeiros versos de 1882, vemo-lo a frequentar a Universidade de Coimbra, onde trava conhecimento e amizade que perdurará por muito tempo, com Alberto de Oliveira, bem mais jovem, que em Palavras Loucas fará a defesa do nacionalismo e do neo-garretismo, na Literatura Portuguesa. Fundando a revista Bohémia-Nova e envolvendo-se no espírito da boémia coimbrã, reprovará os dois primeiros anos lectivos, rumando a Paris, onde chega em Outubro de 1890, a fim de obter a licenciatura em Direito, na Sorbonne, viajando a bordo do navio Britannia. Na capital francesa estabelece contactos com Eça de Queirós e é íntimo de Moniz Barreto.
Em 1892 publica na editora Léon Vanier, em Paris, o Só, numa edição de 200 exemplares. Igualmente, nesta editora publicaram Mallarmé, Rimbaud e Verlaine. A segunda edição, de 300 exemplares, virá a lume em 1898, na editora Guillard, Aillaud & Cª, em Lisboa.
Pouco antes da sua partida para Paris, conhecerá António Nobre, Margarida de Lucena, apelidada de Purinha, divulgada no Só. Jovem da pequena aristocracia rural, segundo Mário Cláudio, na Fotobiografia que lhe dedicou, editada pelas Publicações Dom Quixote em 2002. Margarida de Lucena que conheceu em casa de amigos, na estrada da Beira, será sua namorada entre 1890 e 1896. Integrando uma prole numerosa, seriam cerca de quinze filhos, cumprirá pedido sagrado da mãe à hora da morte, nos últimos momentos de vida, recusando casar com o poeta porque não poderiam ser felizes. (carta de António Nobre a Margarida de Lucena de 16.5.1896 a partir de Davos-Platz).
Terminado o curso de Direito, regressa a Portugal, tendo por objectivo concorrer ao cargo de cônsul de primeira classe, onde obteve aprovação. Uma afecção pulmonar impossibilitará a sua actividade profissional, determinando a sua partida para a Suíça, a conselho médico. Desapontado com o tratamento na Suíça, em Portugal tenta a cura para o seu mal. No norte do país, por Lisboa e arredores, debalde busca o que não vai encontrando, resolvendo viajar até aos Estados Unidos da América, julgando obter benefícios com a travessia marítima. Em 1898 fixa-se na Ilha da Madeira, mas em vão. Não desistindo regressa de novo a Davos, depois de uma passagem por Londres, voltando ao sol do Monte Estoril, fixando-se, finalmente, em casa de seu irmão Augusto Nobre, na Foz do Douro.
Com o oceano à ilharga, sob o seu olhar, despede-se para sempre em 18 de Março de 1900. Em 1902, graças ao irmão Augusto sairá a primeira edição de Despedidas, contendo os poemas compostos entre 1895 e 1899.
Muito mais para enunciar. Acabamos por cair na prolixidade, com muito por dizer. É assim a subjectividade do apreciador. Antes que encerremos este texto de prazer, confiemo-nos a Raul Brandão que no volume I, Tomo III, escreve em palavras maviosas:
“Era um príncipe. Era uma flor delicada. Tinha nascido aristocrata e infantil. Sentíamo-lo um ser à parte! Extraordinário, artificial e sincero ao mesmo tempo. Fora de duas ou três pessoas, ninguém o devia compreender. Os homens dividem-se em príncipes e plebe”.
Nasceu, Camilo de Almeida Pessanha, de seu nome completo, a 7 de Setembro de 1867, em Coimbra, filho natural de Francisco António de Almeida Pessanha, de ascendência aristocrática, estudante de Direito, cuja carreira o guindará a juiz do Supremo Tribunal Administrativo, e de Maria do Espírito Santo Duarte Nunes Pereira, mulher de condição social inferior. Em 1867 morre Baudelaire que publicara em 1857 Les fleurs du mal, lançando as bases do simbolismo francês.
Graças ao nomadismo a que a profissão do pai o obriga, vê-se a residir em vários locais, durante a sua infância, nomeadamente, Açores, Mogadouro, Lamego, Vila Nova de Foz Coa e Vila Pouca de Aguiar, são alguns dos locais por onde Camilo passa. Em 1884, ingressa na Universidade de Coimbra, estabelecendo amizade com Alberto Osório de Castro, que perdurará para a vida.
Durante a sua passagem pela Universidade de Coimbra, são publicadas duas revistas que reflectem os movimentos literários da época: Bohémia Nova, baluarte do neo-garretismo com António Nobre e Alberto de Oliveira à frente e Os Insubmissos de pendor simbolista ou nefelibata, onde pontua Eugénio de Castro. Não colaborando em nenhuma destas revistas, Camilo Pessanha alia-se a Lomelino de Freitas que dirige a revista A Crítica, publicando aí o seu poema mais antigo, Lúbrica, datado de 14 de Outubro de 1885. Com recortes de crítica literária, colabora na revista Intermezzo e em O Novo Tempo.
Forma-se em Direito em 1891, sendo subdelegado do procurador régio em Mirandela em 1892, local onde passará algumas temporadas em férias na Quinta dos Marmelos, em casa da tia Maria Augusta. Antes de rumar a Macau, desempenhará o mesmo lugar em Óbidos, onde ocupará o lugar de professor do Liceu em 1894, tendo como colega Wenceslau de Moraes.
Em 1893, antes de partir para Macau, pede Ana de Castro Osório (1872-1935) em casamento, o que lhe é recusado, vindo a jovem a casar em 1898, com o político republicano Paulino de Oliveira, enviuvando em 1914.
Durante a sua permanência em Macau, além de professor, foi Reitor, colaborou em jornais, Conservador do Registo Predial, advogado, auditor do Conselho de Guerra, juiz, por motivo de licença ou de doença, esteve por quatro vezes na Metrópole, de Agosto de 1896 a Fevereiro de 1897, de Outubro de 1899 a Junho de 1900, de Agosto de 1905 a Janeiro de 1909 e pela última vez de Setembro de 1915 a Março de 1916.
Tendo-se dedicado ao estudo da língua e cultura chinesa, chegaram até nós Oito Elegias Chinesas, traduzidas, publicadas no jornal O Progresso, de Macau, em Setembro e Outubro de 1914. Grande colecionador de objectos de arte chinesa, ofereceu-os ao Estado Português.
Durante a sua última vinda a Portugal em gozo de licença de Conservador do Registo Predial, é visita assídua da família Castro Osório onde jantava e seroava. João de Castro Osório (1899-1970), filho de Ana de Castro Osório, que à data tinha 16 anos, recorda que o poeta, logo na primeira ou segunda visita, recitava com um estranho modo de dizer poesias, algumas das suas poesias. Nada estava escrito, tendo Camilo Pessanha, a pedido, colaborado na escrita dos poemas de sua autoria. João de Castro Osório na Clepsidra e outros poemas de Camilo Pessanha, Edições Ática, 1973, afirma que a memória de Camilo Pessanha era de uma estranha faculdade. Incapaz de fixar o caminho da Sé ao Rossio, tinha de cor todos os seus poemas e muitos outros daqueles poetas que admirava: Camões, João de Deus, Gomes Leal e Alberto Osório de Castro, dos portugueses, Verlaine e Ruben Dario, dos estrangeiros.
A publicação do livro de Camilo Pessanha, Clepsidra, teve lugar em 1920, contendo trinta poemas sem qualquer introdução e comentário, por D. Ana de Castro Osório, na Casa Editora Lusitânia, de que era directora e co-proprietária. A segunda edição de 1945, com nota explicativa de João de Castro Osório, contém 56 poemas.
Em meados de 1916, já Camilo Pessanha partira para Macau, Luís de Montalvor quis publicar na sua revista Centauro, poemas de Camilo Pessanha. Foi nesta revista que se fez a primeira publicação do conjunto de alguns poemas de Camilo Pessanha e que só depois se inicia a sua influência na poesia portuguesa – a imagem do fluir, marcas do efémero, reflexo crepuscular da morte indispensável para que o tempo velho se renove, numa coincidência com a época de revisão e mudança de valores que então se vive, numa afirmação de decadência, ou por outras palavras, a vida não vale pelo que é, mas pelo que dói. São 15 poemas cedidos pela escritora D. Ana de Castro Osório. De notar que o soneto Tatuagens, fora publicado no jornal Notícias de Bragança, em 15 de Março de 1913, sem título, com ligeiras alterações.
Conhecedor da existência de Camilo Pessanha e da sua obra, Fernando Pessoa, em carta que lhe dirige em 1915, lembra que se encontraram duas vezes, apenas tendo falado no “Suíço”, onde foi apresentado pelo general Henrique Rosa, tendo Camilo Pessanha recitado alguns dos seus poemas. Depois, por Carlos Amaro obteve cópias de alguns dos poemas de Camilo Pessanha que, confessa, sabe de cor e são fonte de exaltação estética. Apresentando-se como director da revista trimestral literária – Orpheu, solicita a inserção de poemas cujo título indica, no número 3 da revista Orpheu que não chega a sair, porque o pai de Mário de Sá-Carneiro não se mostrou disponível para a financiar. Só em 1984, o nº3 do Orpheu compilado por Arnaldo Saraiva será publicado, sem que algum poema de Camilo Pessanha tenha sido inserido.
De delicada constituição física que a fixação não debelou, vindo por vezes a Portugal para a cura dos seus males, Camilo Pessanha denunciava a cada momento o seu estado de degradação para o que contribuía a sua condição de opiomaníaco e assíduo bebedor de absinto, à maneira de Verlaine, seu inspirador. Fora feita a sua vontade, em Macau, a 1 de Março de 1926. Contava 59 anos, para a posteridade ficava a Inscrição que iniciava a obra-prima do simbolismo, de sua autoria – Clepsidra:
Eu vi a luz em um país perdido./A minha alma é lânguida e inerme./Oh! Quem pudesse
deslizar sem ruído!/No chão sumir-se, como faz um verme…
O enterro, por vontade do poeta, não teve música, nem coroas, nem acompanhamento religioso. Só um ramo de flores, levado por uma colega do Liceu.

