O dia-a-dia do país sem rede

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Ter, 18/01/2022 - 09:28


O Jornal Nordeste foi ouvir testemunhos de habitantes de algumas aldeias de Bragança e Vinhais que lidam diariamente com a falta de rede móvel e internet. Presidentes de junta já não acreditam em melhorias na cobertura

No mapa da cobertura de rede e dados móveis a nível nacional há muitas localidades que continuam a não ser contempladas. Nesta outra dimensão, a situação é muitas vezes já considerada natural, visto que há anos que se aguardam melhorias, mas sem sucesso até agora. Em muitas localidades do distrito de Bragança, em especial aldeias afastadas dos centros urbanos, a rede é fraca, as chamadas caem, a internet não funciona e às vezes até é difícil enviar mensagens escritas. E em pleno século XXI, há mesmo localidades em que nem para o 112 é possível fazer uma chamada. Isto porque para tal é necessário que pelo menos uma antena de uma operadora abranja a localidade. Mesmo que o telemóvel não apanhe rede da sua operadora, pode ser possível utilizar a frequência de uma das outras duas operadoras do mercado nacional para fazer chamadas de emergência. Mas isso não é possível fazer em aldeias como Guadramil e Petisqueira, no concelho de Bragança. Joaquim Reis, de 48 anos, vive em Guadramil e tem telemóvel, mas para o usar tem de “ir ali ao alto para funcionar”. “De vez em quando, aqui nalguns sítios tenho ‘tantica’ rede, mas um traço ou dois, só dá para receber mensagens e a rede é espanhola”, conta. Quando precisa mesmo de utilizar o telemóvel na aldeia, tem de andar à procura de telemóvel na mão. “Vou ali ao alto, ou mais ali para cima, lá para Deilão”, afirma apontando em diferentes direcções. Nenhuma das três operadoras tem antenas que garantam a cobertura da localidade, anexa da União das Freguesias de Aveleda e Rio de Onor e a pouca que Joaquim ainda apanha é através de Espanha. “Vêm muitos turistas, têm telemóvel e não têm rede. Nada, nada, nem roaming”, conta. Há uns tempos precisou de receber um código da Segurança Social por sms e teve literalmente de andar atrás de rede para “saber dele, para apanhar rede para o receber”. Na aldeia os habitantes ainda não dispensam o telefone fixo até porque “só nalguns sítios é que dá para ligar para o 112” através de telemóvel, “mas em poucos”. “Principalmente para esse número devíamos ter rede. Senão andamos pelo campo acontece-nos alguma coisa e é complicado”, afirma, recordando que uma altura torceu um pé quando andava no campo com o rebanho de cabras. “Vi-me bem mal, torci um pé e para vir para casa foi complicado. Ainda gritei, mas ninguém me ouviu, lá consegui vir. Se o telemóvel funcionasse teria podido pedir auxílio”, conta, admitindo que em caso de algo mais grave a situação poderia ser mais grave. Quanto a possíveis melhorias do sinal diz apenas: “Oxalá que sim, mas não acredito”. Na aldeia a poucos quilómetros, Petisqueira o problema repete-se. Maria Amélia Pêra tem rede espanhola no telemóvel. Esteve emigrada no país vizinho e quando regressou há cerca de 10 anos manteve o tarifário, já que rede portuguesa na Petisqueira não há. “Apanho a rede espanhola, portuguesa não”, afirma. O filho tem telemóvel com rede nacional, mas a diferença é pouca, já que na aldeia só apanha roaming de Espanha. Para fazer chamadas, Maria Amélia usa principalmente o fixo. “Com o telemóvel tenho de marcar o indicativo, falo como se