Identidade Roubada

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Ter, 17/05/2005 - 16:51


“…caminharei minha ciganice por esse e outros mundos ainda que nesta caminhada fira os meus pés nas pedras das estradas.” (Esmeralda Siechochi) Gypsies, gitanos, zíngaros, ciganos...

Vêm estas palavras a propósito de notícias que li, aqui no Nordeste, e apesar de direito a Editorial, nem por isso motivou reacções ou comentários por parte daqueles que, normalmente, estão atentos e se dedicam a tal arte – facto que, aliás, reflectirá muito daquilo que aqui vos trago.
Falo-vos dos ciganos, esse povo ostracizado e marginalizado, e da intenção camarária de os realojar em aldeias do concelho de Bragança. Ao lermos a notícia ficamos com a sensação que apesar de toda a benevolência do edil, o insucesso deste projecto se deve às populações rurais, das diferentes aldeias, que pura e simplesmente estão contra esta deslocação e aproximação dos indivíduos desta etnia. Segundo palavras do próprio Presidente da Câmara de Bragança, este é um processo complicado e que tem deparado com inúmeras resistências… principalmente, por parte dessas comunidades rurais.

Não admira que assim seja, pois para além de não ser uma situação nova, tendo já ocorrido noutras geografias do país, devemos compreender que as comunidades rurais estão, actualmente, fragilizadas resultado de um envelhecimento acelerado e, também, devido à forte e permanente desertificação, o que exponência nos “sobreviventes autóctones” um sentimento de pertença ao grupo e reforça toda a identidade da comunidade. Assim, percebe-se que estas estruturas rurais são facilmente destruídas e se forçarmos a partilha do seu espaço com elementos estranhos, eles irão reagir e tentar defender a sua integridade. Se aliarmos a isto o facto de os indivíduos em questão serem de etnia cigana, normalmente reconhecidos como indivíduos destabilizadores, associados ao roubo, aos actos violentos ou tráfico de drogas, poderemos perceber inúmeras resistências a este processo. Por outro lado, relembrar a imagem que guardamos do tradicional cigano, nómada, que com a família e animais percorria as aldeias da região, pernoitando uma ou duas noites nos povoados, o tempo necessário para concretizar qualquer negócio, ou simplesmente para descansar e se alimentar… recorro a esta cantiga inscrita no cancioneiro de Vinhais para ilustrar esta visão “romântica” do cigano: “Cigano, lindo cigano/cigano lindo meu bem/lá vai o cigano preso/sem roubar nada a ninguém”

Hoje, perante a diminuição do comércio ambulante, a multiplicação das grandes superfícies comerciais, as exigências consumistas e a substituição dos produtos artesanais por produtos industriais, esta minoria étnica cigana, tradicionalmente dedicada a tais actividades, vê-se forçada a sedentarizar-se a até mesmo a abrir lojas, o que transforma radicalmente os hábitos seculares da comunidade. Normalmente, os ciganos procuram os grandes centros urbanos para se instalarem, pois será mais fácil aí, procurarem ocupação e estabelecerem ligações com a comunidade, só que mesmo assim, são relegados para os subúrbios ou zonas periféricas, suficientemente afastadas do centro da urbe, onde vivemos. Dada a precarização sócio-económica de alguns elementos desta etnia, alguns deles são “empurrados” para actividades e comportamentos marginais.
Um último aspecto ou argumento para justificar a minha perspectiva é que o afastamento do centro urbano favorece o não contacto com a população não cigana e supõe a continuidade dos estereótipos, preconceitos e, em definitivo, de atitudes racistas e xenófobas para com estas pessoas.

Se não considero o realojamento nas aldeias a melhor opção para a resolução deste problema – que para mim se cinge a conceder a estas famílias uma habitação condigna e com salubridade e, depois, erradicar barracas e acampamentos - também não optaria pela construção dos tais bairros sociais exclusivos para esta etnia, uma vez que a experiência anterior nos diz que a médio, longo prazo teremos outro acampamento, outro “gheto” problemático, assim como promoverá a desestruturação familiar, tendo como perspectiva que membros da mesma família poderão ser realojados em casas, prédios ou bairros diferentes. Essa deslocalização não produzirá os efeitos desejados, que são em última análise, a integração e aceitação destes indivíduos na comunidade. Como exemplo, poderei dar o caso de Vila Nova de Gaia, em que uma comunidade cigana apesar de ter adquirido – ou foram-lhes concedidos (!?...) - apartamentos numa pequena urbanização do centro da cidade, preferiu ocupar todas garagens no rés-do-chão, transformando as mesmas e toda a zona envolvente desses prédios num autêntico acampamento, afastando desse espaço toda a comunidade não cigana.

A acentuação dos estereótipos negativos sobre a comunidade cigana exprime e reflecte a exclusão/rejeição da mesma por parte considerável da população não cigana, preconceituosa, etnocentrica e pouco permeável à multiculturalidade. Em Portugal e num estudo realizado, em 1995, pelo jornal Público e pela Universidade Católica, ficaram bem visíveis os sentimentos racistas e xenófobos dos Portugueses – dois terços dos inquiridos importavam-se de viver perto de um acampamento de ciganos, um terço dos mesmos afirmava que nutria por eles antipatia e cerca de metade não gostariam de ver um(a) filho(a) casar-se com um(a) cigano(a). Um outro caso que exemplifica o sentimento generalizado em relação aos membros desta etnia, foi o sucedido em Oleiros, no concelho de Vila Verde. Em tribunal, foi solicitado ao então Presidente da Junta de Freguesia que identificasse quem proferiu a seguinte frase: “Os ciganos deviam era estar todos no fundo do mar”, ao que este retorquiu ironicamente: “Não acredito que alguém tivesse dito isso, pois ninguém se daria ao trabalho de os levar ao mar quando temos lagoas muito mais próximas…”

Como contributo para a resolução desta questão, alegando o discurso internacional dos Direitos do Homem, onde é proclamada a igualdade de tratamento, independentemente do sexo, da cultura, da religião ou da raça, direi que em nome desse princípio constitucional da igualdade de tratamento, será exigível ao Estado português e a todas as suas instituições uma outra, uma nova atitude para com esta minoria étnica.
A situação actual é resultado de determinadas estruturas e contextos específicos, de relações sociais assimétricas perpassadas de etnocentrismo e dominação de uns grupos sociais sobre outros, caracterizadas por contrastes de identidades, culturas e estilos de vida entre os dominantes e dominados. Continuam a tomar-se posições e decisões sem ter em conta as características culturais desta população, sem a ouvir, sem falar com os seus representantes naturais.
Serão necessários avultados investimentos, na rede sócio-económica, cultural e educativa, dentro e fora das escolas, de forma a educar as maiorias e todas as minorias para a cidadania plena, activa e multicultural, para que… talvez um dia, a integração da comunidade cigana na sociedade não tenha que passar pelo abandono da sua identidade, só porque nos recusamos a aceitar as diferenças culturais.

Nota de Rodapé – Nem só de monumentos vive o autarca!... o cuidado social é de igual modo importante, pois é de gente e para a gente que as cidades existem!... o seu conforto deve ser para todos!... é por atitudes como esta, que promovem o afastamento, a exclusão daqueles que nos atrapalham e não ficam bem na fotografia que percebemos a real preocupação dos autarcas!…

Luís Vale