As folhas e a sua linguagem colorida

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As folhas secas apanham-se com pás e outras máquinas mais imponentes hoje em dia. Com a preocupação da competitividade, nestes dias, vemos trabalhar inúmeros funcionários das câmaras, apetrechados até à cabeça, varrer e transportar montões e montões de folhas secas. Despejam-nas depois nos contentores do lixo. Como deve ser prático desembaraçar-se rapidamente ad patres, em grandes quantidades, das invasoras e incomodantes chuvas de folhas deste outono avançado.  

Nada de aditamento, nenhuma piedade, pouca consideração por estas infelizes que, mal se desprendem das árvores sobre as quais viveram o seu tempinho de folhas, são transportadas em direcção à saída, ao exílio.

E mesmo assim ! Fixemo-las um momento, estas folhas ditas “mortas”, antes da sua colheita. Mortas? Que impostura! Não é porque mudaram de cor que deixaram de viver. Não é porque caíram da árvore que renunciaram a toda a sua vida interior. Ou cessaram de nos interpelar, na sua própria linguagem. Se falamos da “linguagem das flores”, porque não da linguagem das folhas?

Vede as folhas amareladas como mil sóis que correm ainda sobre o alcatrão com o mínimo sopro de vento. Vede como estas anunciadoras das primaveras vindouras se alegram (sem razão) querendo despertar os nossos olhares. Vede rodopiar as outras, mais pequenas, como asas de borboletas brancas. Têm um ar feliz e parecem dizer que embelezam o chão negro das nossas ruas e passeios. E como nos devem deixar alegres. Vede os tapetes de folhas ainda verdes juntar-se ao pé das árvores ou nos cantos dos jardins, ou nas valetas, bem vivas, persuadidas da sua imortalidade. O mais pequeno raio de luz fá-las brilhar. Que belo otimismo!

Vede os ramos cujas folhas caiem no chão em família, juntinhas. Parecem passar-se a palavra: “ upa, vamos? Mantenhamo-nos unidas, hein, meninas ». E atingir o solo, confiantes. Ignoram ainda, enquanto cobrem o chão, que não passarão o inverno e que o homem cujos pés indiferentes as esmagam, têm uma única preocupação: vê-las desaparecer para sempre. E as mais resistentes, alaranjadas, acastanhadas, secas, largas, que fazem mais barulho quando deslizam ou quando são empurradas com os pés, será por já não serem verdes que podem ser consideradas defuntas?

Escutemos as mensagens das folhas, por mais alguns dias ainda, depositadas diante dos nossos olhos como testemunhas das lindas estações de antigamente. Escutemos o seu otimismo inato, natural, estas luzes que deixam no chão como para nos dizer que o sol voltará, que o ciclo das estações é a única certeza que temos, que a forte ligação entre os ramos resiste a tudo. Vejamos como estas se movem em grupos bem organizados, em multidão percorrer os paralelos. Lá em cima moviam-se com o vento, aqui em baixo movem-se em espaços maiores, como numa liberdade reencontrada. 

Porquê que não as deixamos, no seu louco otimismo, correr pelos caminhos fora ou dormir em montes serenos, longe do ruído dos homens? Porquê essa necessidade de as amontoar, de as colher em sacos negros ou verdes e transparentes para as levar onde? Para que cemitério de folhas, em que incinerador, em que morgue administrativa? Onde é que as folhas ditas mortas podem viver tranquilamente (digamos: na natureza), não poderão permanecer onde caíram? Estas fabricam o húmus. Na cidade, nada de húmus, é o grande problema das cidades. A sua limpeza (relativa…) é um sinal do seu desprendimento. E talvez da sua desumanidade.

Adriano Valadar