estivesse em Espanha”, explica. A proximidade com Espanha ainda assim é vista como uma vantagem. “Porque senão aqui estávamos isolados completamente. Acho que se em todas as aldeias tem rede portuguesas e antenas, aqui também devia haver, para quem quisesse ter telemóvel português, porque a gente anda para fora, nunca se sabe o que se passa. E se estivermos no campo podemos fazer uma chamada e pedir auxílio, assim não se pode”, protesta. O marido, que tem problemas de saúde, “leva o telemóvel e às vezes tenta ligar e não consegue, não tem rede”. “Ele diz-me para onde vai, e quando vem tarde vou ver se lhe aconteceu alguma coisa”, refere Maria Amélia. Vitorino Pais, de 85 anos nunca teve telemóvel. “Não tenho, porque não há rede, era perder dinheiro. Até gostava de ter um, porque era uma coisa muito útil quando saio”, afirma. Tem três filhos, duas em Espanha e outro numa aldeia próxima, e fala com eles pelo telefone fixo, mas os gastos com as chamadas são mais altos. “Se tivessem uma antena mais perto era melhor”, defende e afirma que, apesar da idade ele próprio usaria um. Altino Pires, presidente da União das Freguesias de S. Julião de Palácios e Deilão, que tem como anexa Petisqueira com cerca de 20 habitantes a tempo inteiro, mostra-se preocupado com o facto de não ser possível ligar nem para o 112. “Se estiverem fora de casa e necessitarem de pedir ajuda não vale a pena levar telemóvel, não há forma de pedir ajuda a ninguém”, até porque apanhando rede apenas através de roaming em alguns pontos “vai para o 112 espanhol”. “Quando ouvimos políticos nacionais dizer que somos portugueses, todos temos direitos, sabemos perfeitamente que há questões que não é para todos, como esta da cobertura de rede. Há-de haver uma série de Petisqueiras por este país fora, que não têm rede, porque não se justificará, pelo facto de em termos de rentabilidade os clientes que as operadoras têm serem muito diminutos”, critica. O autarca aponta como solução que as operadoras partilhassem recursos e disponibilizassem roaming nacional. “As operadoras teriam de se entender entre elas, porque não vale a pena andar a duplicar ou triplicar estações, em determinados sítios, uma antena daria para que todos os clientes tivessem sinal. Muitas vezes com o mesmo investimento poderíamos ter mais cobertura a nível nacional e estas aldeias teriam a possibilidade de ter rede”, sustenta. Altino Pires dá mesmo como exemplo que noutra aldeia da união das freguesias será em breve colocada uma antena da Meo, quando já existe uma da Vodafone. “Se este transmissor servisse também para que a Meo colocasse lá os seus transmissores esta antena nova poderia ser colocada na Petisqueira, ou seja, com o mesmo investimento das operadoras poderíamos ter mais cobertura”, apontou. Apesar da promessa de que o concurso do 5G vai impor obrigações de cobertura a 75% da população de cada freguesia até 2023 e 90% em 2025, Altino Pires não fica totalmente descansado. “Sinceramente, não acredito, porque mesmo que essa percentagem seja alcançada, vamos continuar a ter as “Petisqueiras” deste país sem cobertura de rede, porque são os povoados mais pequenos, com menos clientes e os que vão ficar de fora”, sublinha. No caso concreto da União das Freguesias de São Julião de Palácios e Deilão, que abrange seis aldeias, se em todas as outras cinco houver rede, estão cumpridas as metas impostas pela ANACOM e a Petisqueira continua sem cobertura.

