João Cabrita

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Tratado de Confisson

J ulgou-se durante muito tempo que o primeiro livro impresso em português era Vita Christi, em caracteres góticos, com elementos decorativos e iconográficos em gravuras de madeira, cuja terceira parte apareceu a 20 de Novembro de 1495 no reinado de D. Manuel I, havendo ainda a considerar o Pentateuco, impresso em Faro, em caracteres hebraicos em 1487, além do Breviário Bracarense, de 1494, escrito em latim. Antes de 1965, era convicção generalizada que os primeiros livros editados em Portugal teriam sido os que atrás citámos, contudo, até hoje e até provas em contrário, o livro mais antigo impresso em português, em Portugal, terá sido o Tratado de Confisson, em Chaves no dia 8 de Agosto de 1489, conforme indicação no cólofon (dizeres com que os primitivos tipógrafos indicavam, no final das obras, a data e o local da impressão). O facto de ter sido impresso em Chaves e não noutro local de maior importância deve-se à circunstância de, segundo o Professor Pina Martins (1920-2010), o mais ilustre estudioso da cultura portuguesa do Renascimento, a localidade se encontrar na rota de peregrinação de Santiago de Compostela e se situar nas proximidades das cidades espanholas de Salamanca e Zamora, onde a tipografia já existia e de onde irradiava uma cultura que atingiu algumas terras de Portugal, principalmente as que se situavam perto da fronteira. A indicação no cólofon da origem parece não suscitar dúvidas quanto ao local de impressão, embora o livro possa ter sido impresso em Espanha por um mecenas, desejo de ver associado àquela empresa o nome da sua terra portuguesa. Além disso, a utilização da língua portuguesa é já uma prova de que a obra deve ter sido impressa por tipógrafos nacionais, ou ainda, a hipótese de o livro ter sido impresso na própria vila flaviense por um tipógrafo itinerante vindo de Salamanca ou de Zamora. A hipótese mais plausível é a de que o livro tenha sido impresso em Chaves, numa tipografia de limitados recursos, por um impressor de Chaves que tenha adquirido em Zamora os restos de material tipográfico dispensado por António de Centenera, grande industrial de tipografia que, entre 1482 e 1492, exerceu a sua actividade como impressor. O Tratado de Confisson está dividido em três cadernos, com uma mancha tipográfica a duas colunas de trinta e oito linhas por coluna, com espaços brancos para as letras capitais, indicadas por minúsculas. O exemplar descoberto em 1965 encontrava-se em discreto estado de conservação, com duas manchas de humidade na parte superior e inferior dos fólios, devendo-se as mesmas a um fungo que está progressivamente a atacar o papel, que corre sério risco de se deteriorar se não se tomarem oportunamente as indispensáveis providências. Destinar-se-ia o livro a manual de peregrinos-penitentes, uma vez que toda a peregrinação era um acto penitencial. Dirigindo-se fundamentalmente aos confessores, também se dirige, numa segunda parte, aos penitentes. A primeira parte do livro é formada por disposições gerais e particulares para uso do confessor, dirigindo-se a segunda parte, quantitativamente mais volumosa, aos penitentes. Pode-se afirmar que o Tratado de Confisson é um livro que seguindo os cânones católicos vigentes na época, é também um texto doutrinário, de carácter comportamental, de bem viver e conviver, evitando a todo o transe, situações pecaminosas que colidam com os preceitos do catolicismo. O autor procura intencionalmente suscitar um arrependimento ou contrição que não seja derivado do medo das pessoas, mas do profundo e íntimo desgosto por haverem cometido uma ofensa gravíssima contra quem não hesitou oferecer a sua vida por cada homem e por todos os homens. A segunda parte é essencialmente formada por dois capítulos, onde são reconhecidos todos os desvios pecaminosos à lei divina estabelecida para o homem que crê, contemplando cerca de trinta páginas, num total de 61 colunas, representando mais de 50% de toda a obra. O inquérito confessional começa pelos pecados capitais e vai-se processando lentamente através do exame dos pecados segundo os estados, das violações dos mandamentos, das obras de misericórdia, terminando com a enumeração dos casos de impedimento por absolvição. São vários os temas abordados tendo em conta os comportamentos pecaminosos sujeitos a absolvição ou a condenação e por isso objecto de atenção por parte do tratadista. A primeira reflexão diz respeito à obsessão indecorosa da relação entre homem e mulher, no que respeita especificamente ao sexo, não merecendo nenhum outro pecado uma atenção tão cuidada e um estudo tão minucioso, uma reprovação espiritual tão categórica, chamando a atenção para a gravidade do acto, dentro e fora da união matrimonial, não deixando lugar a dúvidas acerca do puritanismo que grassava na época. Há, ainda, a considerar as relações sexuais entre esposos, em domingos, dias santos e na quaresma, ou em lugares sagrados, e a definição da ortodoxia da união entre marido e mulher exigindo a intenção de procriar. Outros pormenores a suscitar a curiosidade do confessor, relacionando-se com os relativos à beleza ou à fealdade da mulher a quem o penitente se uniu em pecado, ou se o fez em jejum ou depois de comer. A condenação da usura e do simples empréstimo com direito a juros por parte do prestamista; a reprovação de práticas supersticiosas e dos jogos de azar; a imposição eclesiástica do repouso dominical. Os jogos do azar são igualmente condenados sem ambiguidade. Recorrendo instantemente ao confessor, lembra que não é aconselhável os adultos dos dois sexos e os mancebos irem a romarias e andanças. O melhor meio para ser virtuoso e agradecer a Nosso Senhor é ficar muito bem-comportado na sua própria aldeia, ou na sua vila, ou na sua cidade pois romarias pelo mundo são outras tantas ocasiões de pecado. O que se condena não é o cantar bem, ou pregar bem, o ter muitos discípulos, o ter bons livros, mas a vaidade que pode nascer da consciência de actos bons. O dormir durante a oração e o pensar em condições profanas, assim como sentir o peso da missa e das longas homilias não deixa de ser reprovável. Aos pirómanos é também recomendado o “repouso” força de um ano “na terra do ultramar”; o incendiário, longe da sua terra, passará a não ser perigoso e o ultramar daquele tempo, mesmo no norte de África, não deixava de ser um exemplar correctivo. A corrupção eclesiástica é tema que não lhe escapa. O autor que deve ser um eclesiástico, coberto pelo anonimato, sublinha, por vezes, os pecados dos eclesiásticos e religiosos para os quais são cominadas penas severas. A crítica chega a atingir a comunidade dos cristãos e a própria igreja. Como se se penitenciasse, escreve: Pequei porque quando me deito na cama nem quando acordo de noite não dou graças a Deus nem me encomendo a ele, não tenho em mim boas preocupações nem bom pensamento mas torpes e desonestos e embebedado no sono como porco. Sendo um texto, onde são apontadas as debilidades do Homem, susceptíveis de serem condenadas, não deixa de elogiar o Homem, tal como fez Giovanni della Mirandola, em Discurso sobre a Dignidade do Homem, em 1486, afirmando a sua dignidade quase divina, não só por haver sido criado à imagem de Deus, mas por habitarem dentro do homem, virtudes, que só ele, entre todos os seres da Terra, possui. Convocando toda a comunidade cristã para a prática da confissão, tendo em vista a absolvição dos pecados, evitando situações pecaminosas, o Tratado de Confisson apela ao espírito de pobreza dentro da comunidade eclesiástica que deveria dar o exemplo de pobreza evangélica. A crítica da avidez, por parte dos eclesiásticos, e o escândalo pelas grandes despesas feitas nos mosteiros, quando no mundo há tantos pobres que precisam de comer, beber e vestir-se, são temas que não passam despercebidos ao autor do Tratado que se conservou no anonimato até aos nossos dias. Pina Martins está convencido de que o autor do manual terá sido um franciscano, até porque uma crítica social deste tipo encontra-se na parenética franciscana, não apenas na heterodoxa, mas também na que segue a mais rigorosa ortodoxia. Prática desta natureza teve-a Santo António de Lisboa, em sermões por si escritos, chegados até nós. O pessimismo patente no texto não é radical, inserindo-se numa linha pedagógica tendente a conduzir a comunidade temente a Deus, a boas práticas. Os diabos e as penas infernais surgem realisticamente a cada passo com ameaças para quem viola a lei do amor. A imitação de Cristo, imposta a todos os homens como imperativo de um mandamento fraterno, é garantia suficiente para a redenção do cristão arrependido que procura seguir os preceitos evangélicos. O Tratado de Confisson pretende transmitir aos confessores e aos confitentes um conjunto de práticas que purifiquem de um modo mais ou menos radical todos aqueles que seguem a religião católica transformando-os em correctos discípulos de Deus. Depois de uma fase preambular, onde são contemplados os pecados referentes à inveja, ira, avareza, luxúria e gula, para além de advertir que, primeiramente, deve ser feito o sinal da cruz, recorda, ainda, se o penitente deixou de saber o Padre Nosso e o Credo em Deus, por negligência. Seguem-se os dez mandamentos, pretexto para um conjunto de perguntas, contemplando cada um dos mandamentos, como, por exemplo: - como crê em Deus; se obrou em dia de domingo; se furtou para si mesmo; se mandou furtar; se consentiu no furto; se disse que amava alguém e não era assim; se falou coisas em vão; se cobiçou coisa que não era sua; se cobiçou mais do que lhe Deus deu; se comungou em pecado mortal; se é destruidor do que lhe Deus deu. Porque o Tratado de Confisson não visa exclusivamente os que pretendem confessar-se, mas também aqueles que têm como múnus a própria vida sacerdotal, são muitas as perguntas que lhes são dirigidas, como por exemplo: Olhou as mulheres com má intenção; olhou as coisas torpes assim em si ou em outrem; teve muito prazer em comer boas carnes ou em beber bons vinhos; teve prazer em bons cheiros; tomou com as mãos coisas desonestas e afins. Tendo o Tratado como objectivo contemplar todos os caminhos que procuram conduzir a Deus, acrescenta mais sete perguntas que se devem fazer aos religiosos, considerando, todos aqueles que praticam a religião, quer clérigos ou laicos, seguidores dos preceitos da religião: Se tomou ordens por simonia ou furtivamente por boas palavras; se errou no sacrifício ou se fez limpamente; se rezou bem suas orações; se utilizou as coisas da igreja em maus usos; se reparte com os pobres os bens que lhe Deus deu ou reparte com os seus maiores; se dá louvores a Deus pelos benefícios que lhe deu e se ouve com vontade as coisas de Deus. Vivia-se numa época em que se começa a vislumbrar alguma contestação que consistia em manifestações de desagrado lideradas por Lutero (1483-1546), que conduziriam à reforma protestante. Destarte não admira que o tratadista se preocupasse com outras áreas para além da confissão, dando a conhecer uma regra que o confessor deve ter, ao pregar a todas as pessoas: Saiba o confessor da pessoa que se lhe confessa, de que estado é, que ofício tem, para que vive; se pagou bem a Deus as dízimas e as premissas como dever; se fez alguns votos que não cumprisse; deve perguntar às mulheres, que se confessam, se fizeram ou deram algumas coisas a seus maridos ou a outros homens; deve perguntar a cada uma das pessoas se são casadas; se são casadas, há quanto tempo e se tiveram outro casamento. Tendo como objectivo contemplar uma doutrina que leve à prática toda a ritualidade cristã, não deixa de registar o texto que serve de modelo à confissão geral a ser feita por todas as pessoas, que se inicia da seguinte forma: Eu mesquinho pecador e errado, confesso-me a Deus e à Virgem Santa Maria e a todos os santos e santas da corte celestial e a vós meu pai celestial, de todos os meus pecados e maldades que eu fiz e disse(…) Recorda as catorze obras de misericórdia, dividindo-as em espirituais e corporais, havendo, ainda, a considerar, segundo o tratadista, as coisas com que a Deus apraz: Ser obediente a Deus e a seu prelado; manso com os seus companheiros, amando-os; não se irritar contra eles por nenhum motivo, ainda que não seja culpado; quando for sempre, vá rezando ou cuidando em Deus e saia de onde ouvir falar; quando ouvir dizer mal, desfaça se puder, se não retire-se; afaste-se da vista das mulheres, não repare para a sua formosura; nunca esteja ocioso, ocupe- -se sempre nalguma obra; quando lhe pedirem por caridade alguma coisa, dê sempre que tiver, e se não, dê-lhe boa resposta; em lugar de cobiçar riqueza, lembre a pobreza que prometeu a Deus; quando lhe repreenderem considere-se sempre culpado; não queira ser louvado pelo bem que fizer. O tratadista considerou, ainda, os casos em que o sacerdote não tem poder para absolver, se não houver poder do arcebispo, salvo em artigo de morte, como por exemplo: Os que dormem com virgem por força ou por engano; os que dormem com suas parentas. Ler, admirar e transmitir são tarefas que nos competem enquanto utilizadores do livro e comunicadores implícitos do que nos é proporcionado. Sem termos lido quanto Pina Martins escreveu, a nossa admiração por esta figura vem de há muito, quando demos conta da sua mestria como docente na Faculdade de Letras na Universidade de Lisboa. Ilustre investigador, possuidor da maior colecção de incunábulos do país, não era difícil chegar a um dos seus livros, cujo estudo legou à posteridade. Lê-lo é tentar reaver algo que faz parte de nós. Partimos à leitura de uma obra nascida à nossa ilharga. Em Chaves brotou o Tratado de Confisson que o Professor expandiu e apresentou no dia 19 de Dezembro de 1974, em edição diplomática, sustentando uma tese de doutoramento defendida na Sorbonne, perante um júri sob a presidência do grande sábio Marcel Bataillon. E foi através do alfarrabista de Alcobaça, Tarcísio Trindade, que em 1965, graças ao trabalho de Pina Martins, ficámos a saber que o texto mais antigo escrito em português tinha sido publicado em Chaves em 8 de Agosto de 1489. E a língua não mais parou. Afinou-se. Pluralizou-se. Tornou-se adulta e viçosa. Cresceu nas gramáticas e nos dicionários. Amadureceu nos livros, disputou-se com a castelhana e afirmou-se. Sofreu tratos de polé. Defensores não lhe faltam. Ela é nossa. A nossa língua, tal como António Ferreira (1528-1569) lembra em carta dirigida a Pero de Andrade Caminha:

Floreça, fale, cante, ouça-se e viva

A portuguesa língua, e já onde for,

senhora vá de si, soberba e altiva!