Não foi adoptado o Acordo Ortográfico em vigor

Falando de... O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago

Os tempos eram outros. Nos anos trinta aprendia-se Literatura Portuguesa no ensino industrial. São palavras de Saramago nos Cadernos de Lanzarote – Diário III. Frequentador da biblioteca da escola Afonso Domingues, em Xabregas pelos seus 16, 17 anos tomou contacto com Ricardo Reis. Vale a pena recordar o que em 11 de Janeiro de 1995 afirmou a propósito das suas incursões pela Biblioteca. Encontrara a revista Athena dentro de um livro encadernado. Aí viu pela primeira vez as Odes de Ricardo Reis. Acreditara que existia ou existiria um poeta que se chama Ricardo Reis, que ao mesmo o fascinara e assustara, mas foi no princípio dos anos 40 que uns quantos versos de Ricardo Reis se lhe impuseram, como uma divisa, um ponto de honra, uma regra imperativa que iria ser seu dever, para cumprir e acatar.
Mas se Ricardo Reis é a segunda metade de um sintagma que funciona como título, o ano da morte é a outra escolha de Saramago. Questionamo-nos: porquê o ano da morte e não o ano do nascimento? É conhecida a afirmação proferida por Saramago que os seus livros têm uma marca política e ideológica bastante forte. Em entrevista concedida a Carlos Reis em 25 de Janeiro de 1997, publicada pela Caminho em 1998, sob o título Diálogos com Saramago, afirma o escritor: “Onde é que a literatura viveria, se pudesse viver fora da ideologia ou à margem dela? A Literatura pode viver até de uma forma conflituosa com a ideologia […] O que não pode é viver fora da ideologia”. 
Se é certo que a ideologia está ligada à Literatura, só depois do 25 de Abril é possível conceber um texto como O Ano da Morte de Ricardo Reis, onde a ironia e a crítica se apresentam lado a lado para retratarem a governação de Salazar, e daí importa citar Saramago na entrevista a Baptista-Bastos publicada pela parceria Sociedade Portuguesa de Autores-Publicações Dom Quixote, em 1996, com o título José Saramago, Aproximação a Um Retrato, “Creio que nada ou quase nada daquilo que fiz, depois do 25 de Abril, podia ter sido feito antes”.
Levam-nos estes considerandos sustentados pela ideologia, pelo 25 de Abril e pela política, a uma afirmação que nos parece pertinente “1936, ano considerado como o da morte de Ricardo Reis, é o ano que reúne todos os ingredientes, configurando um painel de regras tendentes a cercear a liberdade; é o ano da consagração do salazarismo na sua plenitude, ano da afirmação de todas as transgressões, daí encontrarmos nesse tempo histórico, paratexto e pretexto, os elementos que enformam O Ano da Morte de Ricardo Reis, andaimes, alicerces e infra-estruturas que puseram de pé esta estrutura narrativa que se enfileira na obra saramaguiana.
Saramago é um homem empenhado politicamente. É um denunciador de causas políticas. Não lhe são indiferentes os problemas sociais. Quem escreve Levantado do Chão, em 1980 e Memorial do Convento, em 1982, tornando públicas questões laborais caídas no olvido, naturalmente que não vai optar de forma ingénua pelo Ano da Morte de Ricardo Reis. Era a ditadura salazarista em plena formação a dar os primeiros passos. Da escrita do texto, aproveitámos e vimos “vivo” um Ricardo Reis ficcionado como se fosse um de nós e lembrámo-nos que a PVDE/PIDE também existiu.
É o título um elemento premonitório de um texto que se abre à nossa frente e nos quer introduzir na vivência heteronímica de Fernando Pessoa. Ricardo Reis é um elemento de ficção legitimado e dado ao mundo por Fernando Pessoa em carta escrita a Adolfo Casais Monteiro, em 13 de Janeiro de 1935.
Viveu dentro de Saramago muitos anos. Sabemo-lo “nascido” em 1887, médico de profissão, residente no Brasil desde 1919, poeta, criador de Odes.
Saramago, empenhado no processo político, leitor de todos os quadrantes e observador tenaz, está atento ao que se passa em seu redor. Romancista do jornalismo herdado, conhecido em tempos de estro serôdio, dá à luz os seus romances mais conhecidos por volta dos anos oitenta, depois de ter passado pela poesia e pelas crónicas políticas publicadas antes do 25 de Abril, quando a censura campeava. Em plena ditadura, Saramago vai-se furtando aos olhares inquisitoriais, em artigos de opinião, em prosa, crónica e contos, mostrando a sua verve de homem político, o mesmo se passando na poesia, onde o seu mérito, contudo, não atingiu o esplendor do romance.
Escritor da inquietação, da insatisfação e da rebeldia, faz de Portugal o seu objecto de cultura, conferindo-lhe uma dimensão ética e épica, através de uma “arqueologia” onde são postos a nu acontecimentos que, produzindo o presente, exorcizam o passado, tornando o tempo coevo, conforme afirma, “Só o tempo passado é que é tempo reconhecível – o tempo que vem, porque vai, não se detém, não fica presente […] Desse tempo que assim se vai acumulando é que somos o presente infalível, não de um inapreensível presente”.
Sabemos que uma das justificações encontradas por Saramago para a escrita de O Ano da Morte de Ricardo Reis foi o “desafio” imposto pelo verso “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo”, escrito por Ricardo Reis em 19 de Junho de 1914. 
Não sendo Saramago um homem acomodado, as suas leituras nas várias bibliotecas que frequenta em Lisboa, não fazem dele um ser instalado e passivo. Sábio seria, antes, para quem o mundo é motivação, convocação, correcção de assimetrias através da assunção de compromissas resultantes de uma tomada de consciência despertada por um espírito crítico que lhe advém da correlação entre o conquistar-se e o conquistar o mundo segundo paradigmas que vão sendo instaurados pela palavra que não é exclusivamente pensamento.
Com frequência o romance convive com o espaço e o tempo, e é nesta convivência que se move O Ano da Morte de Ricardo Reis. Sabemos que a acção central se desenrola em Lisboa, uma vez Ricardo Reis aí desembarcado. Desembarca no cais de Alcântara. Viajou no Highland Brigade, vapor inglês da Mala Real. Recebera um telegrama de Álvaro de Campos anunciando a morte de Fernando Pessoa, sentira que era um dever regressar. Não sabe se fica para sempre em Portugal ou se regressa ao Brasil. 
Ficou instalado no Hotel Bragança, no segundo andar de onde pode ver o rio, no quarto 201, que tinha ficado livre naquela manhã. Ficou entre nós e deambulou pela cidade. Lisboa é porta aberta para os que de Espanha procuram paz e sossego “por isso os Estoris albergam o que em linguagem de crónica mundana se diz ser uma selecta colónia espanhola, afinal pode bem acontecer que lá estejam, em veraneio, aqueles e outros duques e condes”. Para benefício destes, o Rádio Clube Português passou a ter uma locutora espanhola que lê as notícias dos avanços nacionalistas na língua de Cervantes. 
Saramago pensou preencher o espaço deixado em aberto por Fernando Pessoa, como se fosse preciso dar vida a Ricardo Reis que permanece na capital até Agosto de 1936. Como se estivesse a fazer a exumação de um passado mal conhecido que era obrigatório desvendar e denunciar com vista a esclarecer o presente para que se entenda o passado, numa ótica de efemeridade e de transitoriedade, porque salvando-o através da reescrita, há uma hipótese de correcção, com vista a criar homens e mulheres mais capazes, como se o mundo pudesse vir a ser melhor, através da adição de pessoas mais sólidas.
