Cegueira ideológica e choque com a realidade

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Ter, 14/01/2020 - 00:19


A nossa relação com a realidade é um processo dialéctico, que nos permite abordagens progressivamente mais próximas da compreensão dos fenómenos, na medida em que nos vamos construindo como observadores racionais, capazes de reconhecer o erro e de encontrar métodos adequados ao esclarecimento, sempre provisório, da complexidade que nos rodeia.
Entendido nestes termos, o erro é um momento decisivo, porque induz a reflexão séria, que procura outras perspectivas de análise, com plena consciência de que se pode simplesmente chegar à constatação de novo erro, mas com ânimo de não desistir.
Se não tivermos capacidade de adaptação, tendemos a impor à realidade convicções pouco inteligentes que, mais cedo ou mais tarde, nos farão resvalar na surpresa, na emoção irracional, na desilusão e culminar na tragédia da raiva desesperada, aniquiladora dos outros e de nós próprios.
As ideologias, religiosas ou políticas, quando se afastam da condição de teorias abertas e cristalizam em fórmulas com arestas cortantes e extremos pontiagudos, até podem provocar rios de sangue, mas não garantem futuros gratificantes. Milénios de história provaram que as religiões da verdade revelada são fontes de equívocos, apesar de continuarem a sulcar o mar imenso do inconsciente humano, povoado de fantasmagorias medonhas.
Também as ideologias políticas, quando não são entendidas como referências utópicas, o que requer serenidade, benevolência e solidariedade, podem tornar-se mortíferas. Assim vimos acontecer no século findo, quando estivemos próximos de um apocalipse real, que poderia ter varrido a humanidade do planeta.
Não estamos livres de passar por isso, tendo em conta o caos que alastra por todo o lado, desde as vidinhas de cada um aos desequilíbrios na política mundial. Por isso se esperava que os verdadeiros cidadãos dessem contributos firmes para repor o bom senso. Muitos com obrigações inalienáveis não parecem ter percebido que se correm riscos de uma grande tragédia.
Para que figuras como Donald Trump não tenham condições para retorcer o sentido da civilização, não é avisado que se pretenda fazer dos extremistas do Irão cordeirinhos inocentes, que nunca foram. Pelo contrário, têm sido responsáveis por retrocessos degradantes, agem sem escrúpulos e matam sem remorsos. Por isso, alguma esquerda deveria parar para pensar antes de se permitir legitimar-lhes as acções. Doutra forma só se contribuirá para que um número crescente de temerosos prefira resguardar-se por trás da paulada.
Outro erro notório foram as distorções trazidas à praça pública acerca das mortes de jovens em Bragança e em Lisboa. Os que daí querem deduzir que o racismo é o contexto real do que aconteceu, estão a contribuir para um enviesamento da percepção que terá como consequência o florescimento de verdadeiras ervas daninhas.
Pelo meio até nos vamos esquecendo que a deputada negra Joacine Katar Moreira está a ser o bode expiatório das precipitações erráticas dos que dela se serviram e estão prontinhos para a descartar, com requintes de desumanidade.