Se téqui esteve baixa, e sem louvor,

Culpa é dos que a mal exercitaram,

Esquecimento nosso, e desamor

…O Príncipe, de Maquiavel

Ao falar do livro O Príncipe, inevitavelmente se fala de Maquiavel, cuja popularidade é tal que aparece dicionarizado através do adjectivo maquiavélico, conhecido pelo aforismo “o fim justifica os meios”, expressão que nunca chegou a formular nestes termos, passando à posteridade por algo que nunca disse. Sendo O Príncipe produto do seu tempo, embora se considere ainda hoje, um texto intemporal, acaba por ser o resultado de uma vivência centrada na pessoa do autor e das circunstâncias sociais e políticas em que viveu. Nicolau Maquiavel (1469- 1527) nasceu em Florença numa altura em que a cidade e a península itálica viviam um período de grande instabilidade e turbulência. A Itália estava dividida em vários estados organizados em torno das principais cidades. Milão, Veneza, Florença, os Estados da Igreja, o reino de Nápoles e outros menores, conquanto almejassem a sua independência, estavam, constantemente, à mercê dos mais fortes Estados europeus, como a Espanha e a França. Os espanhóis dominavam o reino de Nápoles e os franceses, após intervenções armadas de Carlos VIII e Luís XII, dominavam Milão e partilharam durante algum tempo o poder em Nápoles. Desde 1434 que Florença era governada pela família Médicis. O seu regime foi interrompido em 1494 pela chegada das tropas francesas de Carlos VIII. Até 1496, Florença conhece uma espécie de república teocrática, sob a influência do pregador dominicano Savonarola. Após a queda de Savonarola (1452-1498), a república mantém-se durante mais de 16 anos, tendo o dominicano sido queimado na fogueira por ordem do papa Alexandre VI em 23 de Março de 1498. Maquiavel tem um papel importante neste teatro conturbado numa Itália que só alcançará a sua unificação por volta de 1870, graças ao esforço de homens como Garibaldi (1807- 1882). As suas missões diplomáticas junto da monarquia francesa, da Santa Sé e do império germânico, proporcionaram-lhe o conhecimento e a importância suficientes para ser alvo dos Médicis quando reconquistaram o poder em 1512, com a ajuda das tropas espanholas. Maquiavel é preso, torturado e afastado da vida política activa. Durante os 10 anos que se seguem dedicou-se a escrever, sobretudo sobre história e filosofia política, acabando por reconquistar o favor da família Médicis, voltando a participar na política activa nos dois últimos anos de vida. Numa carta datada de 10 de Dezembro de 1513, dirigida ao seu amigo Francesco Vertori dá conta da sua vida de exilado no refúgio campestre de San Casciano, afirmando que está a compor um opúsculo, De Principatibus, “onde penetro o mais profundo que consigo neste assunto, discutindo o que é um principado, que tipos de principado há, como se conquistam, como se mantêm, e porquê se perdem” por isso dedica ao Magnífico Giuliano (de Médicis), embora na dedicatória que saiu a público conste “Nicolau Maquiavel ao Magnífico Lourenço de Médicis”. Para ser mais preciso, dedicou o livro, publicado postumamente a Giuliano de Médicis que estava prestes a subir ao poder em Florença. Depois de Giuliano ter morrido, emendou a dedicatória para Lorenzo de Médicis, seu sucessor. Publicado em 1532, cinco anos após a morte de Maquiavel, redigido em toscano, acessível à maioria dos leitores, com vinte e seis capítulos introduzidos por um título em latim, cedo é alvo de polémica, sendo condenado pelo Papa Clemente VIII (1536-1605) e colocado no índice dos livros proibidos em 1559. Maquiavel terá escrito O Príncipe com dois objectivos: Influenciar os destinos de Florença e da Itália, ameaçada pelas divisões internas e pelos perigos externos representados pela Espanha e pela França; conseguir recuperar uma posição de conselheiro junto do príncipe, então no poder da cidade de Florença. Da leitura de O Príncipe, extrai-se uma ideia fundamental que se compatibiliza com os manuais didácticos que ensinam os monarcas a administrar o território sob o seu poder, sendo a filosofia de Maquiavel fundamentalmente sobre o poder. De entre os muitos leitores que apreciaram o livro, quer louvando-o ou considerando-o um manual para tiranos, é possível enumerar Frederico, o Grande, Luís XIV, Napoleão, Bismarck e Hitler. Escrito a partir do que os homens fazem e não do que devem fazer, privilegiando sempre o poder e o modo como proceder com esse poder que lhe é proporcionado, poderíamos citar como exemplo o capítulo XIV que tem por título “Do que respeita ao Príncipe no tocante a guerra”, onde Maquivel escreve: Portanto um príncipe não deve ter outro objectivo nem outro pensamento, nem tomar a peito outra matéria, que não seja a arte da guerra e a organização e a disciplina militares, pois trata-se da única arte que pertence aos que comandam e têm grande poder que mantêm não só os que de estirpe são príncipes, como também, não raro, permite alcançar tal dignidade a homens de condição simples. Em contrapartida, verifica-se que os príncipes perdem os seus estados quando se dedicam mais às voluptuosidades do que às armas. (…) O príncipe que não é entendido na arte da guerra, além de outros inconvenientes, jamais será estimado pelos seus soldados ou poderá fiar-se neles. (…) Por outro lado, em vez de estar ocioso na paz deverá aproveitar esse tempo para acumular um capital que lhe possa valer na adversidade, a fim de que, quando a fortuna lhe virar as costas, esteja apto a resistir. Tendo sempre como prioritário a questão do poder, Maquiavel afirma que a religião e a moral não têm lugar no espaço político, excepto na medida em que sirvam fins políticos, sendo instrumentos de poder e força de coesão social. O valor de uma instituição ou de um governante devem ser determinados apenas pelo êxito prático, sinónimo de aquisição e manutenção do poder político. No capítulo XV subordinado ao tema “Das coisas pelas quais os homens e sobretudo os príncipes, são louvados ou vituperados”, afirma: Mas sendo meu intento escrever coisa útil a quem entende, pareceu-me mais conveniente ir direito à verdade efectiva das coisas que à sua imaginação (…) Daí ser necessário a um príncipe, para poder preservar-se, aprender a poder não ser bom e a usar ou não usar dessa faculdade consoante a necessidade. Ainda no capítulo XV, é possível extrair que o príncipe deve possuir a sensatez necessária para evitar a infâmia dos vícios capazes de lhe fazerem perder os seus Estados. A leitura de O Príncipe, tal como a de muitos outros livros, abre-se na subjectividade de quem o manuseia. Conquanto dedicado a um príncipe e a ele dirigido, tendo em vista o pragmatismo da governação e, consequentemente, o poder, o conceito de príncipe pluraliza-se através da sua leitura, admitindo que cada um de nós, possa ser seu destinatário, aquele que melhor quer defender os seus interesses e as suas práticas, não havendo assim um indivíduo concreto como receptor, ou uma entidade que se reconheça na concretização de uma vontade supostamente colectiva, ou um partido político, como exemplo. Não é um texto datado, mas uma obra de arte chegada aos nossos dias, onde o salve-se quem poder, marca o modus operandi de muitos que almejam o poder e depois não o sabem governar, procurando a todo o transe, o melhor caminho para o conseguir. Tendo em vista a dicotomia ser e parecer e, consequentemente, a importância da imagem e o que se mostra à comunidade a que pertence, Maquiavel considera de grande relevância a manipulação que a política faz da imagem. O príncipe deve parecer bom, justo, generoso, ainda que, para conservar o Estado, tenha que ser exactamente o contrário. No capítulo XVIII, a que dá o título de “Como os príncipes devem honrar a sua palavra”, escreve Maquiavel: Um príncipe não precisa, consequentemente, de ter todas as qualidades enumeradas, mas convém que pareça que as tem. Atrever- -me-ei, até, a dizer que, se as tem, e as respeita sempre, o prejudicam. Mas, se fingir bem que as tem, ser-lhe-ão proveitosas, assim como lhe será proveitoso fingir-se compassivo, fiel, humano, íntegro e religioso e sê-lo, mas nas condições de se convier e não ser, saber e poder agir ao contrário. O Príncipe, embora o título nos remeta para um texto privilegiando a figura do governante, é na sua essência um conjunto de regras tendentes a instruir alguém cujo objectivo é a conquista do poder e a forma de o preservar. Mas se ao príncipe lhe são atribuídas e consignadas práticas de vida, é necessário, também, que características endógenas formatem o governante. A virtude é a grande qualidade que se exige que o governante possua, aliás já exigida nalguns diálogos de Platão, nomeadamente em Alcibíades. O bom príncipe é o que possui maior virtù, palavra bastas vezes repetida ao longo do texto, o que significa que se lhe exige que tenha um conjunto de qualidades pessoais, tanto inatas como adquiridas, sendo o grande objectivo a vitória e o sucesso que serão alcançados de qualquer forma, não havendo nada de errado se os processos utilizados não forem os mais claros. O mais importante não é participar, nem sequer fazê-lo bem, de acordo com as normas, o que interessa é fazê-lo melhor do que o adversário, ganhar, vencer, assegurar o ceptro. Relativamente à sua pátria, o príncipe não deve agir levianamente, nem se deixar invadir pelo medo, mas sim proceder de forma moderada, com prudência e humanidade para que o excesso de confiança não o torne imprudente e o excesso de desconfiança não o torne insuportável, questionando-se, depois, se será melhor ser amado que temido ou o inverso. Tratando-se de um livro de carácter didáctico, com o objectivo de ajudar através da assertividade de um discurso que deve ser bem aceite, alicerçado em exemplos de factos acontecidos, que não sofrem contestação, são muitos os conselhos que a experiência de Maquiavel dita. Muito pragmatismo é tido em conta. No capítulo V, “De que modo se devem governar as cidades ou principados que, antes de serem ocupados, viviam segundo as suas leis”, acrescenta Maquiavel: E aquele que se torna senhor de uma cidade habituado a viver livre e não a destrói, deve esperar ser destruído por ela, pois ela tem sempre como pretexto para as suas rebeliões o nome da liberdade e os seus antigos costumes os quais nem o tempo nem qualquer benefício permitirão que sejam jamais esquecidos. Parafraseando o capítulo VIII que tem por título “Daqueles que chegam ao Principado pela perfídia”, é possível que ao apoderar-se de um país, o ocupante deve pensar em todas as crueldades que precisa de fazer e praticá-las imediatamente, de uma vez, para não terem de voltar a recorrer ao mesmo processo. Convém fazer o mal todo de uma vez (…). Não sendo um misantropo, um príncipe deve, sobretudo, viver com os seus súbditos, de tal modo que nenhum acidente, de bem ou de mal, o obrigue a modificar o seu procedimento. Nesta sua prática com o outro, importante se torna a capacidade de fingimento, devendo ter o entendimento treinado para virar conforme os ventos da fortuna e a mutabilidade das coisas, não se afastando do bem, se puder, mas enveredando pelo mal, se for necessário. Porque a vida não se circunscreve exclusivamente a um conjunto de manifestações bélicas, em busca de um único objectivo que é a vitória, o príncipe deve, em certas épocas do ano, distrair e divertir o seu povo com festas e jogos, e como a cidade está dividida por ofícios ou por tribos, o príncipe deve interessar-se por esses agrupamentos, assistindo algumas vezes às suas reuniões, dar exemplos de humanidade e de magnificência, mas que nunca rebaixe a majestade do seu posto, pois ela jamais deve diminuir. Não sendo uma entidade omnipotente nem imensa, o príncipe tem necessidade de se aconselhar, quando quer e não quando os outros querem, evitando conselhos de quem não os pede. Assim, deve pedir conselhos, sem parcimónia, e escutar pacientemente todas as verdades, aconselhando-se com diversos, nunca se enfrentará com as mesmas opiniões. Mostrando como se age e administra o poder, postergando todos os conceitos de moralidade, dando lugar à crueldade e às políticas imorais, de acordo com os padrões convencionais, se essas forem as mais adequadas para levar a cabo os intentos do sujeito dominador. Feito, sobretudo, para governantes, O Príncipe visa os interesses do Estado, sobrepondo-se aos direitos humanos, podendo, mesmo, serem sacrificados, se necessário. Não será um bom príncipe aquele que for reticente na aplicação dos procedimentos que forem mais adequados para a circunstância. Um livro que atravessou o tempo, apreciado e menosprezado por muitos e a que não se fica indiferente. Não consta que os fins justifiquem os meios, tão só se lê que todos os meios são possíveis para se obter a vitória tão desejada, conquistando e consolidando o poder. E é assim que muitos ainda se mantêm. Aos déspotas não lhes faltou a leitura de O Príncipe. Se não o leram, seguiram-lhe as pisadas, andando por lá perto. Assim parece…

... Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, Uma Estranha Amizade

Muito se tem escrito sobre Eça e Ramalho Ortigão e muito se tem lido. Os textos sobre Eça são sempre motivadores. Embora não tenham primado pela longevidade das suas vidas, no que respeita a Eça, o que é certo é que os temas não se esgotam ao ponto de já ter sido publicado um dicionário com o respectivo suplemento sobre Eça de Queiroz Desta vez e mais uma, é Maria Filomena Mónica que, estranhando a amizade entre estes dois gigantes da literatura, nos traz uma obra curiosa no seu superlativo para nos deliciar, desvelando aspectos das suas vidas que não pertencem ao conhecimento do vulgo e, diga-se mesmo, da maior parte dos estudiosos. Com esmero, deslindou o que muitos não sabiam e eis-nos, de volta de gente que a gente julga conhecer, mas que ainda desconhecemos. Nunca se sabe tudo. Só os loucos são pródigos na sabedoria, ou, apetece dizer, a ignorância é atrevida. Ambos são homens do norte e ambos frequentaram a Faculdade de Direito em Coimbra, embora Ramalho não tenha acabado o Curso, tendo regressado ao Porto. Onde passou a leccionar a disciplina de Francês, no Colégio da Lapa, fundado por seus pais e onde vai conhecer Eça de Queiroz. Ao jornalismo, também, se dedicaram no início das suas vidas. Ramalho no Porto, Eça em Évora. Depois, encontrar-se-ão em Lisboa, por pouco tempo. Ramalho a trabalhar na Academia das Ciências e Eça de passagem para Cuba. Eça de Queirós, cerca de nove anos mais novo que Ramalho, nascera na Póvoa de Varzim, em 25 de Novembro de 1945. Foi em Lisboa que Eça conheceu Jaime Batalha Reis (1847-1935) matriculado, nessa altura, no Instituto Superior de Agricultura. Eram quase da mesma idade. Até ao fim da vida, manter-se-á o mais fiel amigo de Eça. No Verão de 1870, durante 31 números, os leitores do Diário de Notícias deliciaram-se com a leitura de O Mistério da Estrada de Sintra, em forma de folhetim. Em 27 de Setembro de 1870, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão informaram o público que a narrativa não tinha um único nome verdadeiro. A 17 de Junho de 1871, começam a aparecer nas bancas, uns opúsculos de cor alaranjada decorados com o diabo Asmodeus, ostentando em cima o título As Farpas. Na vertical figurava o nome de Eça de Queiroz e, na horizontal, o de Ramalho Ortigão, cujo subtítulo era Crónica Mensal da Política, das Letras e dos Costumes, com uma tiragem mensal de 1500 exemplares. Na primeira fase, a maior parte foi escrita por Eça, tendo a sua colaboração terminado em Setembro-Outubro de 1872, data da sua partida para Havana, onde foi ocupar o lugar de cônsul. Com a saída de Eça, sairá de forma separada a sua colaboração com o título Uma Campanha Alegre. Para os dois cronistas de As Farpas um dos alvos preferidos eram os políticos, advogados, a venda das colónias, pois não fazia sentido possuí-las, não havendo qualquer vantagem em manter Goa, Damão e Diu. As Farpas tornaram-se influentes na vida política do país, fazendo eco nalguns comportamentos tomados pelos governantes. Não se quedou por aqui o talento de Eça que começava a manifestar-se. Publicar um romance fazia parte dos seus objectivos. De saída para Havana, o título adequava-se: Uma Conspiração em Havana. Não levou por diante os seus intentos. Singularidades de uma Rapariga Loura é um conto que tornará público em 1873, num opúsculo como Brinde aos Senhores Assinantes do Diário de Notícias. Apesar de distante, no outro lado do Atlântico, a sua relação com Ramalho não abranda, ao ponto de lhe confidenciar a sua relação com o dinheiro. As dívidas deixam-no preocupado. Um empréstimo resolver-lhe-ia a sua situação financeira. Ramalho poderia servir de intermediário, ao conseguir alguém capaz de lhe facultar um empréstimo. Depois de começar a publicar em folhetins na Revista Ocidental, a partir de 1875, O Crime do Padre Amaro, aparece em 1878, O Primo Basílio que obteve um grande sucesso, esgotando-se rapidamente, o que suscitou, de imediato, uma segunda edição. Ramalho, por seu turno, não gostou do romance, sendo inaceitável que uma mulher ousasse ter aquele comportamento, conforme escrevia n’As Farpas em Maio de 1878. Vivendo no estrangeiro, onde exercia a sua actividade profissional, Eça vem a Portugal de quando em vez, hospedando-se no Norte, onde tinha amigos, raramente se encontrando com Ramalho, que só aparecia ocasionalmente.. A sua situação de celibatário ia resolver-se. A 10 de Fevereiro de 1886, José Maria Eça de Queiroz e Emília de Castro Pamplona Resende consorciaram-se, numa cerimónia íntima, na capela privada da Quinta de Santo Ovídio. Ele com quarenta anos, ela com menos doze. Ramalho, o único convidado de Eça, foi o padrinho. Com livros escritos, como O Primo Basílio e O Crime do Padre Amaro, nem todos os familiares dos Resendes apoiaram a união. Ramalho, padrinho de casamento de Eça, cimentava, assim, a sua relação, carteando-se a cada momento. Nos propósitos de Eça a redacção de um romance. Em carta escrita a 3 de Junho de 1882, do Hotel du Cheval Blanc, de Angers, escreve a Ramalho, tratando- -o por você, a propósito de Os Maias: Eu não estou contente com o romance: é vago, difuso, fora dos gonzos da realidade, seco e estando para o belo, a obra de arte como o gesso está para o mármore. Tem aqui e ali uma página viva e é uma espécie de exercício, de prática, para eu depois fazer melhor. Em tom de confidencialidade, escrevia: O que não vai bem, todavia, é a saúde. A nevrose está comigo, creio eu. O tempo chegou em que a vida para mim, a não ser que eu a queira estragar de todo, deve ter um regime e você sabe, ou pressente, quanto é triste entrar-se dentro de um regime. Enfim, cada questão de saúde é longa e eu não tenho aqui tempo para queixumes(…). Tinha Eça trinta e seis anos. Os Maias viriam a ser publicados em 1888, último livro publicado em vida do poeta, sem que se deixassem de ouvir vozes discordantes, principalmente de Fialho de Almeida que no livro Pasquinadas (jornal dum vagabundo) saído em 1889, comparando-o com outras obras de Eça, lamenta a perda de espontaneidade: o livro era uma obra remodelada, embricada de remendos, sobreposições trabalhosas, entrelinhas que por isso mesmo perdeu a sua bela serenidade de composição, a sua nitidez de factura e cujos episódios, divergindo da acção principal, em longas e inúteis explanações, fazem empalidecer o brilho de muitas cenas e substituem por vezes a fadiga ao interesse, mau grado o profuso, o luminoso, o admirável talento espalhado por todas aquelas páginas. Nas suas vindas a Portugal, habitualmente de férias com a família, era fácil a sua permanência na capital, só permanecendo durante várias semanas, pretexto para confraternizar com amigos, juntando, muitas vezes. E assim começou o grupo de intelectuais que se denominou Vencidos da Vida, designação atribuída a Oliveira Martins em 1888. De vencidos não tinham nada: eram inteligentes, cultos e capazes de governar o país. A composição variava segundo as ocasiões e a disponibilidade de cada um. Ficaram para a história Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Conde de Ficalho, Bernardo Arnoso, Guerra Junqueiro, António Cândido, Eça de Queiroz, Conde de Sabugosa, Carlos Mayer, Luís de Soveral e Carlos Lobo d’Ávila. Eça e Ramalho, dois intelectuais que a escrita uniu, mas de temperamentos muito diferentes. Ramalho, afastado de Lisboa, casara aos 23 anos com Emília Isaura Vilaça de Araújo Vieira, seis anos mais velha, noiva que não era bonita, nem rica, nem culta. Para ter a vida tranquila na casa alegre, fora esse um dos objectivos do matrimónio, a que se furtava quando possível, ao invés de Eça que era por natureza sedentário, não sendo grande apreciador da vida social, sendo avesso a movimentos literários de cariz nacionalista, o que o separa de Ramalho. Não ficou o país indiferente à actividade de Ramalho Ortigão, agraciando-o com a Comenda da Ordem de Cristo e ainda, por parte de Espanha a Credencial de Cavaleiro Grã-Cruz da Real Ordem de Isabel, a Católica. Eça, por seu turno em 1896, recebe a Légion d’Honneur francesa, grau de Cavaleiro. Servindo-nos da leitura do livro de Maria Filomena Mónica, que temos vindo a citar, Eça deixou a educação dos filhos ao cuidado da mulher que vivendo em França, é natural que em casa só se falasse francês. Os filhos apenas liam jornais franceses. A filha, Maria, fora educada no Colégio católico das Madres Agostinhas, em Paris. No final de Julho de 1900, a saúde de Eça fragilizou- -se, indo, a conselho médico para a Suíça, não tendo sido acompanhando pela mulher, por um dos filhos estar doente. Ramalho acompanhou-o, tendo continuado a viagem que estava a fazer. No dia 13 de Agosto regressa a Paris. Três dias depois falecia. Era 16 de Agosto de 1900. Tinha 54 anos. Através do cônsul português, Ramalho tomou conhecimento da morte de Eça, sentindo-se culpado por o ter deixado sozinho em Genebra. O Parlamento concordou com a concessão da pensão à viúva que lhe foi interrompida depois da implantação da República. O facto de os filhos José Maria e António terem optado por se ligar à causa monárquica de Paiva Couceiro e a mãe ter partido para Vigo, onde ficou várias semanas para estar ao lado dos filhos, ter-lhe-á custado o corte da pensão do Estado, que lhe vinha sendo atribuída. Em 7 de Setembro de 1900, ainda em Itália, Ramalho confidenciava ao conde de Sabugosa, “Eu devo muito a Queiroz, devo-lhe do que sou o que não devo a mais ninguém no mundo. Por isso o amo como a um pai” “(…) além de amar Queiroz como se ama um pai, eu o amava também – mais carinhosamente ainda! – como se ama um filho”. O governo de Hintze Ribeiro encarregou-se da transladação do cadáver de Paris para Lisboa. Em 12 de Setembro, após as exéquias em Paris, a urna foi transportada para a gare de Saint Lazare, de onde seguiu para o Havre, tendo embarcado no navio militar África com destino a Portugal, aonde chegou ao Tejo, pouco passava do meio-dia de 16 de Setembro. No Rossio, de gravata encarnada podia ver-se Fialho de Almeida, que havia sido convidado a fazer parte da comissão de jornalistas, encarregada de homenagear Eça, mas que recusara. Ramalho Ortigão,invocando uma crise de reumatismo, não compareceu. O cortejo dirigiu- -se para o cemitério do Alto de São João, onde ficaria no jazigo dos Resendes, em Lisboa. A urna era grande de mais para entrar no espaço por onde tinha de passar. O cangalheiro teve de ir a Cascais a fim de pedir à família do morto, licença para desaparafusar argolas do caixão, única forma de este entrar no jazigo. Só no dia seguinte seria sepultado, incluído numa família que não era a sua. Como é natural, depois da morte, todos lhe teceram loas, à excepção de Fialho de Almeida que no Brasil- -Portugal de Setembro de 1900, lhe dedica um artigo vituperando-o. Raul Brandão, nas Memórias afirmará, “No fundo, nunca o pôde ver, faltou-lhe o carinho, a consideração, e isso magoou-o muito, que rodeou o grande escritor de Os Maias.” Durante algum tempo, Emília Eça de Queiroz viveu na praia da Granja. Em 1932, através de Luís de Magalhães, Emília teve conhecimento de que uma comissão de notáveis de Aveiro, sabendo dos desejos de Eça ficar enterrado junto do seu avô, se preparava para promover a transladação dos restos mortais para o cemitério do Outeirinho, perto de Verdemilho, numa carta de 17 de Dezembro, dizia Emília concordar com a transladação mas com reservas, o que só veio a acontecer em 1989, para seguir para uma Fundação, que os descendentes tinham organizado em Santa Cruz (Tormes), no meio de serras, onde Eça nunca imaginou viver. Em 5 de Fevereiro de 2021, o Parlamento decidiu conceder honras de Panteão Nacional aos restos mortais de José Maria Eça de Queiroz, por reconhecimento pela obra literária ímpar e determinante na história da literatura portuguesa. Na Primavera de 1915, Ramalho sentiu-se mal. O médico, Francisco Gentil, diagnosticou-lhe cancro, tendo-o submetido a um tratamento que se revelou ineficaz. Em 27 de Setembro, depois de ter recebido a extrema-unção morria em casa, católico praticante, tendo sido recebido pelo Papa Leão XIII, no Vaticano em 1906. Ramalho morreu numa altura complicada do regime, Em Janeiro tivera lugar o golpe militar que levara o presidente da República, Manuel de Arriaga, a demitir o governo chefiado por Afonso Costa. No dia do enterro estava no poder, José Ribeiro de Castro, que no dia seguinte cederia a pasta a Afonso Costa. Ramalho foi a enterrar no cemitério dos Prazeres, tendo o caixão ficado depositado no jazigo dos marqueses de Sabugosa. No funeral não esteve presente ninguém da família de Eça de Queiroz Depois da morte de Eça, havia que tratar do espólio legado. A viúva escreveu a Ramalho, tendo em vista o destino a dar aos romances inacabados, alguns prontos ou quase prontos, como a Ilustre Casa de Ramires, A Cidade e as Serras, Cartas de Fradique Mendes. Passado pouco tempo Ramalho respondeu, agradecendo a “preciosa prova de amizade”. Iria tratar de coligir todos os escritos dispersos em jornais e revistas dos quais se apurarão certamente dois ou mais volumes de grande importância na obra completa de Eça de Queiroz. Tratava-se, em primeiro lugar, de publicar A Ilustre Casa de Ramires, obra quase pronta desde 1890, que iria sair em 1900. Com a colaboração de Luís Magalhães (1859-1935) saíram: Os Contos, Prosas Bárbaras, Cartas de Inglaterra, Ecos de Paris, Cartas Familiares, Notas Contemporâneas e Últimas Páginas. Em 1924, o filho primogénito de Ramalho, radicado no Brasil, José Vasco, escrevia a José Maria Eça de Queiroz, contando-lhe o que encontrara, começando o filho de Eça, de imediato, a preparar a publicação desse espólio. Pouco depois anunciou-se a publicação da Tragédia da Rua das Flores, escrito em 1877, o que só viria a ser editado em 1980. A propósito do Arquivo pessoal de Eça de Queiroz, conta-nos Maria Filomena Mónica que se encontra no fundo do mar. Dada a circunstância um tanto bizarra, ignorada por grande parte dos leitores de Eça, não nos furtamos a escrever o que nos foi proporcionado pela investigadora: Com base numa carta que a filha de Eça, Maria, escreveu a Heitor Lyra em 4 de Outubro de 1960, Lyra revela que após a morte de Eça, a mulher decidiu enviar os móveis que existiam em Neuilly, bem como o arquivo do marido no navio Santo André, meio de transporte escolhido pelo Governo para trazer de volta a Lisboa sobras de arte portuguesas que tinham estado presente na Exposição Universal Portuguesa. A decisão viria a revelar-se uma catástrofe. Em 4 de Janeiro de 1901, diante de Lisboa, o Santo André naufragou. O Tejo estava picado e, fora da barra, as ondas andavam altíssimas. No Havre, quando o navio zarpou, já as condições atmosféricas eram deploráveis. Segundo consta o navio não tinha condições. Quando o Santo André se deparou à beira de Lisboa com dificuldades, foi abandonado pela tripulação. O rebocador Berrio enviado para resgatar, falhou a missão. Abandonado às correntes. O Santo André foi arrastado pelo mar, presumindo-se que se tenha afundado algures no sul de Portugal. Apenas foram encontrados restos de cascos, uma barrica com óleo mineral e um remo. No naufrágio desapareceram quadros de Carlos Reis, Malhoa, e de Veloso Salgado e uma pequena tela de Columbano, onde Eça está retratado, tendo desaparecido, também, a Biblioteca de Eça. Quando a viúva de Eça se deslocou a Vigo, deixou os livros que tinham pertencido ao marido em casa de uma velha criada, cujo genro, um tipógrafo de nome Danton, os foi, aos poucos roubando. Emília vivia na praia da Granja, onde os filhos passavam temporadas. Morreria aos 77 anos, tendo-se mantido até ao fim uma católica devota. Para Maria Filomena Mónica, entre Eça e Ramalho havia mais interesse do que amizade. Eça precisava de ajuda de Ramalho para ser publicado e Ramalho de alguém que com ele colaborasse em certos empreendimentos literários, tudo tendo começado com a publicação de O Mistério da Estrada de Sintra e de As Farpas, dados à estampa sem uma autoria individualizada. Em 1903, em parte devido à influência do conde de Arnoso, ao tempo secretário particular do rei D. Carlos, foi inaugurada em Lisboa uma estátua em honra de Eça, tendo um dos oradores, Ramalho Ortigão, no dia da sua inauguração, proferido algumas palavras que salientamos: Nunca foi general, nem ministro de Estado, nem deputado às Cortes. Foi tão só um artista. Viemos ao mundo e fomos criados na mesma região de Portugal. Embalaram-nos idênticas orações de nossas mães. Admitia, contudo, que a vida os tornaria diferente: ele ficara “nostalgicamente minhoto”, enquanto Eça escolhera Lisboa como o seu “laboratório de arte, o seu material de estudo, a uma preocupação de crítico, o seu mundo de escritor. Na base da estátua, uma frase retirada da epígrafe de A Relíquia: Sob a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia Não foram unânimes as vozes relativamente à estátua, manifestando-se Ramalho a favor do monumento, argumentando que certos mortos tinham o direito a ser celebrados antes de alguns homens mais célebres, tendo direito à saudade daqueles que os conheceram e trataram. É do domínio público que a relação entre Eça e Ramalho se pautou, ao longo das suas existências, sem que incompatibilidades se tenham manifestado, contudo muito havia a separá-los, ao ponto de Maria Filomena Mónica se ter interrogado acerca da ligação existente, considerando-a “uma estranha amizade”. Se as respectivas visões do mundo eram diferentes, o que é certo é que enriqueceram o nosso património cultural, a partir de perspectivas distintas que só vieram valorizar quem os leu, apreciou e criticou. Uma estranha amizade, Eça e Ramalho, um livro a adicionar muito ao que já se sabia, que nunca é demais.