Sendo um texto, um movimento de reorganização que produz destruindo a partir de um extra-texto, ou que de outra forma tende a arrumar o caos e que, neste caso, sendo o social, é também a vida de Ricardo Reis que se vai transformando. Para a sua construção, serviu-se José Saramago de jornais da época, como por exemplo, O Século, investigado durante dois meses, na Biblioteca Nacional. Oito meses ocuparam o autor para a feitura da sua obra. 
Neste painel de espaços e personagens imaginado a partir de um outro já existente, rebuscado no verdadeiro ou imaginado, com vista a criar o verosímil ou inverosímil, onde o autor e o leitor dialogam, numa troca de significantes e significados, com vista a dinamizar uma acção em que o facto do contacto assume foros de autenticidade. Uma retrospectiva de Portugal, um postal ilustrado de Lisboa com as cores da simpatia e da vivência dos bairros menos afortunados por onde Saramago viveu, “Aqui não é sequer a Lisboa toda, muito menos o país, sabemos nós lá o que se passa no país, Aqui é só estas trinta ruas entre o Cais do Sodré e S. Pedro de Alcântara, entre o Rossio e o Calhariz, como uma cidade interior cercada de muros invisíveis que a protegem de um invisível sítio, vivendo conjuntos os sitiados e os sitiantes”.
Lisboa é o macro-espaço onde tudo se passa, para além de Fátima aonde se deslocou, numa tentativa para encontrar Marcenda:
Ricardo Reis partiu para Fátima. O comboio saía do Rossio às cinco horas e cinquenta e cinco minutos, e meia hora antes de a composição entrar na linha já o cais estava apinhado de gente.
Ricardo Reis está aqui no livro. Dinâmico, parece que vivo, dialogante, médico ainda, de trabalho precário, quarenta e oito anos, natural do Porto, solteiro,” última residência, Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, a recordar-nos tempos de Polícia política, de agentes a cheirar a cebola, provocando um sorriso irónico ao leitor que ainda se lembra da ditadura e da matança de Badajoz. Como se fosse um de nós, autónomo e senhor de si”, “é aqui que irá viver não sabe por quantos dias, talvez venha a alugar casa e instalar consultório, talvez regresse ao Brasil”. Veio para falar com Fernando Pessoa. O cemitério dos Prazeres é já ali, não muito longe do Hotel Bragança. Lá no jazigo 4371 está Fernando Pessoa. Sai de quando em vez e dialoga com Ricardo Reis. Rua do Alecrim, Chiado, Rua Garrett, Rossio, Calçada da Estrela, Largo de São Roque, Príncipe Real e Estátua de Eça de Queirós são referentes que nos remetem para a realidade, dissipando a ficção. 
Dezanove capítulos, não numerados, de 415 páginas, de vida de Ricardo Reis, médico de profissão, de guerra, de Hitler, de Salazar, de silêncio, de medo, de presos políticos, de palavras interditas, de manifestações de apoio contra o comunismo.
Sem dúvida os sindicatos nacionais repelem com energia o comunismo, sem dúvida os trabalhadores nacionais(…) os sindicatos nacionais pedem a Salazar, em suma grandes remédios para grandes males, os sindicatos nacionais reconhecem(…) a iniciativa privada e a apropriação individual dos bens, dentro dos limites da justiça social.
Há, também, os nomes que se recordam e cujas raízes ainda perduram: Luís Pinto Coelho, Fernando Homem Cristo, António Castro Fernandes, Ricardo Durão, Nobre Guedes, Jorge Botelho Moniz, de bancários de fita azul com a Cruz de Cristo no braço e as iniciais SNB.
Como se fosse um repórter, alguém que sentimos presente, o narrador vai-nos dando conta do quotidiano, sem esquecer a localização espacial, “Aqui o mar acaba e a terra principia”, pintando-a em tons de meteorologia. Há o rio e a água em abundância. Chove muito. E há Camões, Os Lusíadas, onde todos nós vamos dar.
Todos os caminhos portugueses vão dar a Camões, de cada vez mudado consoante os olhos que o vêem, em vida sua braços às armas feito e mente às musas dado, agora de espada na bainha, cerrado o livro, os olhos cegos, ambos, tanto lhos ficam os pombos como os olhares indiferentes de quem  passa.
Narrador omnisciente, que tudo sabe, com prerrogativas ilimitadas, sabendo o que está a acontecer, informa o que se passou, ao mesmo tempo que transmite uma visão do futuro, “Quando amanhã cedo o Highland  Brigade sair a barra, que ao menos haja um pouco de sol e de céu descoberto”. 
Não participando na acção, o narrador está em condições privilegiadas para observar e contar. Digamos que se trata, segundo Genette, de um narrador heterodiegético, com uma capacidade de contar que não é posta em causa, dada a autoridade que lhe advém do seu saber, embora não seja alheio a cenários ideológicos que se vão manifestando através das suas impressões, fruto da sua subjetividade.
Se é verdade que Ricardo Reis é transportado para a vida, suscitado pelas Odes descobertas na revista Athena, outras são as personagens revividas no Ano da Morte de Ricardo Reis. O hotel Bragança é o local de todos os encontros. Espanhóis que em Portugal procuram a paz e a serenidade que a guerra do seu país não proporciona. Marcenda, nome gerúndio, filha do Dr. Sampaio, notário de Coimbra, que é maneta, “irmã” física de Baltazar, do Memorial do Convento. Conheceram-se de soslaio na sala de jantar do hotel Bragança, “foi ela quem daí a pouco olhou, por cima da manga do criado que a servia, no rosto pálido perpassou uma brisa, um levíssimo rubor que era apenas sinal de reencontro”. Através do olhar mantêm uma relação que as regras da época não permitem ir muito longe. Carteiam-se e são parcos em contactos físicos. Casamento que é pedido e recusado. Nunca seriam felizes. Marcenda não o esquece. Uma ida a Fátima e um encontro fracassado e de fracasso é também o seu primeiro encontro com Lídia, figura nuclear nas Odes de Ricardo Reis. Transportada para a obra de Saramago, Lídia é filha de pai incógnito, empregada de quartos de hotel e de casas a dias, subalterna de Ricardo Reis, de parto adiado, de olhos vermelhos e inchados, grávida de médico, irmã de Daniel, marinheiro do Afonso de Albuquerque, também ele vítima da ditadura salazarista.
Não tendo nenhum assunto a tratar em Lisboa, Ricardo Reis decide ir ao cemitério dos Prazeres visitar Fernando Pessoa que tinha morrido e que se encontra no jazigo quatro mil trezentos e setenta e um. Depois de desencontros, a vinda a Lisboa acaba por resultar. Ricardo Reis que se confessa monárquico, sem rei, tivera o seu primeiro encontro com o seu “criador” graças ao poder vivificador do demiúrgico narrador. O verosímil acabara com as fronteiras entre a vida e a morte. A partir daqui tudo é possível, mas só durante oito meses pode circular à vontade, tempo suficiente para o total olvido.
Passaram oito meses e onze encontros. A noite estava quente, naquele final do mês de Agosto. O prazo estipulado por Fernando Pessoa estava a terminar. Só podiam estar juntos oito meses. Era ali, em Lisboa, “onde o mar se acabou e a terra espera”.
E a leitura/escrita poderia continuar…