Quirás e Cisterna “habituados ao isolamento”

Curva e contra-curva marcam o caminho para Quirás, uma aldeia do concelho de Vinhais, com cerca de 40 habitantes. Mais de meia hora distancia esta localidade da sede do concelho. Em relação à capital de distrito, Bragança, o cenário ainda é pior. A poucos quilómetros de Vinhais e até Quirás o sinal de rede deixa de existir e só é possível fazer chamadas para emergência, ou seja, para o 112. Rapidamente é enviada uma mensagem que informa os utilizadores da possibilidade do uso de Roaming, o que significa que para fazer chamadas só através da rede espanhola. Já em Quirás, volta a existir alguma rede, visto que há alguns anos foi instalada uma antena da NOS que permite aos habitantes ter rede móvel e de internet, mas que ainda assim, por vezes, também falha. No entanto, o mesmo já não acontece nas outras localidades desta União de Freguesias. Que o diga Mavilde Correia, habitante de Cisterna, que diz que a “maior parte das vezes” não tem rede móvel. “Para o 112 dá sempre, agora se há uma urgência entre famílias que queiramos comunicar, já é mais complicado”, afirmou. A falha de rede levou-a a recorrer a uma operadora espanhola, por isso, tem dois telemóveis. Admite que os custos são maiores, mas a segurança justifica os gastos. “O telemóvel espanhol desenrasca-me sempre. Sou obrigada a ter rede espanhola para conseguir comunicar. São mais custos, tenho que carregar o telemóvel todos os meses com 10 euros. Mas sinto-me mais segura, a gastar mais”, explicou, salientando que quando precisa é a rede espanhola que utiliza. Se não há rede móvel, internet muito menos. O neto de Mavilde Correia foi obrigado a ir viver para outra localidade para conseguir assistir às aulas online. “Tem que se deslocar para aldeia da mãe, porque aqui na Cisterna não tem internet. Para as aulas online teve que ir para lá e ainda lá está”, contou. A União de Freguesias de Quirás e Pinheiro Novo tem sete localidades, num total de cerca de 160 habitantes, e em praticamente todas não há rede móvel. O telefone fixo é o meio de comunicação. “Se precisarem pedem ajuda pelo telefone fixo, porque toda a gente tem telefone fixo. Se vão trabalhar para o campo tem mais dificuldades em levá- -lo e a uma certa distância deixa de funcionar”, afirmou a presidente da união de freguesias. Zélia Libório reconhece a dificuldade em comunicar nestas localidades, mas admite que o distanciamento da sede de concelho pode ser um problema em caso de emergência. “Claro que o que nos preocupa mais é que haja um acidente, uma doença muito grave que são precisos poucos minutos e não termos meios para resolver a situação. Isso aflige-nos um pouco”, referiu. No entanto, considera que as pessoas já se “habituaram a estar isoladas”. Essa é também uma preocupação para Lurdes Diegues, habitante de Quirás. “Quando há uma emergência médica a distância preocupa-nos, preocupa-me mais isso do que não ter internet. Os acessos é que são piores”, lamentou. Embora nesta localidade haja internet, por vezes também falha. “Agora a internet faz falta para tudo, é um bocado chato quando falha, nem que seja só para lazer, mas é chato”, acrescentou. Recentemente a ANACOM esteve em Vinhais a fazer um estudo sobre a cobertura de rede móvel e internet e concluiu que mais de metade da população deste concelho não tem acesso à internet. Zélia Libório aproveitou para se queixar, mas já não tem esperanças de que algo seja feito. “Eu já nem acredito em nada, porque é muita reunião, toda a gente promete muito, mas depois fica igual. Acho que ninguém se importa se nós gostamos de estar aqui e melhorar a nossa qualidade de vida. É que não há condições e se o Interior está desabitado como está, mesmo com internet e rede móvel os jovens não estão satisfeitos, se não têm como comunicar, cada vez fogem mais daqui”, frisou.

Concurso para rede banda larga de fibra óptica

Vai ser promovido um concurso público internacional para a assegurar a cobertura o país com redes de banda larga de fibra óptica. Nesse âmbito, está a decorrer uma consulta pública sobre as zonas brancas, onde este serviço ainda não chegou. “Esta consulta é muito importante porque vai permitir termos informação, o mais fina possível sobre quais são as casas, os aglomerados familiares que necessitam desta cobertura, porque o objectivo do governo é termos 100% da população coberta em termos desta infraestrutura, com uma velocidade de 1 gigabyte”, afirma a secretária de Estado da Valorização do Interior, Isabel Ferreira. O objectivo é que no final do concurso todos os agregados familiares têm disponível redes de capacidade muito elevada banda larga fixa. Qualquer pessoa, desde entidades, organizações ou autarquias, com base no mapa interactivo, que está disponibilizado no site da ANACOM, pode verificar se a sua zona está coberta ou não e participar até ao dia 7 de Fevereiro na consulta pública. “Apelo à participação de todos, é muito importante termos a informação o mais fidedigna possível. Este levantamento que disponibilizamos é preliminar, feito com base na informação prestada pelas operadoras, mas no final da consulta pública vamos ter um mapa que dê confiança de abrir um concurso que cumpra a metade 100% dos agregados familiares”, sublinhou.

Jornalista: 
Olga Telo Cordeiro/Ângela Pais