Falando de… Chopin

Chopin é polaco. Nasceu em 1810. De seu nome de baptismo Fryderyk Franciszek Chopin. Não se sabe ao certo a data do seu nascimento. Terá nascido em 22 de Fevereiro, mas, como muitas vezes acontece, só foi registado mais tarde em 1 de Março. Os estudiosos de Chopin, inclinam-se para esta data, em detrimento de 22 de Fevereiro, embora não existam provas concretas que confirmem nenhuma delas. O local é certo: uma casa rural térrea na propriedade do conde Sharbek, em Zelazowa Wola, pequena aldeia na margem do rio Utrata, a cerca de trinta quilómetros a oeste de Varsóvia. Hoje, a casa onde Chopin nasceu atrai anualmente um número considerável de peregrinos apesar de ali ter passado os primeiros sete meses da sua vida e do seu verdadeiro local de nascimento ter sofrido muitas modificações ao longo dos anos. Filho de Nicolas Chopin (1771-1844), nascido no seio de uma família de camponeses, em Marainville, aldeia da região de Vosges, no nordeste de França, o jovem Nicolas despertou a atenção de um polaco, Jan Weydlich, administrador da propriedade agrícola de um nobre polaco, o conde Michal Pac. Nicholas Chopin conviveu com os polacos desde tenra idade e quando em 1787, Weydlich resolveu voltar ao seu país de origem, Nicolas acompanhou-o, para fugir ao recrutamento para o exército francês. Uma vez na Polónia, Nicolas Chopin alistou-se na Guarda Nacional de Varsóvia, chegando ao posto de capitão, tendo sido ferido. Na sequência da derrota das forças polacas pela Rússia e pela Prússia, viu-se desempregado, sendo salvo pela sua língua materna. O francês era na altura a língua franca da aristocracia e da sociedade culta na Rússia e na Polónia, sendo moda essas famílias terem preceptores de língua francesa para os filhos, em 1794, Nicolas Chopin teve a sorte de conseguir esse trabalho junto da rica família Laczynki, nos arredores de Varsóvia. Perfeitamente integrado na sociedade polaca, Nicolas adoptou os hábitos, a cultura e a língua da sua pátria, ao ponto de ter mudado o nome de Nicolas para Mikolaj. A mãe Tekla Justyna Krzyzanowska, tinha vinte e seis anos quando casou com Mikolaj, em 1806. Do casamento nasceram, além do compositor, três raparigas: Ludwika(1807-1855), Izabela (1811- 1881) e Emília(1812-1827). Mikolaj lecionou língua e literatura francesa, no liceu de Varsóvia, que havia fundado recentemente um internato para os filhos da fidalguia. Ao mesmo tempo que Mikolaj se impunha como director de estudos, Justyna era preceptora de alguns rapazes. Foi neste enquadramento que decorreram os primeiros anos de vida de Chopin. O pai tocava um pouco de flauta, não podendo considerar- -se propriamente um músico. A mãe de Chopin tinha aprendido a tocar razoavelmente piano. Este instrumento tinha-se tornado um símbolo de distinção e tocá-lo era um dom indispensável para qualquer menino de boas famílias. Foi a mãe quem deu a Chopin as primeiras lições, aos seis anos já era evidente que o talento do rapaz justificasse um professor a sério, o que levou a família a recorrer a um velho amigo, um excelente pianista chamado Adalbert Zywny que foi seu orientador de 1816 a 1822, instilando em Chopin um perene amor a Bach, Haydn e Mozart e um cepticismo em relação a Beethoven, Hummel e Mascheles. A música de Bach, em particular, iria ter uma profunda influência no pensamento musical de Chopin, ao mesmo tempo que se interessava pela música polaca. Nos salões de Varsóvia, a forma mais popular de música era, na altura, a polonaise. Dois anos depois das suas primeiras lições com Zywny, por volta de 1818, era publicada a primeira composição de Chopin. Tratava-se de uma edição particular feita por um amigo de Chopin com a seguinte informação:” Polonaise em Sol menor, dedicada a Sua Excelência a Condessa Victoria Skarbek, composta por Frederik Chopin, músico de 8 anos de idade”. Mais ou menos, pela mesma altura, Chopin fazia a sua primeira aparição pública como pianista, sendo o seu talento extraordinário, motivo de conversa em Varsóvia. A Revista de Varsóvia, na sua edição de Janeiro de 1818, dedica-lhe um texto afirmando que Fryderyk era um autêntico génio nacional. Depressa Chopin se torna atracção, sendo muito requisitado para os salões da cidade. O seu talento abria-lhe as portas para todas as camadas da sociedade polaca, habituada a ouvir os melhores intérpretes de música erudita. Ainda, com 8 anos, a Imperatriz Maria Fyodorovna, mãe do czar e do Grão-Duque Constantino, visitou a sala de aula de Chopin e no liceu foi presenteada com duas Polonaises pelo compositor. Mais tarde, em 1822, aquando da criação do Conservatório de Varsóvia, Chopin terá como professor Jósef Elsner que lhe dará lições de teoria musical e de harmonia, tendo sido o seu único professor de composição. Em Setembro de 1825, Chopin iniciou o seu último ano no liceu. Aos seus trabalhos escolares e às frequentes apresentações nos salões de Varsóvia, vinha somar-se ao domingo o lugar de organista na Igreja das Visitandinas. Escreveu obras de todo o género – oratória, ópera, sinfonia, variações para piano, rondós, danças e uma adaptação da Paixão. Durante a segunda metade de 1827 e início de 1828, Chopin compôs a sua primeira obra para piano e orquestra. Depois dos exames, Chopin parte para Viena, aí, dará um concerto triunfal no Teatro Karntuerthon. Os seus amigos tinham partido; a situação política tinha mudado drasticamente. O país tinha-se transformado. Não sendo Chopin um activista político, a vida emocional lançara-o numa depressão, embora tivesse conseguido declarar-se a Konstancja Gladkowska. Obstinado, sai da Polónia, chegando a Paris com alguma dificuldade em meados de Setembro de 1831. Um ano depois, em 1832, a Polónia tornar-se-á uma província do Império Russo. Depressa fica conhecido como Fréderic Chopin. Paris era a capital do século XIX. Talvez inspirado pelo espírito da Revolução de 1789, aí se encontravam os espíritos criativos do século. Hugo, Heine, Lamartine, Chateaubriand, Baudelaire, Balzac, De Vigny, De Musset,George Sand, Ingres, Delacroix, e compositores pianistas como Liszt, Kalkbrenner, Pixis, Hiller, Herz e Alkan. Verdi e Wagner estavam ainda na adolescência. Listz tinha acabado de fazer vinte anos. Schumann e Chopin tinham vinte e um. Mendelssohn vinte e dois, Berlioz vinte e oito. Desde sempre existiu uma forte ligação entre a Polónia e a França. Grande número de refugiados, com destaque para muitas das famílias endinheiradas da aristocracia, com as quais Chopin se tinha relacionado em Varsóvia, procuraram o conforto que a sua terra pátria não lhes proporcionava. Em Paris estavam, também, os amigos dos tempos de estudante de Chopin. Os pianistas afluíam em massa à capital. Chopin estava no lugar certo na altura certa. Não faltavam senhoras que manifestassem interesse por ele. Finalmente, ao cabo de vários adiamentos, chegou a estreia de Chopin em Paris, com o apoio de Kalkbrenner. O local de estreia seria a Salle Pleyel a 15 de Janeiro de 1832, mas adiada para 25 de Fevereiro por Kalkbrenner estar a passar mal. O público, em que se incluíam Liszt, Mendelssohn, Heize e Pixis aplaudiram entusiasticamente. Apesar dos êxitos alcançados, Chopin confessava que não tinha vocação para dar concertos. A multidão intimidava-o e sentia-se asfixiado pela sua respiração ansiosa, paralisado pelos seus olhares inquisitivos, silenciado pelas suas faces estranhas. Vivendo um período de alguma dificuldade, é apresentado ao Barão Rothschild, o filho mais novo da mais importante família de banqueiros da Europa do século XIX. Com Rothschild abriram-se as portas de todas as famílias mais importantes de Paris. Em poucos meses Chopin tinha-se mudado para um apartamento de luxo, gabando-se de ter criado e carruagem, vestindo- -se em algumas das lojas mais elegantes de Paris, ao mesmo tempo que se sentava à mesa com embaixadores, príncipes e ministros. Dava lições, praticando honorários excepcionalmente altos, podendo cobrar vinte francos por lição, quando o salário médio de um parisiense não qualificado não ia além de um franco diário. Em Paris, raramente punha os pés na igreja, onde em todas as missas se rezava pela libertação da Polónia, sendo dos poucos compositores que não escreveu música religiosa. A relação de amor e ódio de Chopin com Liszt data dos seus primeiros dias. Chopin tinha cerca de metro e setenta de altura, olhos azuis acinzentados, cabelo louro escuro e sedoso e um pronunciado nariz Bourbon. Em 1840 pesava menos de quarenta e cinco quilos Liszt achava que a sua figura franzina e transparente enfeitiçava o olhar. O seu porte distinto, os seus modos tão instintivamente artísticos que toda a gente o tratava como se ele fosse um príncipe. Os seus modos eram cheios de graciosidade e falava num tom de voz tão baixo que chegava a ser sibilado. Chopin não deu mais de trinta concertos públicos, mas a impressão deixada por essas poucas apresentações foi suficiente para fazer dele um intérprete lendário. Os seus rendimentos provinham sobretudo das aulas e das vendas da sua música. Para além de um compositor de génio, era também um professor exímio. Durante muitos anos, a sua fama de pedagogo chegou muito longe, trazendo-lhe alunos, não só de França e Polónia, mas também da Lituânia, Rússia, Boémia, Áustria, Alemanha, Suíça, Grã-Bretanha, Suécia e Noruega. Chopin tratava os seus alunos com exemplar cortesia, paciência e perseverança, embora as aulas, por vezes, chegassem a ser tumultuosas. A epidemia da gripe de 1835, deixou Chopin com bronquite e a tossir sangue. Em resultado de doença grave contraída em Heidelberg, começaram a correr rumores da morte de Chopin, que chegaram a Varsóvia Em Setembro de 1836. Chopin propôs casamento a Maria Wodzinska. Ela aceitou, mas a família foi mais prudente, aconselhando-o a evitar as noitadas e a cuidar da saúde, embora o relacionamento se mantivesse através de cartas. Os Wodzinska tinham decidido que a filha não poderia casar-se com um homem de tão frágil constituição. Sendo a vida e as vontades de Maria controladas pelos pais. Entretanto conheceu George Sand. Chopin não ficou nada impressionado com aquela escritora baixa e roliça que vestia roupas de homem, fumava charuto e escrevia sob pseudónimo masculino, ao ponto de ter um dia comentado: “Que mulher tão pouco atraente é La Sand. Será mesmo mulher?”. Na noite de 8 de Março de 1838, Chopin foi um dos convidados para jantar no apartamento do seu amigo Marquês de Custine. Entre os convidados estava George Sand que ao ouvi-lo tocar se apaixonou por ele. Afinal, quem era esta mulher que usava calças, fumava charuto e escrevia romances sob pseudónimo masculino, frequentadora habitual dos salões mais chiques, amiga da nata de Paris? George Sand nasceu em 1804 e foi baptizada como Amandine Aurore Lucie Dupin. Segundo escreve na sua biografia Histoire de ma vie, publicada em 1855, foram os conflitos de classe no seio da sua família mais próxima que enformaram a sua vida e a sua consciência social. Aos 18 anos casou-se com Casimir, filho do barão Dudevant de quem teve dois filhos, Maurice (1823) e Solange (1828). Casimir era um parceiro inadequado para um espírito independente, boémio e amante da vida. Ao fim de nove anos deixou-o e mudou-se para Paris com os filhos, decidida a ganhar a vida como escritora. O primeiro de uma série de amantes de Aurora, foi o escritor Jules Sandeau, a cujo apelido foi buscar o pseudónimo. A este seguiram-se Prosper Merimée, Alfred de Musset, Michel de Bourges, Pietro Paello e, quase de certeza, Liszt. Em Inglaterra, George Sand era considerada uma influência nefasta, anti-casamento e uma ameaça à unidade familiar. Fisicamente não era uma beldade convencional, media menos de metro e meio de altura e era roliça, mas o seu magnetismo compensava tudo. Sand iria ser para Chopin durante nove anos, um esteio e de longe, a pessoa mais influente que entrou na sua vida. Nessa altura, Sand já estava legalmente separada do marido, mas ainda estava no meio de um caso amoroso com o dramaturgo Mallefille(1813-1868). Vivendo juntos, decidiram ir residir para Maiorca, juntamente com os filhos, Maurice, Solange e a criada. Inicialmente, tiveram alguma dificuldade em arranjar alojamento. Finalmente descobriram a cerca de cinco quilómetros da cidade uma casinha chamada “Villa Sou Vent”. Passado pouco tempo, em Dezembro de 1838, confessava que andava com uma tosse de cão. Os médicos diagnosticaram-lhe tuberculose, e como era seu dever, participaram o caso às autoridades. O senhorio foi informado e apressou- -se a exigir a partida da família, além de uma quantia exorbitante para substituir a mobília e decorar de novo toda a casa. Chopin e Sand escolheram, então, um espaço alternativo para viver: um velho mosteiro cartuxo, abandonado, em Valldemosa. As instalações eram deficientes. Os camponeses de Valldemosa tinha tomado de ponta os seus estranhos visitantes que se isolavam, não iam à igreja e menosprezavam todo o tipo de convenções sociais, ao mesmo tempo que tinham ganho grande aversão ao comportamento daquela mulher impaciente e arrogante que voltava as costas à igreja, mas mesmo assim ousava instalar-se numa cela monástica com um homem que não era seu marido. A 11 de Fevereiro de 1839, Chopin e Sand resolveram, de repente, fazer as malas e regressar a Paris, adiantando a partida que estava programada para Maio. Instalado em Nohant, propriedade herdada por George Sand, Chopin desfruta de uma vida familiar estável, o que não lhe acontecia desde que partira de Varsóvia. O Verão no campo era mais propício a um trabalho continuado de composição, ao ponto de quase toda a música de Chopin dos anos seguintes ter sido composta em Nohant. Em 1840, Chopin adoece com dores no peito, Jan Matuszynski, médico, seu amigo, estava convencido que Chopin estava a ser consumido pela tuberculose. A convite da família real, deu um concerto nas Tulherias a 2 de Dezembro, na presença de 500 convidados. Apesar do generoso presente de peças de porcelana com que foi brindado, o acontecimento deixou-o deprimido. Foi a última vez que tocou na corte francesa. Depois de ter estado quinze dias de cama com uma inflamação na boca e nas amígdalas, sendo levado para Nohant por George Sand, em Fevereiro de 1844 voltou a adoecer, desta vez, da epidemia de gripe que tinha assolado Paris. No Inverno, os ataques matinais de tosse de Chopin tornam-se mais longos, deixando-o, muitas vezes, sem forças para andar, com dificuldade em respirar, raramente convivendo. Chopin e George Sand chegam à incompatibilidade. George Sand destruirá todas as cartas que Chopin lhe tinha escrito, Chopin, por seu turno, guardará todas as cartas de Sand, conservando uma madeixa do cabelo dela. Levando consigo, até à morte para toda a parte o primeiro bilhete que dela tinha recebido. Com a revolução em França, de 1848, que acabara com a monarquia e levara à constituição da república, Chopin viu-se a viver sozinho com rendimentos muito reduzidos. O seu estado de saúde tinha-o obrigado a reduzir o número de aulas que dava, diminuindo os seus proventos. Face às dificuldades que enfrentava, surge por parte de Jane Stirling uma oportunidade para se deslocar a Inglaterra, onde poderia dar concertos, ganhar dinheiro e divertir-se. Tudo estaria à sua disposição por parte de Jane. Na última semana da sua vida, amigos e conhecidos acotovelavam-se para apresentar asvsuas últimas homenagens. Deu instruções para que todos os seus manuscritos incompletos fossem destruídos, só sendo publicadas as obras acabadas. No seu funeral devia ser tocado o Requiem, de Mozart. O seu coração devia ser extraído do corpo e enviado para Varsóvia. Pediu, ainda, para que o seu corpo fosse aberto para não ser enterrado vivo. No dia 16 de Outubro de 1849, Chopin entrou em agonia. Pediu música. Tocaram Mozart. Eram cerca das 2 horas da madrugada quando expirou. Tinha trinta e nove anos. O coração de Chopin foi retirado, e depois, levado o corpo para a cripta da Madeleine. Quase duas semanas depois, a 30 de Outubro, realizava-se o funeral. Tinham sido convidadas três mil pessoas. Milhares de pessoas acompanharam o féretro de cerca de cinco quilómetros, até ao cemitério do Père Lachaise, onde a campa se encontra adornada por um monumento de autoria de Clésinger. George Sand não esteve presente, tendo Jane Stirling custeado todas as despesas do funeral. Chopin não compôs mais de trinta canções em toda a sua vida. Algumas nunca foram passadas a escrito, outras não passaram de esboços. Nenhuma foi publicada em vida do compositor. Todas as canções de Chopin são arranjos de poemas polacos, na sua maioria escritos por contemporâneos das suas relações. Chopin escreveu quatro Sonatas – três para piano solo e uma para violoncelo e piano. Das Valsas de Chopin, apenas oito foram publicadas em vida do compositor. As Mazurcas são as obras mais características de Chopin, aquelas que revelam todas as facetas da sua personalidade e todas as suas emoções. Foi uma forma a que se dedicou desde a adolescência até à morte. Existe um total de sessenta e duas Mazurcas, sendo quarenta e uma publicadas em vida de Chopin. O nocturno é uma forma musical associada a Chopin, designando um serviço da Igreja, originariamente destinado a ser celebrado à noite. O primeiro dos dezoito Nocturnos publicado em vida, foi escrito em 1827, editado postumamente. Um prelúdio é normalmente uma peça de música introdutória, por exemplo, a abertura de uma suite. Estes Prelúdios não prefaciam nada, são simplesmente ideias autónomas, poemas tonais em miniatura, que exploram uma infinidade de cambiantes, de sentimentos e humores. Oito deles duram menos de um minuto, só três duram mais de três minutos. Só por si os 24 Prelúdios teriam bastado para dar a Chopin o direito à imortalidade. E foi a leitura de livros encontrados em espaços distantes do público, que se vão mantendo vivos, que encontrámos o conhecimento que nos faz indivíduos cada vez mais capazes, em condições de compartilhar o que nos vai sendo proporcionado. De Chopin, figura existente em nós desde há muito, finalmente, em palavras escritas. Compositor e George Sand a fazer parte do nosso acervo memorial. Texto partilhado com quem quiser saber, não fosse a vida, o viver melhor uma partilha constante e diária…