Falando de... A Holanda

São muitas as razões que nos levam a falar da Holanda e dos Holandeses. País pequeno, encantou a nossa juventude através de leituras relatando a epopeia das suas gentes no combate contra o mar, tentando conquistar espaço. A simpatia, a admiração e a amizade aproximaram-nos deste povo.
Mais tarde, lendo na História a perda da independência de Portugal em favor dos espanhóis, soubemos que territórios do Brasil foram capturados pelos Holandeses. Aí, ao país usurpador, subtraímos o nosso apreço.
Hoje, as declarações produzidas pelo Ministro das Finanças Holandês, presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, que não abonaram em nada o nome de Portugal, fizeram-nos recuar na apreciação desta terra que abrigou muitos dos judeus expulsos de Portugal no reinado de D. Manuel. Anos depois, a pedido de D. João IV, lá irá o Padre António Vieira solicitar a pecúnia necessária ao restabelecimento das finanças do país, tão depauperado por uma gestão filipina que não teve em conta os interesses portugueses. Na Holanda teve oportunidade de assistir ao serviço religioso do rabino Manassés ben Israel com quem terá dialogado. O país não o entusiasmou por causa do clima e do povo, embora tenha apreciado a organização social e económica. Segundo António Sérgio que dedicou muitas das suas páginas ao diplomata/missionário, afirma que Vieira, na Holanda, terá despido as suas vestes talares, substituindo-as pelo trajo de grã, o espadim à cintura, o bigode crescido, e a bela pluma às abas no chapéu.
Não há muito, era notícia na Comunicação Social, que a Jerónimo Martins, transferira para a Holanda a sua sede financeira, o que originou um coro de protestos nas mentes mais avisadas na economia do país.
País pequeno, com cerca de dezassete milhões de habitantes, e uma superfície duas vezes e meia menor que Portugal, para além dos judeus portugueses que acolheu a partir do século XVI, modernamente recebeu a docência de portugueses que bem divulgaram a cultura portuguesa: António José Saraiva, Fernando Venâncio e Rentes de Carvalho merecem a nossa atenção.
A publicação de Com os Holandeses, de J. Rentes de Carvalho, numa edição da Quetzal, abriu-nos caminho para outras leituras de autores que na Holanda viveram o tempo suficiente para escrever obras que fazem parte do nosso acervo literário, um tanto esquecido, mas que em tempos constituíram leitura obrigatória àqueles que aos livros são dados.
Ramalho Ortigão, chegado à Holanda em Agosto de 1883, num domingo, pela uma da tarde, conta através de cerca de quinhentas páginas, impressões de viagem, histórias do país, das pessoas, dos artistas, da educação e das Universidades. Num estilo simples, numa linguagem onde o encómio não lhe escapa, lembra que repetir que a Holanda é uma nação muito mais sabiamente dirigida do que Portugal, parece-lhe inútil. Sem esquecer a capacidade dos holandeses, cita o adágio “Deus fez o mundo, e os Holandeses a Holanda”. A falta de montanhas e a falte de pedras desviaram os artistas da arquitectura e da escultura, tendo-se distinguido na pintura.
Povo singular e único no mundo. Não o há mais aguerrido nem mais belicoso. Não há também menos militar. É um povo de guerra, que não poderá ser jamais um povo de parada. Pelas condições do solo que ocupa e que disputa ao mar, num combate permanente pela sua educação de luta perante o perigo de cada instante, ele é, por natureza, enérgico, destemido e valoroso.
Sobre a lapidação de diamantes, de que fornece uma informação pormenorizada, afirma que a indústria é quase exclusivamente exercida por judeus de origem portuguesa. Não podia deixar de falar das tulipas tão famosas na Holanda, afirmando que aí foram introduzidas a partir do século XVI, pelo sábio botânico Lécluse, tornado célebre pelo seu nome alatinado de Clusius, que deu a conhecer na Europa, a obra de Garcia de Orta. A flor de Clusius atingiu, pelos artifícios da cultura, uma variedade infinita de formas e cores, sendo algumas modificações pagas por preços fabulosos. Acrescenta Ramalho Ortigão que Portugal, pela natureza da sua flora, pelas condições do seu solo e pela sua situação geográfica, um dos países mais propícios para a exploração da indústria das flores.
Se Utreque, Leida, Rotterdam, Haia e Arnhem, entre outas cidades, não escapam à observação do viajante, Amsterdam, onde residiu dois meses, acaba por ser a cidade privilegiada pela sua escrita, informando, o que lhe causa grande espanto:
Os meninos desde os dez anos fumam na rua como os homens, chupando grandes charutos com a gravidade mais cómica, considerando o gaiato de Amsterdam o mais terrível de todo o mundo.
Quanto às meninas, notou que andam sós, tendo observado alguns inconvenientes adstritos a este costume.
Falando dos hábitos dos holandeses, no que diz respeito aos seus gastos, afirma que ninguém despende um soldo mal gasto, ninguém dissipa, dando como exemplo a mulher de Rembrant que usando jóias em demasia, foi advertida pelas autoridades competentes para que cessasse de escandalizar pelo luxo, a gente honrada de Amsterdam. O próprio Rembrant que reunia a peso de oiro uma das mais belas colecções de arte, vivia tão sobriamente, que nunca almoçava mais que um arenque salgado, um pouco de queijo e um pedaço de pão. Voltaire dizia de Amsterdam, que entre quinhentos mil homens que a habitam não há um ocioso, um pobre, nem um peralvilho nem um insolente, pelo que o dinheiro abunda, a tal ponto que em 1642, a rainha de Inglaterra vai pessoalmente à Holanda empenhar as jóias da coroa. Descartes em 1618 alista-se como voluntário nas tropas de Nassau, tendo adoptado a Holanda como segunda pátria, escreve a Jean Louis de Balzac: “Nesta grande cidade não há ninguém, com excepção de mim, que não se ocupe do trabalho mercantil”.