Falando de … Santo António

O tempo que tudo traz e tudo leva, esse grande construtor, como alguém afirmou, vai-nos avivando a memória, recordando pessoas, coisas, acontecimentos que vão marcando a nossa existência. Vivemos momentos de grande turbulência que dificilmente esqueceremos e que marcarão as nossas vidas por muito tempo. A pandemia viverá connosco até ao infinito das nossas vidas, na memória que nos constrói no quotidiano. Lembrados serão aqueles que com o seu enorme talento fizeram deste país um lugar mais aprazível. Foram grandes os que nos deixaram recentemente para continuar a viver na eternidade do nosso existir: Isabel da Nóbrega, Manuel Ferreira Patrício, Jorge Sampaio e José Augusto França muito acrescentaram ao saber fazer que procuramos de forma denodada. Para esquecer, comportamentos tribalistas de gente a quem dão o epíteto de negacionistas, e do magistrado, em retiro de funções, que não se cansa de pronunciar dislates, em gente considerada pelos piores motivos, onde o impropério, o ódio, a ofensa e a afronta são dominadores dos seus complexos e do seu baixo nível, considerado rasteiro. A barbárie na rua numa demonstração da fragilidade e de alguma impotência das forças que nos protegem e resguardam. Agora, que nos preparamos para um virar de página nas nossas vidas, recordemos uma figura ímpar da nossa história pátria, lembrado como um santo popular, amigo das nossas casas, caseiro, celebrado em noite que não mais finda, eivado de folclore, casamenteiro quanto baste, esquecido como elemento fulcral da cultura portuguesa, que muitos desconhecem e bastas vezes subtraído à lusitana nacionalidade, não fossemos italianos considerá-lo seu compatriota. Falemos de Santo António, que no dizer de Mário Gonçalves Viana, um dos seus biógrafos, foi o primeiro português que se universalizou, reinando em Portugal D. Sancho I. Não havendo certezas quanto à data do seu nascimento, ela ter-se-á processado em Lisboa nos finais do século XII, entre 1190 e 1195. Ainda segundo Amorim Viana, os pais que deveriam ter pertencido à nobreza, fixaram residência junto da Sé de Lisboa, onde o filho terá nascido a 14 de agosto de 1195, tendo sido baptizado pouco depois na Sé de Lisboa. Por seu turno, Maria Cândida Monteiro Pacheco, escreve que Santo António terá nascido no findar do século XII, cerca de 1192. A quarta exumação de Santo António, feita em Pádua, em 6 de janeiro de 1981 e os estudos médico-patológicos e antropométricos levados a cabo, permitem o estabelecimento científico da idade com que morreu, de 39 anos e 9 meses. Terá iniciado os estudos na escola da catedral, na escrita e na leitura, na língua latina que utilizará nos seus sermões, nas disciplinas do Trivium (Gramática, Retórica e Dialéctica), em rudimentos de Quadrivium (Música e Aritmética), além de Cômputo e Canto. Aos quinze anos ingressou na comunidade dos cónegos regrantes de Santo Agostinho no Mosteiro de São Vicente de Fora, que era um dos grandes centros intelectuais de Portugal, fazendo aí, provavelmente a sua profissão de fé, depois de um noviciado de um ano ou pouco mais. Movido pela vivência cultural e espiritual, transfere-se para Coimbra para o Mosteiro de Santa Cruz, compartilhando o prestígio e a protecção real, bem como a reputação dos seus mestres. O Mosteiro de Santa Cruz, fundado em 1131, inicia a vida em comunidade em 1132, aderindo à regra agostiniana por volta de 1134, ocupando um lugar de relevo na recepção e difusão da cultura patrística, relacionada com a filosofia cristã nos três primeiros séculos. Nessa época, Portugal era um país em crescimento, a dar os primeiros passos, com muitas dificuldades, no âmbito da instrução, sendo os clérigos incentivados a aprofundar os seus conhecimentos, ou demandar o estrangeiro, em busca do conhecimento. D. Sancho I (1154-1211), por sua vez, criou bolsas de estudo para que os cónegos regrantes de Santa Cruz pudessem estudar fora do país. Em Santa Cruz, a regra agostiniana baseia-se nas seguintes virtudes fundamentais: obediência, humildade e caridade, assentando a humildade num vector fundamental na vida de Santo António. Entre o Mosteiro de São Vicente de Fora e o de Santa Cruz, onde permaneceu cerca de oito ou nove aos e é ordenado sacerdote, dominam as temáticas do Direito Canónico, Ciências, Filosofia e Teologia, a nível superior, satisfazendo- -o o Mosteiro de Santa Cruz a nível intelectual, embora o tenha desiludido no plano espiritual, interessando-se ainda por obras de Medicina, Astronomia e Aritmética, reflexos da tradição da cultura moçarabe e islâmica, ainda presentes numa fase em que Portugal almejava pelo alastramento do cristianismo por todo o território ,não deixando de ser influenciado pela filosofia islâmica e aristotélica. Em Santa Cruz de Coimbra privou Santo António com os frades franciscanos estabelecidos nos Olivais, por volta de 1219, que vinham pedir esmola ao rico Mosteiro de Santa Cruz, havendo a registar o martírio dos cinco franciscanos em Marrocos e cujas relíquias foram trazidas para Santa Cruz em 16 de Janeiro de 1220, por influência do infante D. Pedro, o que impressionou profundamente Santo António, numa época em que o espírito da cruzada dominava a religião católica, levando Santo António a trocar Santa Cruz pelo eremitério dos Olivais. É a partir da troca do seu estatuto de cónego regrante de Santa Cruz pela sua condição de frade menor franciscano que se vai alterar de forma radical a vida de António, o que provocou o abandono do seu nome de registo de Frenando Martins ou Fernando Martins de Bulhões, filho de Martin de Bulhões e Teresa Taveira, para António, em homenagem ao santo Eremita do deserto, patrono da pequena igreja de Coimbra onde se havia instalado a primeira comunidade de cristãos. Dominado por uma profunda inquietação, o desejo de propagação da fé, alheio ao perigo que a sua atitude pode comportar, o seu objectivo leva-o até Marrocos. Terá partido com cerca de 25 anos, portanto, por volta de 1220, para pregar aos mouros e selar a pregação com o seu próprio nome. Alguma confusão em relação à sua ida para Marrocos. Frei António terá adoecido em África, o que o obrigou a regressar. Na sua itinerância ter-se-á debatido com uma tempestade que o arrojou à costa da Sicília, junto de Messina, onde será acolhido por uma pequena comunidade de franciscanos, conhecendo, depois, São Francisco, no Primeiro Capítulo Geral, de Assis. Neste primeiro encontro, Santo António passa despercebido, não indo além de um frade menor entre outros, ficando isolado e desconhecido, retirando-se para o eremitério de Montepaolo, entregando-se à oração e às humildes tarefas do quotidiano, pondo de lado o labor intelectual. Essa experiência de vida ascética e contemplativa, de despojamento radical, marca profundamente Santo António que terá iniciado a sua condição de pregador no Convento de Romanha, em Forlívio, possivelmente, em 1222, quando lhe pedem para dirigir a palavra aos ordenandos franciscanos, não porque estivessem certos dos seus dotes da Escritura, mas porque se sabia que falava latim. Embora Frei António resistisse, acaba por aceder, provocando espanto em todos os que o ouviram. Forlívio marca o início de uma actividade de pregador que o levará numa itinerância que não terminará. Pregando e ensinando Teologia, quer em Itália, quer no sul de França, Bolonha, Toulouse e Montpellier são alguns dos muitos lugares por onde Frei António passou o seu talento e o seu saber. Eram os franciscanos uma ordem à margem de todas as instituições do saber e do poder, com ausência de regras rígidas para a organização prática da vida das primeiras comunidades e um desinteresse em relação aos problemas dos estudos na Ordem fundada em 1209, sendo a sua regra aprovada em 1215 por Inocêncio III, referindo a tradição que São Francisco de Assis esteve na Península Ibérica, onde terá, ele próprio, fundado o convento de Bragança em 1214. Mereceria Santo António por parte de São Francisco total confiança, tendo a seu favor a sua pregação. A actividade parenética de Frei António vai abrir-se a um outro campo, o do ensino, facto profundamente significativo na época e com imensa projecção nos séculos futuros, tendo São Francisco incumbido Frei António do ensino da Sagrada Teologia aos frades, salvaguardando a hipótese deperderem o espírito da oração e devoção. É através de uma carta. Cuja autenticidade os estudiosos não põem em causa, que São Francisco se dirige a António: A Frei António, meu bispo (…) Agrada-me que ensines a Sagrada Teologia aos frades de modo que se não perca o espírito da santa oração e devoção como está escrito na Regra. E é com Frei António que se inicia a Escola Franciscana, construída de um modo original; a parenética no primado da comunicação entre Frei António e. os ordenandos. O púlpito, instrumento maior do apostolado, de quem um dia saíra de Lisboa parasse integrar nos meandros da fé e da evangelização, não temendo sofrer a condição de mártir como a dos seus arquétipos de Marrocos. Entre 1224 e 1227, encontra-se no sul de França, pregando e ensinando Teologia em Toulouse e Montpellier, desempenhando o cargo de custódio da província de Limoges. A Tomás Gallo, em Vercelli, deve Frei António a sua iniciação na Teologia Mística. A morte de S. Francisco em 1226 e a convocação de um novo Capítulo Geral para Assis fazem regressar Santo António a Itália. Participa no Capítulo de Pentecostes, de 1227e aí é eleito ministro provincial da România. Fazendo da pregação o seu modus docendi para chegar eficazmente às populações, lembremo-nos do Sermão de Santo António aos peixes, que no século XVII inspirou o Padre António Vieira. Ao passar por Rimini, em 1223 onde a heresia marcava um papel importante, abrangendo grande parte da população e a escassez de cristãos era gritante, Frei António terá manifestado o seu desagrado, trocando a pregação a pessoas por ouvintes-peixes. Vós, meus irmãos peixes, entre todas as criaturas viventes e sensitivas fostes os primeiros que Deus criou, entre todos os animais do mundo; e vós sois os maiores em número; vós os maiores na grandeza (…) Ah peixes! E como a vossa E como o vosso me edifica! Ah homens! E como o vosso desprezo me exaspera (…) É Frei António um teólogo inserido na Idade Média, de cultura universalista, dotado de uma memória prodigiosa, ao ponto de o Papa Gregório IX afirmar que verdadeiramente aquele varão de Deus era a arca viva do sagrado testamento, situando-se em colisão num movimento de não perfeita sintonia com algumas linhas do próprio cristianismo. A Igreja tem o poder do saber e quem domina o saber e a cultura é a classe eclesiástica. O saber é de muito poucos, é daqueles que seguiam a carreira eclesiástica, sendo o poder decretado pelos religiosos algo de perigoso. Era Frei António um individuo superior, hábil para poder dialogar numa posição crítica, não sendo Prisciliano ou Orígenes, não se coíbe de criticar certas práticas seguidas, censurando aqueles que por vanglória da celebridade transitória e ambição dedicam o seu tempo às ciências lucrativas, sem recearem a queda, intervindo, ainda, nas lutas fratricidas que ensanguentavam a Itália, o que revela uma autoridade moral e uma grande coragem. Com uma actividade evangelizadora invulgar, são- -lhe atribuídos milagres, ainda envida, havendo quem o considere o Celícola Português. Conhecido como pregador, Santo António chega até nós como o santo popular, folclórico, próximo do povo, adorado por aqueles que desejam chegar ao casamento, afinal, ele é muito mais do que isso. Ele foi o primeiro português que se universalizou, representando nos tempos mais remotos o espírito errante, tal como D. Pedro, Camões, Fernão Mendes Pinto, o Padre António Vieira e tantos outros que em terras estranhas deram a conhecer a existência do país Portugal. Lembrado pelo Padre António Vieira, no sermão pronunciado em 1670, na Igreja de Santo António dos Portugueses, em Roma, no Sermão de Santo António, ouçamo-lo: Sem sair ninguém pode ser grande. Saiu para ser grande, e porque era grande, saiu. Nascer Português era obrigação de morrer peregrino. Nascer pequeno, e morrer grande é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para nascimento e tantas terras para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer toda a terra; para nascer Portugal, para morrer o mundo. Os sermões chegados até nós, 77, segundo José Meirinhos, ou 86 peças literárias, conforme escreve Francisco da Gama Caeiro, ambos grandes estudiosos do taumaturgo de Lisboa, são pronunciados na língua dos destinatários, embora escritos em latim, são formas resumidas, expostas como que em esquema e não exactamente o que o Santo pregou e que prendiam o entusiasmo das massas que o escutavam e o absorviam o dia todo, sem lhe darem tempo para comer ou descansar, segundo Francisco da Gama Caeiro, tendo sido compostos “pra honra de Deus(…) edificação das almas e consolação tanto do leitor, como do ouvinte, em razão de “os pedidos e o amor dos confrades, que tal empresa lhe pediram””. Foram os sermões publicados em edição integral e bilingue, em latim e português, divididos em Sermões Dominicais e Festivos, numa edição em 2 volumes, saídos em 1987, com uma tradução do Padre Henrique Pinto Rema. Em 1231, sentindo aproximar-se a morte, sofrendo um ataque de hidropesia, pediu ao seu amigo, conde Tiso, senhor de Camposampiero que lhe preparasse uma cela no alto de uma grande e velha nogueira para assim habitar entre o céu e a terra, falecendo a 13 de junho em Arcella, num convento das Clarissas, estando na companhia do beato Lucas Belludi. Depois de grande disputa em torno do local onde o corpo deveria ser sepultado, o que levou a que o mesmo se conservasse insepulto durante quatro dias, foi, finalmente, para Pádua, o que levou os paduanos a gravarem na abóboda da basílica a seguinte inscrição: Pádua feliz alegra-te Porque o Tesouro é teu Começaram os enfermos a acudir ao túmulo milagroso, ao pé do qual se recobrava a saúde. Daí em diante as peregrinações eram constantes. Não havia ainda decorridos um mês, quando a cidade de Pádua requereu a canonização daquele que começou a designar-se pela única palavra O Santo. Onze meses após o falecimento do taumaturgo português, a 30 de maio de 1232, o Papa Gregório IX, que o ouvira pregar e com ele dissertara em Roma, publicou em Spoletto a bula canonizadora. De registar que a canonização de Frei António foi a que se processou, até hoje, em mais curto espaço de tempo. Na Basílica de Pádua guarda-se o túmulo de Santo António, cujo culto depressa se universalizou, sendo Santo António de Lisboa ou de Pádua, o mais universal dos portugueses. A 16 de Janeiro de 1946, o Papa Pio XII, elevou Santo António à categoria de doutor da Igreja com o nome de doutor evangélico, sendo o primeiro da igreja franciscana. Sem nunca ter entrado em guerras, ou ter vestido a farda de militar, Santo António “entrou” para o exército português no posto de soldado raso, para o 2º. Regimento de Infantaria de Lagos, até ser promovido ao posto de general dos exércitos e D. João IV. Num sermão pregado na Baía em 1638, o Padre António Vieira refere-se à intervenção milagrosa de Santo António na defesa da cidade da Baía, havendo os holandeses levantado o cerco que tinham posto à cidade. Numerosos regimentos começaram a tê-lo como oficial ou como simples patrono, não gozando Santo António das mesmas prerrogativas em toda a parte, não havendo uniformidade e unidade na situação militar do taumaturgo. Em cada regimento atribuíam-lhe um posto diferente, conforme o grau de devoção da oficialidade, sendo no Brasil muito apreciado. Dada a circunstância de Santo António ser oficial do exército português, acabava por auferir um vencimento pago pela nação, como qualquer outro oficial. Não existindo a pessoa de Santo António, quem recebia essas quantias? Umas vezes eram as irmandades de Santo António, outras, o soldo deveria ser pago à Ordem Franciscana. Os vencimentos foram pagos até 1904, ano até que o marechal brasileiro Dantas Barreto determinou a suspensão desse pagamento por falta de fundamento legal, passando, finalmente, a general, figurando no Anuário Brasileiro, na lista dos oficiais da reserva. Muito mais haveria para dizer, contudo o espaço do jornal limita-nos a informação. Outros dirão mais e melhor. Como um trabalho desta natureza não se faz a partir de nihilo, ele só foi possível graças a leituras feitas de obras de investigadores notáveis, cuja bibliografia omitimos, por não se tratar de um trabalho académico, mas tão só jornalístico: Francisco da Gama Caeiro José Francisco Meirinhos Maria Cândida Monteiro Pacheco Maria Celeste Natário Mário Gonçalves Viana E outros mais em obras dispersas.

Falando de... Torquato da Luz

Nunca pensámos que isto acontecesse. São muitos os que estas palavras pronunciam. São os nossos que a um ritmo vertiginoso nos vão deixando sem que possamos pronunciar um adeus. E os que cá ficam vão lamentando a ausência, lembrando tempos passados em que a felicidade ia prosperando. Recordamos os que partiram, como se eles fossem a razão do nosso existir. Capitulamos perante esta hecatombe cujo fim não mais chega e vivemos nesta incredulidade, aguardando dias melhores. É isto a vida… Espreita-nos a efemeridade da existência. O princípio esperança fará parte de todos nós. Tentemos ser fortes, estoicos, embora não nos esqueçamos nunca os que foram grandes entre nós e nos alegraram os dias. Em dia de aniversário serás lembrado, parafraseando o poeta. Nascera a 26 de novembro de 1943, no Algarve, em Alcantarilha, terra sua, que lembrou em poema com o mesmo título.

 
Aqui é que sou eu,
Aqui é que estou certo.
Regaço a que regresso,
Natural e liberto,
Neste chão que é o meu
Me recomeço.
 
Segundo consta da sua certidão de nascimento, nasceu Torquato dos Santos da Luz, às 19H00 do dia 26 de novembro de Cultura 1943, sendo filho de Domingos da Luz e de Maria dos Santos. Depois, de estudos primários na sua terra natural, rumou a Faro onde concluiu os estudos secundários. Seguiu-se a Universidade Católica Portuguesa em Lisboa, onde se licenciou em Ciências da Informação, defendendo a tese sobre “Direito à Informação e Direito à Intimidade”, tendo sido professor de Deontologia da Comunicação no Ensino Superior particular. Sempre ligado ao jornalismo, além de redator do Diário de Lisboa, foi redator no Diário de Notícias (1968 a 1975), redator e diretor no Jornal Novo (1975 a 1979), diretor de A Tarde (1979 a 1981), diretor do segundo canal da RTP, tendo dirigido o Gabinete de Estudos de Audiência, assessor do Conselho de Gerência da RTP (1981 a 1989) e membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social (1990 a 1999), eleito perla Assembleia da República. Foi, ainda, membro do Conselho de Imprensa, em representação dos diretores dos jornais diários, membro do Conselho Geral da ANOP, em representação da RTP, administrador ds Federação Portuguesa Século XXI, membro das Comissão Organizadora da 1ª Feira das Indústrias da Cultura, em representação da RTP e membro da Comissão Consultiva para a Rádio Difusão. De estro precoce, publicou o primeiro livro em 1963, dedicado à mãe, em edição do Jornal do Algarve, Poemas da Verdade, dividido em cinco partes, com 46 poemas. Não parou a sua atividade, tendo publicado os seguintes livros:
O homem na cidade, 1968
Voz suspensa, 1968
Lucro Lírico, 1973
Choque de Alegria, 1975
A Porta da Europa, 1978
Destino do Mar, 1991
Deserto Próprio, 1994
Ofício Diário, 2007
Por Amor e outros poemas, 2008
Espelho Íntimo, 2010
 
O homem na cidade constitui um conjunto de crónicas, publicado pela Prelo Editora, onde, além de Torquato da Luz, colaboram vários escritores, entre os quais Joaquim Letria, Fernando Assis Pacheco e José Carlos Vasconcelos. Choque de Alegria é um livro em prosa, com 26 textos, que a contracapas acrescenta que “ilustra(…) a tese segundo a qual o homem é produto, ou suporte da estrutura económica e social. Destino do Mar, publicado pelas Edições Margem, em 1991, apresenta um prefácio “Sobre a poética de Torquato da Luz”, de autoria de Carlos Lemonde de Macedo. Além das obras publicadas em seu nome, tem, ainda, obra dispersa em Antologias, como Poesia 70 e Poesia 71, da Editorial Inova, Vietnam, da Editora Nova Realidade, e 800 Anos de Poesia Portuguesa, do Círculo dos Leitores, Caliban ¾, Algarve “todo o mar”, “De Luz e de Sombra”, antologia poética, Papiro Editora, 2008, “Os Dias do Amor”, edição Ministério dos Livros, 2009 e “Divina Música- Antologia de Poesia sobre Música”, organização de Amadeu Baptista, Viseu, 2009. Hoje, pode-se afirmar que toda a obra de Torquato da Luz se encontra esgotada, sendo de difícil aquisição, mesmo, em alfarrabistas mais bem cotados. Ler Torquato da Luz em livros pequenos, facilmente manuseáveis, é uma manifestação de deleite, para quem à poesia dedica um pouco do seu tempo. São marcas de um lirismo que se engasta e não se esquece. Poemas facilmente memorizáveis, são uma manifestação de amor, escrita numa linguagem muito acessível, aliada a uma paixão, onde o erotismo parece perpassar a cada momento e a mulher é a manifestação de um desejo que se quer objetivar. Ela é a alma-mater que inspira o poeta apaixonado que parece biografar-se em cada texto, e onde não falta a imagem do mar que não se esquece. Um apontamento:
 
 Para Ti
Para ti quero a flora da madrugada, /a luz que chega dos lados do mar, /o cântico das ondas sobre a praia/e o voo sereno das mais raras aves. Para ti quero a estrela da manhã/a brisa que refresca o fim da tarde, /o sabor perfumado das romãs/ e a placidez do tempo das searas. Para ti quero isto, aquilo e tudo/o que cabe e não cabe neste mundo.
 
Revelação
Descobri que te amava/quando vi/ que ao pé de ti/o tempo se esfumava. 
 
Entretanto
Sei a linguagem dos teus olhos,/ aves de poiso vacilantes,/ sem gavinhas galgando/o muro dos dias Tudo é incerto e veloz/nada garante nada,/mas entretanto esses olhos/iluminam-me a casa. 
 
Contigo
Tudo é mais fácil quando estou contigo:/os medos interiores desaparecem/e em seu lugar de súbito florescem/ mil e uma formas de enfrentar o perigo/ que os momentos sem ti depois me oferecem.
 
Um poeta no mundo do inteligível, à maneira platónica, pedindo que o leiam. Partiu, deixando um legado no prazer da sua palavra para deleite dos que apreciam a bela língua portuguesa. Foi em 24 de março de 2013, aos 69 anos, na cidade de Lisboa, deixando um rasto de saudade nos que o amavam e o liam. Vimo-lo muitas vezes em Armação de Pêra. Sem saber que aquele chão era pisado por um poeta daquela estirpe. Lembramo-lo agora em tempos de aniversário…

Falando de … O Mandarim, de Eça de Queirós

Resignados na nossa condição de gente esperançosa aguardando melhores dias, até que tudo seja debelado, somos convidados para a leitura. Livros há muitos e muitos são os que estão ao nosso alcance. De leitura acessível, alimentam a nossa imaginação, trazendo-nos um bem-estar que muito ambicionamos.

Ler escritores portugueses em detrimento de estrangeiros, é uma manifestação de boa escolha. Somos herdeiros de uma literatura que nos honra e que nos apraz. Há os escritores que são nossos contemporâneos, entendendo aqueles cuja existência está próxima da nossa, e há os que nunca passaram de moda, conquanto tenham vivido em tempos recuados e que nunca passaram de moda. Teríamos um rol de não mais findar.

Com a China no nosso horizonte, cada vez mais próxima de nós, quer sob o ponto de vista comercial, quer pelas razões que estão na origem do mal que nos avassala, ler um texto que tenha a China dentro, é motivo que não rejeitamos. Se Camilo Pessanha e Venceslau de Moraes transportaram consigo o império celeste, sem esquecer Fernão Mendes Pinto, que na Peregrinação nos apresentou os bons costumes do Oriente, transportando consigo o anátema de Fernão! Mentes? Minto, voltar a Eça de Queirós é ler o que de melhor se escreveu nas páginas do texto português.

E a China lá está em O Mandarim, mais um sopro da boa literatura, na linha do que Eça nos legou.

Lemo-lo de um fôlego. É verdade que um livro se lê tantas vezes quantas as necessárias. Neste momento de Páscoa em clausura, O Mandarim que cheira a chinês, preenche-nos o prazer do texto. Ligados a Teodoro e de braço dado com a personagem principal, somos levados para um mundo que não se sabe para onde vai e até onde chega. História hilariante a mostrar o poder da pecúnia. Mudam-se os dinheiros, mudam-se as vontades…

Escrita de grande leveza e simplicidade. Acessível a qualquer leitor. Uma espécie de ensaio, onde não falta um propósito de vida. Lê-se bem e com prazer. Nós recordámo-lo e voltámos a apreciar. Esquecemo-nos do tempo que passa e usufruímos do prazer da vida, agora que ela nos é tão madrasta.

Falando de... Maria Browne

Facilmente caímos no esquecimento. A efemeridade da nossa existência, a dimensão da nossa memória ostraciza-nos, para sermos recordados no dia em que nascemos e em que morremos. É este o ciclo de vida. Ontem, importantes. Hoje, uma vaga lembrança. Depois, há os que nos retiram do olvido, recordando a nossa existência, preferencialmente, no que tivemos de melhor.

Recordemos, hoje, alguém, que no seu tempo foi importante na poesia. Uma figura que a nossa vida de leitores encontrou na antologia do conhecimento literário: Maria da Felicidade do Couto Browne, filha de Manuel Martins do Couto e de Margarida Máxima Joaquim Guimarães. No Porto nasceu a 10 de Janeiro de 1797, apesar de alguns dos seus biógrafos a considerarem nascida em 1800. Aí faleceu em 1861.

Enriquecida pelo casamento com Manuel Browne, filho do cônsul de França, que muito vinho do Porto exportava, tinha uma propriedade em Gaia, na Calçada das Freiras, a Quinta da Fonte Santa, onde dava jantares e grandes festas. Passeava- -se pelo Jardim de São Lázaro e pelos Clérigos. Tinha belos cavalos, barcos de recreio no rio, tudo o que era necessário e desnecessário. Vida larga e ociosa, com viagens pelo estrangeiro.

Deve ter sido dada a esmerada educação, dando ares de conhecer francês e inglês e alguma mitologia. Cita autores ingleses, tomando uma frase de Shakespeare “Trifle, light as air” para epígrafe de um dos seus poemas e para capa do livro Soror Dolores, nome por que ficou conhecida nos meios literários portuenses, da época.

Escrevendo, desde a sua juventude, publicou poesia em jornais literários e políticos do Porto, com os pseudónimos de A Coruja Trovadora e Soror Dolores. Lembremo-nos de O Nacional, Miscelânea Poética, Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro e O Bardo.

Após o casamento, achando-se senhora de grande fortuna, amiúde abria os salões da sua casa, que se transformou, em pouco tempo, num verdadeiro cenáculo literário, onde se reuniam as mais célebres personalidades artísticas e literárias da época, como Arnaldo Gama, Ricardo Guimarães, Faustino Xavier de Novais e Camilo Castelo Branco, que lhe estimulou a vocação e motivou a quase totalidade das obras, por volta de 1840-1850 e 1851, que foram anos de grande produção literária.

Em 1855, na Revista Peninsular, tomo II, página 314, é considerada a primeira poetisa portuguesa. A utilização de pseudónimos escondia a autoria, sendo os vários exemplares editados, destinados a ofertas particulares. Numa época em que havia algum recato face à circunstância das senhoras se dedicarem à literatura, Maria Browne tinha o cuidado de escrever nas obras que oferecia “Para não passar a outra mão”; apesar desta advertência, consta que, após a sua morte, em 1861, um dos filhos tentou destruir os pouco exemplares que restaram, para evitar escândalo, para que a honra da mãe, da família, ficasse intacta. Camilo, visita assídua da casa, talvez na mira de alguma paixão, ter-se-á envolvido com Maria Browne, por volta dos anos cinquenta, do século XIX. O poeta de Seide não teria mais que vinte e cinco anos. Maria Browne cerca de cinquenta.

Camilo dedica-lhe o drama O Marquês de Torres Novas para, depois, escrever no periódico O Nacional, lindos versos plenos de paixão.

Vitorino Nemésio que, de literatura muito sabia e dos seus autores ainda mais, deliciava-nos na televisão, fazendo um apelo à memória, no programa “Se bem me lembro”, serve-nos de apoio para falarmos de Maria Browne. Relata-nos um naufrágio ocorrido em 1852, na barra do Douro com o vapor Porto. Socorreram os náufragos, um jovem portuense, Ricardo Browne, rico e desenfadado. A proeza valeu-lhe a Torre e Espada; ao pai, Manuel de Clamouse Browne que levou a sua assistência às vítimas a ponto de dar 10 contos para o fundo de uma Sociedade Humanitária, trouxe comendas e as bênçãos ao povo portuense.

A intimidade entre Camilo e Maria Browne não deixou de ser tida em conta pela família da mulher amada, resultando daí bengaladas que Ricardo Browne, filho de Maria Browne deu e levou, para além de um duelo à espada, de onde Camilo saiu ferido numa perna, que lembrará no volume terceiro de Noites de Insomnia, n.º 7, Julho de 1929, página 80, “Ridículo me vi eu dez anos depois, quando saía de um duelo com uma cutilada”.

Ricardo era um dos filhos de Maria Browne e o que mais se celebrizou no meio portuense. Mundano, gostava de música, tocando violoncelo, jogava armas, fazia charadas e versos às damas, dizia ser o primeiro a conduzir um phaéton, um dog-cart, uma charrette de nova invenção. Era um dândi, culto e viajado, que a juventude tomava como modelo de elegância.