Manuel Teixeira Gomes, sétimo presidente da República, entre 1923-25, que antes de exercer cargos públicos, correu parte da Europa e o norte de África, escreveu no seu exílio do Bougie, em 1934, um livro em que conta muito das suas viagens, onde a lubricidade, a luxúria e o epicurismo têm um papel importante. De Novelas Eróticas, com 1.ª Edição em 1935, extraímos a novela Deus ex machina. Lembra o autor que passou o Inverno de 1890, quase todo na Holanda, com temperaturas de 25 a 30 graus centígrados de frio (sic). Os canais gelavam, não sendo difícil encontrar quem não levasse consigo um par de patins, o mesmo sucedendo ao autor que se tornou um exímio patinador. Amsterdam era a cidade de Manuel Teixeira Gomes. Aí residiu e aí encontrou a encantadora Camila, uma jovem judia, de dezassete anos, de educação literária relativamente esmerada, mas de carácter indisciplinado, génio impulsivo, caprichosa e fantástica.
Com a perspectiva de um casamento e a paixão dominando a racionalidade de um homem que chega à mais alta magistratura do país na condição de pai solteiro, Manuel Teixeira Gomes envolve-se com Camila, contrariando conselhos de amigos e enfrentando a oposição tenaz dos pais da jovem. Furtando-se à alçada dos progenitores, Camila e Teixeira Gomes ensaiam compromissos amorosos em hotel de Dordrecht, onde não faltam promessas de amor eterno. Uma história contada em cerca de oitenta páginas, sem final feliz, não faltando o arrependimento da candidata a noiva, a intervenção da polícia e a expulsão do noivo, da Holanda. Uma novela a roçar os cânones policiais. Com algo de leviandade que caracteriza o autor, termina a novela de forma positiva, como se fosse mais uma etapa da sua carreira de D. Juan
Ainda pensei em segui-la, mas para quê? Além de tudo o mais eu andava então absorvido por outros amores…
Com os Holandeses de J. Rentes de Carvalho volvemo-nos à Holanda actual, demonstrativa de um país onde o lucro domina a actividade de um povo pequeno que não recua perante a adversidade e que enfrentando um clima de algum modo inóspito, lidera um mercado onde pontificam empresas como a Shell, Philips, Unilever e a rainha Juliana era até há pouco a mais rica do mundo.
Para quem faz da escrita um modo privilegiado da sua existência e tendo vivido na Holanda desde 1956, onde se licenciou e foi docente de Literatura Portuguesa entre 1964 e 1985, muitas seriam as razões para lembrar tempos passados, impressões de vida, comentários, descrições de costumes, agora que a idade o liberta de possíveis constrangimentos passados em terra de adopção.
Cerca de 160 páginas, começando por alertar o leitor para uma frase que traduzida para português significa “à maneira do comércio”. Com efeito, das páginas lidas, ressalta o pragmatismo das gentes holandesas, onde exemplos citados e passados com o autor pouco abonam em favor da sua generosidade, conquanto escreva que não há erro em afirmar que na Holanda a religião e o auxílio aos países subdesenvolvidos se encontram intimamente ligados. Na sua opinião, cada holandês alberga “profundamente ancorado um sentimento missionário, o que por vezes torna o seu trato menos agradável. O holandês deseja melhorar a sorte do seu semelhante, e que não é por acaso que as suas associações religiosas, extremamente eficazes, modelos de organização, se encontram na vanguarda desse auxílio”.
Com muitos dados reportados a 1971, afirma o autor que na Holanda não há pobres, sendo um país desproporcionadamente rico, contente de o ser, não quer ser potência, nem dominar. O holandês, em geral, é grande, construído para os trabalhos de peso e fôlego, transpirando força física, no entanto, no início do livro, e no princípio da sua chegada à Holanda, os colegas afirmavam que as holandesas se dividiam em duas categorias:
– as com quem se tinha ido para a cama
– as que estavam para ir
– os holandeses pertenciam a uma única categoria – a dos bananas
– o país, uma maçada. A comida, um nojo
Na família a força dominante parece ser o egoísmo. Falta de carinho e ternura, como se fossem sentimentos vergonhosos. São ingénuos e gananciosos, sabidos nas manhas de negociar, por vezes uma agudeza que assusta, quando se trata de recolher um benefício material. Pouco colaborador com a escola. Não quer ver, nem quer saber. Já chegam as aflições do trabalho, a vida que leva, os problemas da existência e das maneiras de adorar a Deus, a política, a televisão, o jornal, sendo as crianças de uma agressividade, falta de educação, de normas e valores que surpreendem.
Acerca de Amsterdam, não querendo falar da sua beleza, vai descrevendo alguns aspectos que mais o impressionam, confessando sentir uma dívida de gratidão para com a cidade, ao mesmo tempo que se considera como filho. Nunca se sentiu repelido como em Paris, Lisboa, São Paulo e tantas outras cidades. Pela curiosidade que nos despertou, lembra que os seus moradores têm o hábito de deixar as cortinas abertas, oferecendo os interiores domésticos aos olhos devassadores de quem passa. Quanto às raparigas, a sua beleza não lhe passa despercebida. Muito haveria que contar, salientando que nas ruas pobres, a beleza desabrocha com mais facilidade. A imprensa, a religião, a revolução sexual, a televisão que raramente transmite a inauguração de uma obra pública, a literatura e o sistema escolar são temas abordados pelo autor, dando conta de práticas e costumes muito diferentes dos nossos.
O holandês e a bicicleta. As maravilhas de equilíbrio e as acrobacias não escapam à utilização ao bebé ou do quase centenário, à matrona pesada ou à mocinha grácil, ao estudante cabeludo, ao burguês encorpado, enfim, segundo o autor/observador “nenhuma descrição poderá dar ideia da sua virtuosidade nem da fenomenal ligeireza com que elas se movimentam”. Quanto ao automóvel, o contraste. “Outra loiça!!!”. Os afagos e as precauções nos carros, contrastam com o desmazelo com as bicicletas.
Um livro escrito com alguma acrimónia e distanciamento do país que o acolheu e que escolheu para viver. Passaram 60 anos, ainda dominado pela saudade da terra e dos seus, afirma sem receio: “eu gosto da Holanda. Não sou insensível ao arrumo, à eficiência, aos direitos, à correcção, às certezas, confortos e seguranças que ela ma oferece”
Ou ainda, “eu vivo aqui, agasalhado, confortável, com salário e seguros, razão número um para não me afligir nem agitar tanto”
E nós, que lemos o livro, e um dia nos deslocámos ao país das tulipas, convidamo-lo a ler uma obra bem escrita, e bem estruturada que, embora reportada a 1971, é produto de quem viu, ouviu, sabe e viveu.

Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico
 

Falando de… Consolação às tribulações de Israel, de Samuel Usque

Há leituras que decorrem de acordo com a oportunidade. Acontecimentos, notícias e celebrações conduzem-nos, muitas vezes, aos livros numa tentativa de consolidação de informações soltas chegadas até nós.
Falar de judeus tem sido uma constante neste ano, a aproximar-se do seu fim.
Samuel Usque foi uma leitura adiada por muito tempo. Edições sobre a obra do escritor escasseiam no mercado, nomeadamente nos alfarrabistas. Socorremo-nos de uma edição da Fundação Calouste Gulbenkian, de 1985, em dois volumes, e de outra em três volumes acopulados, impressos na casa de Francisco Amado, em Coimbra, de 6 de Janeiro de 1906, a 30 de Outubro de 1907.
Pouco se sabe de Samuel Usque. De ascendentes judeus de origem espanhola, terá nascido em Lisboa, depois de 1492, data da expulsão dos judeus de Castela, pelos reis católicos, Fernando e Isabel. Segundo Mendes dos Remédios, que prefacia e revê a edição de França Amado, a sua existência deve ter passado, como a de muitos judeus instruídos nos finais do século XV, em Portugal, entre o ensino e o estudo.
Com primeira edição em Ferrara, em caracteres góticos, na tipografia do irmão Abraão Usque em 1553, terá uma segunda edição em Amsterdam em 1599, em caracteres redondos. O livro inicia-se com uma dedicatória à Ilustríssima Senhora Dona Gracia Nasci, a quem deseja por obras, escritos e feitos, satisfazer e mostrar-se em parte, grato das muitas mercês que da sua larga mão tem recebido, “como acostumada de fazer mercês benignamente”.
No Prólogo, o autor justifica a razão de ter escrito o livro em Português, porque sendo o seu principal intento falar com Portugueses e representando a memória deste seu desterro, era desconveniente (sic) fugir da língua em que mamou e buscar outra para falar aos seus naturais.
Constituído por três diálogos, tendo como interlocutores três pastores, segundo a edição da Gulbenkian, transformados em interlocutores na edição de França Amado, constroem um “Diálogo pastoril sobre coisas da sagrada escritura”. São eles, Jacob, com o anagrama de Yacob, simbolizando, segundo o autor, o povo judeu que pela sua boca se lamenta dos males que através dos tempos tem sofrido. Nahum e Zacharias, com os nomes de Numeo e Zicareo, procuram consolar Yacob representando-lhe o destino providencial do povo hebreu e sua missão na terra até à consecução da felicidade que Deus lhe tem reservado, segundo Mendes dos Remédios.
O diálogo primeiro, à semelhança do que acontece com a Menina e Moça, publicado, também, em Ferrara, em 1554, apresenta-se num quadro bucólico, de uma vida apaziguada em contacto com a natureza, abençoada por Deus. Actividades venatórias porão em causa este clima edénico, provocando a degradação do ambiente, pretexto para as tribulações que conduzirão ao lamento de Yacob e à dilatação do espaço a territórios onde os filhos de Israel se instalarão – Ásia, África e Europa, sendo esta o “inferno na terra”.
Tribulações, também, devidas ao comportamento do povo israelita, conduzirão à guerra, à idolatria, ao homicídio, ao cativeiro. A implantação da Realeza, com o rei a querer assemelhar-se a outras gentes, que em lugar de se dedicarem ao seu povo, são causadores de guerra, resultado da acção punitiva de Deus.
Com a vitória de Nabucodonosor e a consequente queda e cativeiro de Israel, inicia-se um período atribulado que, depois de liberto, e mercê de uma transgressão sistemática, conduz o povo de Israel a tempos de sofrimento e de dispersão.
Desvios à conduta moral e religiosa, agravados com a diáspora, são lições a reter no presente para correcção de uma prática que não se deve repetir. Citando Sócrates no Prólogo “Aos senhores do desterro de Portugal” a quem apoda de espelho e norte por onde se guiaram não somente os atenienses e inventores de toda a doutrina, mas o resto da gentilidade possuidora de todas as boas artes, afirma Samuel Usque:
       Vendo-se as pessoas em fadigas cotejassem os males que atrás ficavam com os
   presentes e facilmente lhe achariam consolação.
Confrontando o passado com o presente, desvalorizando o momento actual, não esquece as vicissitudes por que passou o povo judeu nos diferentes países, como Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Flandres e Portugal, onde não é esquecida a matança de 1506. A natureza é o lugar conveniente para chorar seus males e subir seus gemidos ao derradeiro céu. São seus interlocutores as árvores, as mansas águas, dispostas a ouvir, a quem pede que compartilhem as dores das suas lástimas. Numeo e Zicareo tentam animar Yacob, convidando-o a ir com eles para junto de um ribeiro onde lavará seus olhos, tão húmidos de chorar.
O diálogo terceiro elenca o conjunto de países onde os judeus foram vítimas de desventuras, depois de terem sido sacrificados pelos Romanos, até à sua entrada em Portugal em 1492 e acolhidos por D. João II, sendo cativos e deportados para a Ilha de São Tomé, onde os meninos foram comidos por lagartos. Depois foi D. Manuel quem mandou apregoar que os judeus se fizessem cristãos ou saíssem de Portugal num curto prazo. D. João III e a Inquisição não deixam de ser lembrados nas tribulações dos judeus, até à sua expulsão em 1531 para Espanha, Inglaterra e França, onde são mal recebidos. Numeo e Zicareo irão apontar a consolação que restará ao povo de Israel, depois de todas as tribulações por que passaram.
Antes da última fala da personagem Ycabo, o livro termina prevendo com satisfação o fim próximo das tribulações de Israel, clamando por vingança contra os seus inimigos, apelando à fé e à esperança.
Escrito por um judeu, o livro tem um carácter apologético, defendendo, naturalmente, uma causa por um indivíduo que na diáspora estava longe de sofrer quaisquer represálias, não receando apelidar os Ingleses , de maliciosos “quasi bárbaros Portugueses”.
A extrema raridade do livro deve-se ao facto de ter pertencido ao Index proibitório e principalmente expurgatório, de Madrid, de 1640. Encontra-se em Portugal um exemplar na Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa, que pertenceu a D. Manuel II, em excelente estado de conservação, numa encadernação antiga de valor artístico não muito elevado, segundo escreveu o Professor Pina Martins, existindo ainda uma segunda edição na Biblioteca Municipal de Viseu. Confrontando o texto de Mendes dos Remédios com o da edição da Fundação Calouste Gulbenkian, que apresenta a edição fac-similada da primeira publicação, é possível verificar que faltam na de Mendes dos Remédios os sinais calderónicos que assinalam os capítulos e parágrafos. Para quem não possui grande destreza em paleografia, é mais fácil a leitura do texto publicado no princípio do século passado, trabalhado por Mendes dos Remédios.
Tal como o livro que tentámos descrever, é possível afirmar que os manuscritos copiados e decorados em Lisboa, assim como os incunábulos editados na mesma cidade,  em Faro e em Leiria, na segunda metade do século XV, a partir de 1487, são na sua quase totalidade dedicados a temas religiosos. Alguns redigidos em hebraico, tiveram grande importância na formação de muitos judeus portugueses.
Livro avançado, em relação ao seu tempo, escrito por um homem fustigado por uma perseguição que vai lamentando, mas cujo fim augura.
Um hino à esperança, num mundo onde as injustiças tinham lugar. O tempo presente marcado por erros do passado. Um exame de consciência na procura da correcção e da remissão…

Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico        
 

Falando de… Férias

Lembrar o 25 de Abril é afirmar que Portugal virou uma página na sua história. Dizimada a ditadura, nasceu uma democracia, inicialmente, titubeante que alterou a vida de uma população clamando pela liberdade.
São palavras gastas que todos conhecemos e que vamos transmitindo aos vindouros.
Com a democracia, novos horizontes se abriram nas nossas vidas. Hábitos diferentes fomos conquistando. A escola proletarizou-se. O ensino ao alcance de todos. A cultura é para quem a quer. Bibliotecas, muitas, estão acessíveis para quem as deseja utilizar.
Férias para quem trabalha. Não há profissional que não as ambicione e as concretize. Uns por cá, outros repartem-se por terras nunca imaginadas.
O país enche-se de turistas, outrora só considerados aqueles que possuíam grandes meios. Hoje é ver praias pejadas de gente, onde o corpo ao léu, uns calções e uma roupa simples, torna o país mais democrático. Ricos e pobres misturam-se em suaves mergulhos nas águas atlânticas. Nada mais democrático que uma praia cheia de homens, mulheres e crianças banhando-se em piscinas, no mar ou no rio, esquecendo que o país, apesar de tudo, ainda vive num ambiente de ancestralidade. As formas de tratamento ainda são o estigma de classes sociais, que os partidos teimam em desconsiderar.
Falando de férias, não há quem não deseje o Algarve, ou não o escolha por destino. É o nosso desígnio. Para muitos, ir de férias é ir ao Algarve. E aí percorrê-lo todo, gozá-lo com avidez como se fosse o último dia da vida. Não há que escolher. Tudo é bom, belo, bonito, rico. O mar e o céu proporcionam um quadro edénico. Tudo fica na retina.
Olhão é também Algarve. Do mais puro e do melhor quilate. O peixe e o marisco devoram-nos o olhar. Mais adiante, as ilhas de ondas calmas, de lindas casas, de restaurantes que apaziguam a nossa ânsia de apreciadores habituados a outras iguarias. Difícil é dominar a frugalidade. As carnes que fumegam em fumeiros diferentes dos que antigamente existiam no Algarve, ficam para outros repastos. Esquecemo-nos dos chouriços, das alheiras, das postas mirandesas e com avidez, sentados, na Ilha do Farol, vamos saboreando sardinhas e tudo o que possa sugerir sabor a mar.
De Olhão à Ilha do Farol, num barco lotado de gente ansiosa pelo mar calmo, são quase quarenta e cinco minutos. Bilhetes baratos para o bolso do veraneante. A ilha faz lembrar as ilhas francesas diante de La Rochelle. As casas limpas, pequenas, primeira ou segunda habitação, recordam o aconchego e o carinho de quem à custa de sacrifício tornam o seu espaço uma espécie de paraíso terreal. E nós, habituados à leitura de jornais, lamentamos, repudiamos e censuramos aqueles que do Governo, alegando o ambiente, teimam em destruir um património inédito, ímpar e singular, baseados em critérios livrescos, que poucos conhecem.
Depois, a Televisão a fazer concursos de aldeias típicas! As ilhas são o que de mais genuíno existe. Deixem viver os que são felizes na pequenez/grandeza dos seus lares.
Depois, Olhão é terra de todos os mariscos. Das festas que não cansam e onde a alegria abunda, do Caíque que em 1808 zarpou a caminho do Brasil. Lá está uma réplica a recordar às gerações visitantes que a terra é grande e enorme. Da Restauração a denominou D. João VI. Para o Brasil demos a notícia a amigo nosso e de Portugal. Magistrado que um dia cá virá.
E de restauração é a terra modelada. Lindo hotel na orla marítima. Festival de marisco a fazer as honras da cidade, vila de antigamente, vai-se alindando. E nós veraneantes de um Portugal distante, prometemos que voltaremos a degustar aquele marisco que a empregada afirmou ser da costa, e terminar o repasto com uns figos, enxários de seu nome, ou enxários, conforme queiram, mas que os empregados, não sendo enciclopédicos, desconheciam. Não faz mal.
Até para o ano. Num Olhão que desejamos próspero, numa Ria Formosa que alimente o olhar e o coração dos que por lá se aproximam, ou num outro recanto deste país à beira mar plantado, recordando Tomaz Ribeiro.
E para memória futura, umas palavras com sabor a maresia, para mais tarde recordar!

Não foi adoptado o Acordo Ortográfico em vigor
 

Falando de … A Mulher, Adelaide Cabete

Compulsando a literatura portuguesa, vemo-la pejada de textos onde a mulher ocupa lugar cimeiro. De produção maioritariamente masculina que no amor busca o refrigério e a sua completude, é natural que a mulher seja uma procura constante. Cantigas de Amigo e de Amor hiperbolizam a donzela. Se umas a retratam como um ser que sofre e é saudoso pelo amigo que tarda em chegar porque está no “fossado” com el-rei, noutras situações ela, idolatrada e altiva, é a razão de ser de um amador a quem a “coita de amor” não o favoreceu e pede a Deus, em alternativa, que lhe dê a morte.
E graças ao amor e à mulher, foi a língua portuguesa crescendo, até D. Dinis a emancipar, dando-lhe “carta de alforria”. Estávamos no século XIII e a Universidade chegara a Portugal denominada Estudo Geral, nessa época. O país consolidara as suas fronteiras e Alcanizes servia de palco à confirmação do território.
Muito fizeram os nossos antepassados. Homens intrépidos cujos nomes povoam os nossos compêndios aparecem na ribalta, onde se acoitam mulheres que no remanso dos lares educam filhos que continuam a construir uma história, maioritariamente masculina.
Em tempos de descobrimentos, escrita de costumes, a caminho da centralização do poder, onde os homens, inevitavelmente, têm uma parte de leão, não cabe à mulher um quinhão no alargamento do território. O Auto da Índia ou a Farsa de Inês Pereira, entre outras formas teatrais, são paradigma da fraca representação social da mulher no mundo dos homens.
Camões, no episódio da despedida de Belém, lembra as lágrimas das mulheres,  o papel na construção do lar e na felicidade caseira.
Dom Francisco Manuel de Melo, conquistada a soberania, no século XVII, instado a dar conselhos a um pretendente ao casamento, escreve em Carta de Guia de Casados, palavras nada abonatórias em favor da mulher, ele que, provavelmente, terá sido vítima de amores femininos, em favor de D. João IV, seu rival e subordinante em tempos de guerra em busca da paz com Castela. Um livro de carácter misógino, onde se podem ler “pérolas” deste jaez seria bom ocupar a mulher no governo doméstico, e é bom, e é necessário, não só para que ela viva ocupada, se não para que o marido tenha menos trabalho. Ressalve-se, porém, esta afirmação, as mulheres são como as pedras preciosas, cujo valor cresce ou mingua, segundo a estimação que delas fazemos. Em forma de aviso para os incautos, Os que casam com mulheres maiores no ser, no saber e no ter estão a grandíssimo perigo.
Em governação do Marquês de Pombal, com a Real Mesa Censória a espreitar, Luís António Verney em terras transalpinas, escreve o Verdadeiro Método de Estudar, obra epistolográfica, que servirá de catecismo numa época de luzes, com Portugal à procura do progresso e de novas mentalidades, com os jesuítas a correrem apressados para o exílio em 1759.
Frade barbadinho, ligado ao ascetismo clerical, não deixa de contemplar a sua atenção sobre a educação das mulheres a que dedica grande parte do seu estudo na carta décima-sexta, talvez inspirado no Tratado de Educação das Raparigas, de Fénelon (1651-1715). Afirma Verney:
Quanto à necessidade, eu acho-a grande que as mulheres estudem. Elas, principalmente as mães de família, são as nossas mestras nos primeiros anos da nossa vida: elas nos ensinam a língua; elas nos dão as primeiras ideias das coisas. E que coisa boa nos hão-de ensinar, se elas não sabem o que dizem? (…) Além disso, elas governam a casa, e a direcção do económico fica na esfera da sua jurisdição. E que coisa boa pode fazer uma mulher que não tem alguma ideia da economia.
Não tendo a pretensão de esgotar o tema, vale a pena citar Alexandre Herculano que em Eurico, o Presbítero, publicado pela primeira vez em 1843 na Revista Universal Lisbonense e no Panorama e em livro, em 1844, escrevia no preâmbulo:
Dai às paixões todo o ardor que puderdes, aos prazeres mil vezes mais intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertei o mundo em paraíso, mas tirai dele a mulher, e o mundo será um erro melancólico, os deleites serão apenas o prelúdio do tédio.
Eça de Queirós, num outro registo e num outro ciclo, anos mais tarde, aberta a porta do realismo, nos livros que são do domínio público, Os Maias, O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro, A Relíquia, A Tragédia da Rua das Flores e Contos, é possível verificar que a mulher é um ser ostracizado, pecaminoso, adúltero, onde as virtudes não abundam.
Em colaboração com Ramalho Ortigão escreve As Farpas, crítica impiedosa à sociedade da época. Motivos profissionais obrigam-no a abandonar o projecto, dando origem a Uma Campanha Alegre, onde afirma que peleja contra a tolice, reduzindo a mulher a “caçadora” de marido, é possível ler o que escreve em Junho de 1871:
A caça ao marido é uma instituição. Levam-se as meninas ao teatro, aos bailes, aos passeios, para as mostrar, para se  lançar à busca. Faz-se com a maior simplicidade esse acto simplesmente monstruoso. Para se imporem à atenção, as meninas têm as toilettes ruidosas, os penteados fantásticos, as árias ao piano. A sua mira é o casamento rico. Gostam do luxo, da boa mesa, das salas estofadas, um marido rico realizaria esses ideais. Mas a maior parte das vezes, o sonho cai no lajedo.
Insistindo na desvalorização da mulher, servindo-se da mulher lisboeta, como paradigma, lembra Eça de Queirós, citando Michelet:
A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães. O homem é profundamente  filho da mulher.
Acresecentando:
Diz-me a mãe que tiveste, dir-te-ei o destino que terás.
Neste currente calmo que a temperatura nos proporciona, uma saída do habitat é sempre motivo para uma apreciação que ultrapassa as fronteiras do quotidiano e nos transporta para lá do olhar.
Elvas e a sua monumentalidade arquitectónica, praticamente ímpar no país, colocando-a como Património Mundial da Unesco em 2012, leva-nos a pensar nos seus feitos, nas suas gentes e em tutti quanti. Se o Hissope é marca de água em igreja que já foi Sé, Adelaide Cabete, ilustre elvense, é nome a reter, conforme afirma Maria José Rijo, em artigo publicado no jornal Linhas de Elvas em 20 de Outubro de 1995. De Elvas muito mais há a dizer, para além das vinte igrejas e sete conventos, conforme prospecto divulgado para turista ler e ver.
Adelaide Cabete, também, já viera a Bragança pela mão do Grupo de Teatro dos Estudantes da Escola Secundária Abade de Baçal, em Abril de 2006, orientado por Paula Romão, tendo Lídia Jorge, a autora de A Maçon, assistido à representação.
E a Elvas regressamos. Adelaide Cabete aí nasceu em 1867. Chamava-se Adelaide de Jesus. Compunha uma prole de cinco filhos, dos quais não sobrevive Jerónimo, o primogénito, pai de Arnaldo Brazão (1890-1968), que será advogado republicano, acompanhante da tia em várias lutas em que esteve envolvida, incluindo a sua partida para Angola em 1929, e onde permanece até 1934. Lídia Jorge ficcionará a viagem, publicando A Maçon, em 1997, editada pela Sociedade Portuguesa de Autores e Publicações Dom Quixote.
Isabel Lousada, de quem extraímos muita da informação contida neste texto, retrata-a como alta, morena, desembaraçada, com lindos olhos pretos e uma voz fresca..
Com a morte do pai, Adelaide, Adelaidinha, como lhe chamavam, é obrigada a trabalhar, como forma de ajudar a mãe, viúva com quatro filhos. Empregada como criada em casas abastadas, em montes alentejanos, fará a quarta classe com 18 anos, quando servia em casa de uma família de Elvas.
Em 10 de Fevereiro de 1886, casa com Manuel Ramos Fernandes Cabete, sargento num quartel em Elvas, havendo uma diferença de idade de dezoito anos. Adelaide aguarda a passagem do seu décimo nono aniversário, a 25 de Janeiro, para celebrar o casamento. Sendo menor, necessitou da autorização da mãe, Balbina Brazão, que não sabia assinar. À data do casamento assina pela última vez com o nome de solteira, adoptando posteriormente o apelido do marido, Cabete. Foi seu padrinho de casamento, Francisco Inácio Xavier da Silva, alentejano, por quem durante toda a vida mostrará sentida gratidão.
Com a colaboração do marido que se dispôs a vender as poucas terras que possuía, para elevar o nível cultural de sua mulher, matricula-se em Outubro de 1889, no Liceu Nacional de Lisboa, tendo aí o apoio continuado de Manuel Cabete. No ano lectivo de 1894/95, Adelaide conclui o curso dos Liceus, tendo o apoio do amarido que, ainda, colaborava nas tarefas domésticas.
Residindo em Lisboa e sempre incentivada pelo marido, matriculou-se em 1896 na Escola Médico-Cirúrgica, instituição onde conclui o curso em 1900, com tese defendida a 26 de Julho, intitulada Protecção às Mulheres grávidas pobres como meio de promover o desenvolvimento físico das novas gerações, editado no mesmo ano.
De notar, que em Portugal, desde 1870, graças ao empenho de Magalhães Lima, estavam abertas as portas da Faculdade de Medicina às mulheres. A saúde feminina atribuída às mulheres. O pudor volatilizou-se num Portugal a abrir-se para a Ciência.
Segundo Isabel Lousada, o padrinho, Francisco Inácio Xavier da Silva, ter-lhe-á deixado uma herança, sob condição de ser mantido o anonimato, para custear os trabalhos conducentes à construção de uma maternidade de raiz em Lisboa, o que efectivamente veio a acontecer, já depois do falecimento do médico obstreta, Alfredo da Costa (1859-1910), que fora seu professor.
Não esquecendo as suas origens e dando conta das dificuldades por que passavam as mulheres portuguesas, praticando, muitas vezes, o infanticídio, face ao abandono das mães solteiras a braços com gravidez não desejada ou incomportável. Adelaide Cabete faz sessões públicas de esclarecimento sobre hábitos alimentares, pedagogia e puericultura. A sua competência profissional e científica é demostrada desde muito cedo, sendo respeitada e credibilizada nas posições que toma enquanto médica, feminista e propagandista da República.
Dotada de um espírito alocêntrico, tendo sempre em vista o outro, nomeadamente os seus familiares, colabora na formação da irmã, Maria das Dores Damas Brazão, dentista pela Escola Médico-cirúrgica de Lisboa, com quem manteve consultório em Lisboa, na Rua do Ouro, nº.266-2º-Esq. Igualmente protegeu seu sobrinho Arnaldo Brazão que atingiu o posto de capitão do exército português e concluiu o curso de Direito em 1920. Foi professor liceal e da Escola Superior Colonial. Ocupando cargos de elevada importância, tem colaboração dispersa em vários jornais, sendo director do jornal A Fronteira, de Elvas, a partir do nº. 550, de 31 de Maio de 1950.
Adelaide Cabete, autora de uma vasta bibliografia, na esteira do que tinha sido a sua tese de licenciatura, e das suas preocupações, que se compaginam com os cuidados básicos de saúde, a defesa dos direitos das mulheres grávidas, os problemas da amamentação e da nutrição, a luta contra o alcoolismo iniciada nas escolas, a higiene e a puericultura, uma das formas de combater a mortalidade infantil.
Em 1907, Adelaide Cabete é iniciada por comunicação do grão-mestre Sebastião  Magalhães Lima na Instituição Maçónica Grande Oriente Lusitano Unido, fundando a  Loja Humanidade, com o nome simbólico de Louise Michel. De entre outras fundadoras constará Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher a votar para a Assembleia Nacional em 1911, e Maria Veleda. A sua participação como activista não mais pára, tendo assistido e colaborado em congressos  no país e no estrangeiro, bem como em jornais onde o feminismo é posto em relevo.
Muitas revistas, da época, põem  em destaque a figura da cidadã, médica Dra. Adelaide Cabete, que em 1910 confecciona com Carolina Beatriz Ângelo, 20 bandeiras verdes-rubras no prazo de 48 horas, conforme notícias de um jornal coevo.
Em 1912, é admitida como médica e professora da disciplina de Higiene e Puericultura, até 1929, no Instituto Feminino de Educação e Trabalho, em Odivelas. Em 1914, funda o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, sendo reeleita sucessivamente Presidente até à década de 30, onde pugna pela emancipação social da mulher, que deseja ver liberta de preconceitos.
Durante a sua permanência em Angola, prestou apoio a obras de benemerência para os indígenas, em particular, advogando a favor da Gota de Leite, das crianças e das maternidades, tendo pedido ao Governador- Geral para ser criada uma prisão condigna para mulheres e crianças, na Fortaleza de São Pedro da Barra, denunciando as condições miseráveis e degradantes a que estavam sujeitas.
Em 1934, Adelaide Cabete e o sobrinho regressam a Lisboa, numa altura em que são proibidas as sociedades secretas e os partidos políticos. De saúde fragilizada, tendo sido atingida por uma arma de fogo, disparada fortuitamente. Em Lisboa, vítima de uma queda, parte uma perna, obrigando-a a internamento.
Falece em Lisboa, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, a 19 de Setembro de 1935, com 68 anos, tendo expressado a vontade de um enterro modesto, sendo amortalhada com a sua bata de médica.
Em 1995 recebe, a título póstumo, a medalha de Grande Oficial da Ordem da Liberdade, a 10 de Junho.

Não foi adoptado o Acordo Ortográfico em vigor