Para além de Camilo que a inspirou, da forma que retratámos, Garrett, com quem se correspondia, também lhe dedicou algumas das suas poesias. Com uma produção limitada, dados os condicionalismos da época, publicou poesia em edições de escassa tiragem: Soror Dolores, Porto, 1849, Virações da Madrugada, Lisboa, 1854 e A Coruja Trovadora, sem data, nem local de impressão, que nunca foi posto à venda. As edições eram progressivamente ampliadas, com alterações nas suas sucessivas publicações.

Jacinto do Prado Coelho considera-a, a Florbela, do Ultra-Romantismo. Alguns temas presentes no seu trabalho retratam uma vida supostamente inconsequente, que não conseguiu disfarçar na sua produção: o amor infeliz, as flores desfolhadas, símbolo de uma juventude destruída pela vida, apesar de um casamento que lhe proporcionou um bem-estar financeiro que não lhe transmitiu felicidade. Poesia fúnebre e nocturna, onde a morte é suscitada a cada passo, tendo presente o cemitério como local de refúgio e de meditação. O macabro e o espectacular, ao gosto da época, fazem lembrar, por vezes, Soares de Passos, paradigma do seu tempo, exemplificado pelo Noivado do Sepulcro, embora o cunho erótico sobressaia, em momentos.

A natureza e as flores são temas dominantes numa poesia onde o feminino é característico, denunciando um destino a que não pode fugir, dada a sua condição de mulher. E nas palavras se vai acoitando, parecendo estabelecer uma conflitualidade com um mundo que está lá fora e com o qual se incompatibilizou. A resignação e um estoicismo forçado configuram a vivência de um sujeito poético que não é capaz de se cindir enquanto cidadã e amante carente e desiludida.

A poesia é para Maria Browne o reduto do amor, o esconderijo de uma vida que no papel, através de um pseudónimo que poucos conhecem, encontra um lenitivo para uma vida que tenta a felicidade que não encontra. Dos seus textos infere-se uma manifestação de biografismo, tão ao gosto do romântico, onde o fingimento ainda não chegara. O amor fogoso e fátuo, seguido do abandono manifestado através de versos que ultrapassam as fronteiras dos salões onde rodopiavam corações procurando a felicidade que não chegava.

Não foi sonho!... Neste mundo Também com delírio amei

E porque, provavelmente, não foi amada, confessará:

E por quem eu me perdia Era um rochedo com voz

Uma poesia assente num sujeito que não se desmistifica, sustentada num pilar que ultrapassa as fronteiras do quotidiano, apazigua-se nos meios que o poema lhe confere:

Essa vida negativa

Em que orgulhosa e cativa

A mulher entre esplendores

Se ostenta iludindo o mundo

Enquanto d’alma no fundo

Está sofrendo atrozes dores

Na confessionalidade da poesia, vai-se desvendando, desnudando, como se o leitor dos seus textos fosse, afinal, o confidente de um existir que vive no inteligível de si. Lamentando não possuir o génio de Madame de Staël ou de George Sand, porque o génio abranda o preconceito “contra o sexo infeliz”. Numa época em que o papel é o grande confessor da mágoa que o sujeito poética arrasta, nada melhor que a palavra escrita para desanuviar uma mágoa que se transporta e que dificilmente se abandona. O eu, plasmado no texto, mostra um poeta em busca do refrigério, consolo e apoio que nada, nem ninguém, concede. A vida de sociedade, vazada na poesia, onde esconde o que poucos devem conhecer porque a poesia é para “não passar de mão”, destina-se aos íntimos, não obstante ter chegado até nós numa leitura onde a individualidade e o preconceito histórico-social se compaginam.

O meu jardim acabou

Já não tenho mais que dar

Para dele me lembrar

Só uma silva ficou

Selvagem, que se criou

Para prender e rasgar

Na sua autobiografia sentimental, à maneira ultra-romântica, no Prado do Repouso dedicado a “Ninguém”, pseudónimo utilizado, por vezes, por Camilo, faz-se estátua de campo:

Funéreas lajes procuro

E vou-me nelas sentar

E com o mundo invisível

Horas e horas falar

Atingindo uma forma de paroxismo, num eu que se vai desmantelando, escreve:

Mas eu não sou estrela,

nem forma, nem flores…

Sou triste mulher

Tristeza, vida e morte, timbram nesta senhora do Porto, incapaz de vencer a angústia que a domina e o niilismo que dela se apodera. Belo retrato a servir de exemplo a Schopenhauer:

Deliro?!... que esta alma ufana

Desejo que não tem nenhum;

Entre mim, e a espécie humana,

Que pode haver de comum?...

Se ainda não pertenço à morte,

Também não pertenço à vida;

É um mistério esta sorte

Especial e mentida.

Neste momento da escrita em que abordámos o pensamento Nemesiano, acrescenta o mestre açoriano “depois de Garrett e Soares de Passos ela é o nosso melhor poeta romântico”.

Procurando na agressividade do tempo, inspiração para o seu estado de espírito, O Inverno é, também, leit-motiv para o seu poetar, como por exemplo no poema O Inverno de que transcrevemos duas quadras:

Inverno, estação da morte,

Do luto da natureza

Como em ti, em mim só reina

Agitação e tristeza

De ti as aves se afastam:

De mim os risos, e as graças!

Ventos contrários te agitam;

A mim constantes desgraças

Maria Browne, mulher do seu tempo, de estro poético, animadora, burguesa transportada a uma condição social elevada, por força do casamento, é, nos nossos dias, figura que poucos conhecem, e que os livros eternizaram, é, hoje, lembrada em páginas de jornal a mostrar aos vindouros, os que fizeram deste país, a singularidade da sua cultura, lutando contra o esquecimento, obstinadamente ouvintes de Fernando Pessoa:

Senhor, falta cumprir-se Portugal…

Falando de... Pedro Ivo

Que poder a toponímia tem sobre a mente de todos nós!!! Da raridade das placas toponímicas nos lugares menos populosos, privilégio para vilas e cidades, hoje, pode dizer-se que não há lugarejo que não tenha uma placa a indicar o nome de uma rua, de um lugar ou de uma praça. Eternizam figuras ilustres e acontecimentos locais ou nacionais

Orientamo-nos pelas placas para chegarmos ao que buscamos. Mas se as placas nos orientam no espaço, levam um pouco longe a nossa curiosidade. Quem é aquele ou aquela, acontecimento ou facto que se quis lembrar?

E o curioso que não se fica pelo nome, quer saber mais. E, é certo, que sempre se encontra.

Saber quem é Pedro Ivo, postado em Rua da Amadora ou do Porto, suscita em nós o desejo de saber. O homem, de seu natural, curioso, procura para encontrar e leva ao sucesso, a sua pesquisa. Nomes esquecidos, caídos na arqueologia do olvido, volvem até nós através do conhecimento do espaço. Nomes ostracizados, esquecidos, que, provavelmente, terão sido importantes no seu tempo, mereceram da parte da edilidade local, o tributo que ultrapassou o tempo e o local e se tornaram figuras importantes, a merecerem honras de cidadania, numa imortalidade peculiar que chega aos nossos dias, merecedora de um olhar, que, por vezes, espanta e provoca interesse Pedro Ivo. Quem foi? Porquê aqui? Que fez? Um naipe de perguntas que só os livros mais antigos actualizam. Foi escritor. Nasceu a 15 de Janeiro de 1842, tal como Antero de Quental. A cidade do Porto ouviu os primeiros vagidos. De Ponta Delgada acenou Antero que um dia, a 11 de Setembro de 1891, poria ponto final ao seu ciclo de vida. De seu nome, Carlos Lopes, filho de Carlos Lopes, vereador na Câmara Municipal do Porto, do pelouro dos Expostos, de 1858 a 1862, grande bibliófilo e autodidacta, homem de grande prestígio na cidade do Porto.

Repartiu a sua vida pelo Brasil e pela Alemanha. Tendo manifestado interesse em formar-se em Direito, devido à oposição do pai que se matriculasse na Universidade de Coimbra, partiu para o Brasil em 1861, tendo trabalhado na firma Rocha Lopes & Leite. Doente asmático regressa a Portugal.

Posteriormente, desloca-se para a Alemanha, onde se dedica à actividade comercial e prática da língua alemã. Em Hamburgo, cidade onde viveu, fala fluentemente alemão, o que lhe servirá para a actividade comercial que irá desenvolver no Porto, onde ocupará lugares de relevo na vida empresarial, entre os quais destacamos: guarda-livros, secretário do clube de Agramonte, presidente da Associação Comercial do Porto, Director fundador do Banco Aliança, Vogal da Comissão Reguladora dos Vinhos do Alto Douro, Director da Equidade, Presidente da Assembleia Geral da Associação Comercial de Beneficência, Conselheiro da Misericórdia, Director da Nova Companhia de Utilidade Pública, Real Companhia dos Caminhos de Ferro de África.

A par da actividade profissional, tem colaboração literária no Comércio do Porto, onde publica contos e poemas que sairão posteriormente em livros. O seu primeiro texto, um conto, será publicado em 27 de Abril de 1873, no Comércio do Porto, com o título O Milagre. Toda a produção de Pedro Ivo encontra-se, hoje, esgotada, aparecendo, raramente, em alfarrabistas. Dos seu livros publicados, citamos Os Contos, em 1874, de que destacamos A Quina de Espadas, saído autonomamente, na Pequena Antologia de Obras Primas – Mosaico, sem data, cuja acção decorre em Trás-os-Montes.

No mesmo ano sai o romance Selo de Roda, com cerca de seis edições, representado no teatro Baquet, após Os Fidalgos da Casa Mourisca, com grande sucesso, na sequência da escola do romance português iniciado por Júlio Dinis. Um título que por pouco não serviu de tema para o cinema, a merecer os maiores elogios na época, nas páginas de O Comércio do Porto de 30 de Abril de 1878, pela mão de Júlio Lourenço Pinto. Em conferência proferida em 27 de Abril de 1942, por Joaquim Costa, realizada nos Estudos Portugueses, na cidade do Porto, na época terá provocado choro convulso a leitores, bem como a mais intensa e humana emotividade.

Às páginas escritas por Pedro Ivo, não foram indiferentes as grandes figuras da época, que o classificaram na linha de Júlio Dinis e de Rodrigo Paganini, célebre pelos Contos do Tio Joaquim.

Quando, em 1874, foram publicados Os Contos, Camilo Castelo Branco, saudou-o calorosamente, escrevendo:

Formoso livro! Dir-se-ia que Júlio Dinis, viajor eterno das regiões luminosas, deixou na inteligência e no coração dos que mais perto o conheceram e amaram, as serenas imagens das suas visões, as maviosas figuras dos seus quadros, a sua indulgência e conformidade com que ele florejava de nenúfares os pântanos da vida.

Escrevendo ao ritmo da época, é natural que Pinheiro Chagas, célebre pela sua intervenção na Questão Coimbrã, a par de António Feliciano do Castilho, sublinha:

pequenas obras primas adoráveis miniaturas;

É realmente um romancista encantador, uma individualidade vigorosa e portuguesa de lei esse escritor que se oculta debaixo de um modesto pseudónimo.

Pedro Ivo que buscou o seu pseudónimo num capitão brasileiro que chefiou a revolução republicana de Pernambuco, de 1848-1849, acabando por morrer no mar, recebeu os maiores encómios dos homens de letras do seu tempo, como Fialho de Almeida, Oliveira Martins e Rodrigues de Freitas. Alexandre Herculano, conhecido pela sua verticalidade, exigência, rigor e imparcialidade, escreve em relação a Pedro Ivo:

Os seus contos, no meio de tanta coisa que por aí se escreve, fizeram-me singular impressão. Nessas narrativas singelas de coisas simples, das peripécias vulgares da vida humilde, das existências obscuras, surge, como o sol por entre nuvens sombrias, um grande escritor.

E do grande escritor ficaram os livros que escreveu e algumas homenagens que o recordam com grande aprazimento. Do filho, Fernando de Macedo Lopes, fica-nos a recordação de um homem de talentos e de um pai que não quis esquecer. O Limbo de Pedro Ivo, saído em 1926, recorda-o para comemorar e celebrar, além das palavras toponímicas que não apontam somente lugares, mas lembram os que nesta terra que é a nossa, foram famosos e merecem ser revistos e lidos.

Faleceu no dia 4 de Outubro de 1906, no n.º 41 da Avenida de Carreiros, na Foz do Douro, onde então passava férias. Asmático. Pneumonia. Um dia doente. À noite adormeceu… e morreu.

 

Não foi adoptado o acordo ortográfico.

Falando de... A morte de D. João II

É um ícone do saber português. A nossa alma e o nosso desespero. Aprendemos a ler com ele, com Camilo, Portugal nos seus costumes, nos seus hábitos, nos amores e desamores.

Expurgado do ensino, voltar a este escritor versátil, inconstante e irregular tem sempre algo de estranho e de novo para nos deleitar. Autor de uma obra ingente, grandiosa, legou-nos a compreensão de um Portugal diverso através de dramas, comédias, romances, histórias, folhetins, poesia, polémicas, jornalismo: o quotidiano na sua vulgaridade e na sua plenitude, janela onde nos debruçamos e observamos figuras que ele construiu e animou com o segredo e a força do seu génio.

Ao longo das suas páginas, a vida pulsa em espírito e emoção, em luta e disputa, em carne e sangue, em ciúme e vingança, em ódio e amor, em liberdade e sequestro, em amor exacerbado, onde o romantismo se afina no seu maior esplendor.

Ambições, interesses, virtudes e vícios configuram o Portugal que fomos herdando, língua na sua plasticidade e beleza, definindo-se como a língua de um romancista português, escrevendo em português, retratando tipos genuinamente portugueses e onde muitos dos escritores actuais encontram inspiração e modelo para a sua criatividade.

Embora tenha escrito e vivido uma conturbada existência que o levou ao suicídio em 1 de Junho de 1890, Camilo Castelo Branco, autor de uma das obras mais prolixas da Literatura Portuguesa é, ainda, um escritor para todas as idades e onde se bebe um saber que poucos nos proporcionaram.

De um ecletismo invulgar, numa época em que os meios disponíveis eram escassos, encontramos em Camilo Castelo Branco um conjunto de conhecimentos que dificilmente vemos noutros produtores literários.

Regressados a Camilo, a leitura de Narcóticos, nome estranho para a época e cheio de actualidade para os nossos dias, conquanto por motivos diferentes, obra publicada em 1882, renovou-nos o interesse pela morte de D. João II, a partir de Garcia de Resende, moço de escrevaninha do Príncipe Perfeito. Ricardo Jorge também trouxe à superfície matéria suficiente para a deslindar de algum mistério que ainda perpassa em torno do rei que primeiro imaginou o percurso marítimo para a Índia.

O capítulo sobre a morte de D. João II, presumivelmente envenenado, ocupa uma boa parte de Narcóticos. Tem o título de “Traços de D. João 3.º”, julgamos que por engano. Camilo na origem do nosso interesse, suscitando outras leituras que desenvolveremos ao longo do nosso texto.

A vontade do esclarecimento em aberto de há muito, chegara de forma muito nublada. Garcia de Resende (1470-1536) que ao rei dedicou cerca de 400 páginas, na Crónica de D. João II e Miscelânia, publicada pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, em 1973, num livro em que o encómio aparece a cada momento ao ponto de lhe transmitir um cunho de santificação e onde a verdade nem sempre impera, afirma que D. João II era um homem de muito bom parecer, e bom corpo, de meã estatura, mais grande que pequeno, muito bem feito, e em tudo muito proporcionado, airoso e de tanta gravidade e autoridade, que entre todos era logo conhecido por Rei; o rosto tinha algum tanto comprido, o nariz em boa maneira, a boca muito bem feita, os dentes alvos e bem postos, olhos pretos, graciosos, e de muito boa vista.

Nas coisas de prazer era alegre, de muitas graças, rosto corado em boa maneira, a barba preta e bem posta, o cabelo castanho e corredio, e aos 37 anos tinha muitas cãs, na barba e no cabelo, de que mostrava contentamento.

Mãos compridas, alvas e formosas, pernas grandes e muito bem feitas. Até aos 30 anos foi muito bem disposto, e daí por diante engordou alguma coisa.

Muitos dos elementos biográficos acerca de D. João II foram pesquisados a partir da Crónica de Garcia de Resende, redigida em Évora, por volta do primeiro decénio de mil e quinhentos sobre notas e lembranças que o autor coligiu ao longo da sua vida que vai, seguramente, de 1470 a 1536, cerca de trinta anos após a morte de D. João II, em 1495.

Anteriormente a Garcia de Resende, Rui de Pina (1440-1522), cavaleiro da casa del-rei, guarda-mor da Torre do Tombo, deixou escrita uma crónica sobre D. João II. Comparadas as duas obras, verificamos que alguns capítulos são idênticos, o que leva a supor que Garcia de Resende copiou muito dos seus escritos por Rui de Pina, suscitando por isso a censura dos estudiosos de D. João II, nomeadamente de Alberto Martins de Carvalho que afirma que “o autor cometeu um dos casos mais completos de espoliação literária que se conheceu na cultura nacional”.

Joaquim Veríssimo Serrão, notável estudioso da obra do rei português, mostra-se mais brando na apreciação a Garcia de Resende, aliviando “o moço de escrevaninha”, permitindo-nos parafrasear o que sobre o assunto escreveu, afirmando que nem todas as cópias se podem entender como plágio, tudo dependendo das condições em que se operou e do limite que ela atingiu. Dadas as atribuições de Rui de Pina na corte, encontrava-se o manuscrito na livraria real acessível a quem o quisesse manusear, fácil seria a Garcia de Resende consultar um texto que, servindo de inspiração, lhe forneceria elementos preciosos e indiscutíveis acerca do “seu rei”, amo e senhor. Por outro lado, afirma Veríssimo Serrão, os cânones da época não obrigavam um autor a citar fontes manuscritas, pelo que o silêncio de Garcia de Resende em relação ao cronista oficial não pode traduzir um sentimento de má fé ou de impudor.

Rui de Pina vira D. João II à distância, ainda que vivesse junto da corte, ao passo que Garcia de Resende conheceu-o na sua privacidade diária. No dia da sua morte, em Alvor, Garcia de Resende esteve presente e, segundo escreve “A mim, Garcia de Resende, não tinha porta”, enquanto os outros cortesãos “entravam apenas quando el-rei o mandava”.

De Garcia de Resende sabemos que o rei exaltava muito as honradas donas, e quando lhe queriam falar ia ouvi-las em algum mosteiro, ou igreja afastada, que o não ouvissem, fazendo muita honra às virtuosas religiosas, e aos bons religiosos. E sendo um príncipe muito amigo das mulheres, depois que foi rei, foi nisso tão temperado e casto que se afirma que nunca mais conheceu outra mulher senão a sua. Foi muito católico e em grande maneira amigo de Deus, e temente a ele muito devoto de paixões de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Sagrada Virgem Nossa Senhora.

Não obstante esta informação de fidelidade que Garcia de Resende nos presta, sabendo do contrato nupcial com D. Leonor, assinado em Lisboa a 16 de Setembro de 1473 e do nascimento de D. Afonso, filho legítimo, a 18 de Maio de 1475, D. João foi pai do bastardo D. Jorge, nascido a 14 de Agosto de 1481, fruto da sua relação com D. Ana Mendonça, mulher muito fidalga e moça formosa de muito nobre geração. Potencial herdeiro do trono, pela morte de D. Afonso, é retirado discretamente da corte “por se não espertar mais dor à Rainha”.

A vida do rei processava-se entre Lisboa, Évora e Arraiolos. A peste que grassava nesta época obrigava o monarca a sair frequentemente da capital. Não alimentando uma saúde que lhe proporcionasse algum bem estar, a morte do filho D. Afonso, com 16 anos e vinte dias de idade, casado durante sete meses e 22 dias, agrava o seu estado de saúde. Para esta quebra, suspeitaram de peste ou de peçonha, ou da água que bebeu na Fonte Coberta, em Évora, que provocou a morte de Fernão de Lima, seu copeiro-mor, Estêvão de Sequeira, copeiro e de Afonso, fidalgo, homem de copa. Por outro lado, por uma mulher religiosa, foi el-rei avisado que se guardasse da peçonha que lhe ordenavam dar; el-rei não lhe deu crédito, e quando se sentiu mal, mandou chamar a mesma mulher que lhe lembrou que da primeira vez, ele não lhe tinha dado crédito; provavelmente já teria recebido a mesma peçonha. El-rei agradeceu e pediu-lhe que não dissesse a ninguém.

Em 1492, estando em Lisboa, no mês de Maio, vieram-lhe grandes acidentes e desmaios, estando muito mal em casa da rainha. Até aos 37 anos nunca bebeu vinho. Começou a beber a 17 de Maio de 1492, tendo daí em diante, bebido com grande temperança. Em 1493, em Torres Vedras esteve el-rei muito doente e perigoso e na doença prometeu ir a pé ao mosteiro de Santo António de Castanheira, da Ordem de São Francisco, o que não aconteceu. No Verão de 1494, encontrando-se em Setúbal, localidade húmida, contrária à sua saúde, sofrendo o rei de hidropisia, o rei e rainha decidiram passar o Inverno na cidade de Évora, o que contribuiu para a sua melhoria, indo muitas vezes à caça, bem como ver corridas de touros.

Sempre em busca de um clima que se compatibilizasse com o seu estado de saúde, D. João II vê a sua situação piorar em Julho de 1495, encontrando-se em Alcáçovas perde o gosto de comer, não tendo prazer em coisa alguma.

Nos fins de Setembro, os principais físicos existentes no reino e que acompanhavam o monarca, concordam em enviá-lo para as Caldas de Monchique ou de Óbidos, conquanto o rei já tivesse pensado em passar o Inverno em Santarém. Nas Caldas de Monchique sentiu-se muito contente, admirando fauna e flora. Fruto de algum cansaço, resultado de banhos tomados nas Caldas, sentiu uma grande dor no estômago, ficando muito agastado e triste, perdida a esperança de recuperar a saúde que julgou ter uns dias antes. Muito fraco, cavalgando num cavalo, instalou-se na casa de Álvaro de Ataíde, em Alvor. D. Jorge, o filho bastardo que o acompanhava, foi mandado para Portimão, denominada à época de Vila Nova, servido por Dom Martinho, senhor da Vila. Achando-se cada vez pior, desejou muito ver a Rainha sua mulher e o Duque seu primo, que se encontravam em Alcácer do Sal. A rainha por se encontrar doente, mal disposta, não podia ir. Ao Duque de Beja, futuro rei D. Manuel rogou muito que o viesse ver, não o tendo feito, por ter sido aconselhado a não ir, embora já tivesse iniciado a viagem.

No último estertor, chorando muito, pediu para que o não confortassem “que eu fui tão mau bicho”. No fim do seu percurso vital declarava “Não me chameis Alteza, que não sou senão um saco de terra, e de bichos”. “Fui tão mau bicho que nunca me acenassem que não mordesse”.

No testamento, declara herdeiro o Duque de Beja que governará com o nome de D. Manuel I, pedindo para proteger D. Jorge que será Duque de Coimbra, senhor de Montemor-o-Velho, com as vilas que tinha o infante D. Pedro, seu bisavô.

Faleceu no dia 25 de Outubro de 1495. Era domingo. Pediu que o levassem para a cidade de Silves e lançassem o seu corpo na Sé, e depois levassem daí as ossadas ao mosteiro da Batalha. Tinha 40 anos e seis meses, sendo casado com D. Leonor durante 25 anos. Reinou 14 anos e dois meses, sendo muito virtuoso na vida, segundo Garcia de Resende. Quando o enterraram lançaram três alcofas de cal virgem para ser comido mais cedo, e quando o desenterraram cuidando achar somente os olhos, acharam-no todo inteiro, que se conhecia como em vivo, exalando um suave cheiro não identificado, cheirando muito bem. Esteve na Sé de Silves até 1499. As tábuas estavam quase queimadas pela cal, bem como uma alcatifa e lençol. O corpo estava inteiro, com um cheiro singular, com as suas barbas e cabelos na cabeça e nos peitos, e pernas e braços e estômago teso como se fosse vivo. Puseram-no noutro ataúde, coberto de brocado carmesim, embrulhado num lençol de holanda. O ataúde em que jazia foi todo desfeito em rachas e levado por relíquias.

Garcia de Resende, depois de declarar que acabou santamente, em forma de epitáfio escreverá “e assim jaz o Santo Rei, onde Nosso Senhor por ele fez muitos milagres”.

A leitura de Garcia de Resende pode-nos abrir o campo para um fim infausto para D. João II, embora cubra a vida do rei de uma santificação e de um percurso imaculado que não corresponde à verdade, escamoteando muito do que foram as vinganças levadas a cabo pelo rei numa tentativa de extermínio dos seus opositores. Ainda hoje restam dúvidas sobre o seu falecimento numa vida tão curta. Quarenta anos, confessemo-lo, é tempo escasso para a vida de um monarca que dispunha de vastos meios para a sua prosperidade. Braamcamp Freire, Oliveira Martins e Manuel Bento de Sousa perfilam-se entre aqueles que aceitam a hipótese de envenenamento, ao invés do conde de Sabugosa e António de Lacerda.

No seu cofre particular, na sua “boeta” não encontraram qualquer tipo de veneno, depois do Bispo de Tânger e do Prior do Crato, secretamente, o terem aberto e não terem encontrado mais que um confessionário, duas disciplinas e um celício.

Regressados a Camilo Castelo Branco que nos suscitou o interesse pela morte de D. João, afirma no 1.º volume de Narcóticos:

Todos os historiadores da Península concordam que D. João II foi envenenado por mais de uma vez.

Escreve Camilo na página 25 do referido volume:

Garcia de Resende refere que a primeira dose de peçonha propinada ao seu real amo foi em 1491, quatro anos da sua morte, na ocasião em que se festejavam em Évora, onde estava a corte, nas bodas do príncipe. Findas as festas, o rei, deixando a rainha doente, foi com alguns fidalgos, foi para a Herdade da Fonte Coberta a meia-légua de Évora. Aqui bebeu água dum jarro colhida na sua fonte predilecta e começou logo a sentir-se agoniado, com grande enfartamento e laxidão intestinal. Recolheu-se à cidade, medicaram-no e melhorou. Passados dias sofreu novo insulto de que se recobrou mas perfeita saúde nunca mais a teve. Para confirmar as suspeitas do veneno, três fidalgos que tinham bebido da mesma água, morreram com as mesmas ânsias e desinteria.

Continuando a pleitear, argumenta que em Maio de 1492, nos aposentos da rainha ter-lhe-ão dado peçonha em Lisboa. Esteve muito perigoso à morte. Do que lemos, não consta na Crónica de Garcia de Resende que lhe tenham dado peçonha, embora tivesse estado muito perto da morte.

Quando os médicos o consideravam perdido, no último dos ataques, o rei tivera grandes altercações com a rainha em Alcáçovas, por causa do bastardo que D. Leonor repulsava da sua convivência, reagindo às cóleras do marido, segundo Camilo.

Quanto à trasladação do corpo de D. João II e à sua exumação, Camilo acrescenta que o corpo estava intacto, faltando unicamente a ponta do nariz. Tentando esclarecer a incorrupção do corpo de D. João II, Camilo consulta o lente da Escola Médico-Cirúrgica, José Carlos Lopes que lhe presta um primeiro esclarecimento acerca das condições do terreno onde o indivíduo é sepultado, doença, hábitos, época da inumação, condições atmosféricas, etc. Depois, em notas em francês, que nos permitimos traduzir, lê-se:

Pretendeu-se que os cadáveres dos indivíduos envenenados com arsénico eram mais lentos a putrificar-se: mas ao menos este efeito não é constante.

Um facto que não deve passar em claro, é que o cadáver dos indivíduos mortos na sequência duma intoxicação pelo ácido arsénico, ou arsénio propriamente dito, apresentam assim que o tóxico teve tempo de se espalhar pelo corpo todo uma grande resistência à putrefação podendo mesmo mumificar-se ao fim de um certo tempo.

Um facto digno de realce, é o estado surpreendente de conservação em que se encontra muito tempo após a morte, os órgãos que foram especialmente afectados pelo veneno; o estômago e os intestinos conservam durante anos os traços bem marcados da inflamação, violência de que eles foram a principal origem.

Nalguns casos de envenenamento com arsénico, observou-se um atraso na putrefação e na mumificação nos cadáveres exumados o que se explica pela acção conservadora do arsénico que não se pode produzir assim que existem massas consideráveis de arsénico no corpo.

Mais uma justificação a acrescentar às outras, sobre o possível envenenamento do rei:

O arsénico que mata os grandes organismos, mata os pequenos e mesmo os glóbulos. Isto dá-nos, de seguida, a explicação deste facto estranho que não foi notado por todos os que estão ocupados pela medicina legal; é que nos cadáveres daqueles que sucumbiram pela acção do arsénico, todas as partes em contacto com o veneno conservam-se quase intactas durante semanas.

Ricardo Jorge, por seu turno, em livro publicado em 1922, pela Portugália Editora, que intitulou O óbito de D. João II, depois de citar muitos casos de homicídios perpetrados por altas figuras da governação, considera que a grandeza das lutas de D. João II contra os grandes do reino, as dissensões familiares sobre o principado do bastardo, incutiram suspeição sobre a morte inesperada e prematura do monarca. D. Leonor tem sido ao longo do tempo acoimada de conjuguicida. Com efeito, Camilo não se atreve a apresentá-la expressamente como a instigadora do crime, mas põe em causa mestre João do Porto, físico da rainha D. Leonor. É ainda Camilo que afirma que das notas dos cronistas o rei tinha uma hipertrofia do coração e anasarca consecutiva, embora não seja de pôr de parte colite aguda ou cirrose. Ricardo Jorge afirma que a haver envenenamento o grande tóxico da época era o arsénico, embora considere que o rei faleceu de euremia motivada por nefrite crónica.

Cônscios da grandeza deixada por D. João II, aquando do seu falecimento, a cidade de Lisboa, além dos grandes saimentos que pela sua alma fez, mandou apregoar que nenhum barbeiro fizesse barba, nem cabelo, daí a seis meses sob mui graves penas, o que se cumpriu inteiramente, não tendo sido feito nada de igual em relação a outro rei, o mesmo acontecendo noutras cidades.

Servindo-se do texto de Camilo, interroga-se o autor: que destino teve o cadáver de D. João II? Desfizeram-no os franceses com os trambolhões que lhe deram em 1810. Em 1809 ainda foi visto por Frei Francisco de São Luís que notou que apenas lhe faltava a ponta do queixo inferior, tendo, aparentemente, recuperado o nariz. Em 1810 aproveitaram os ossos esfarelados colhidos no entulho, repondo-os no jazigo da Batalha.

Se o título de Príncipe Perfeito lhe foi atribuído, por Garcia de Resende, que, também, o apelidou de santo, importa referir que Isabel, rainha de Espanha, denominada a católica, teve este desabafo em relação ao rei que, durante a sua governação, mandara Bartolomeu Dias ao extremo mais sul do continente africano: Muerto es el Hombre. Que melhor título para um homem que ajudou a engrandecer Portugal e é cantado em versos do Mostrengo de Fernando Pessoa?

 

Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico