“Judeus” em Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais Os comissários e o rol dos livros

PUB.

Os comissários eram recrutados entre os membros do clero e, geralmente, licenciados em Teologia e Cânones pela universidade de Coimbra. Deviam cumprir com todo o rigor e cuidado as ordens recebidas dos inquisidores e a estes deviam comunicar todas as informações referentes aos casos da fé. Os comissários constituíam o braço da inquisição nas terras onde não havia tribunal. Aos comissários eram dirigidos os mandatos de prisão, ficando eles responsáveis pela execução das mesmas, se bem que delegando em familiares e na autoridade civil essas tarefas. A eles deviam também apresentar-se os condenados que nas terras iam cumprir as suas penitências, depois de sair dos cárceres. Eram-lhe igualmente cometidas as devassas e inquirições sobre limpeza de sangue. E este era um poder de dimensão extraordinária, que, por vezes, imprimia verdadeiro terror aos que precisavam de semelhante atestado. Por todas estas razões, constituía coroa de glória para qualquer família ter um membro comissário, já que, assim, toda ela ganhava estatuto de nobreza e qualidade de sangue, automática e publicamente comprovado. Tudo isto consta dos regimentos da inquisição, nomeadamente no regimento de D. Francisco de Castro, em vigor na época que estamos tratando e que, no título XI, nº 7, explicitava: - Falecendo, nas terras em que vivem, alguma pessoa que tenha livraria, mandarão fazer rol dos livros e papéis de mão que nela houver e notificar aos herdeiros do defunto que não disponham deles sem aviso seu e avisarão à Mesa do Santo Ofício com toda a brevidade, enviando o rol dos livros e papéis e seguirão a ordem que dela lhes for dada. (1) Imagine-se! Borges Coelho comenta que os inquisidores tinham medo ao livro. Nós diremos que, para além disso, era uma arma de terrível poder, colocada nas mãos dos comissários, que sempre poderiam argumentar que o falecido teria uns livros ou “papéis de mão” para revistar a casa de qualquer cidadão mais evoluído, em termos de literacia. Vamos então para a cidade de Bragança, a casa do prior da colegiada da igreja de Santa Maria e beneficiado na igreja de S. Nicolau, de Lisboa, natural da vila de Caminha, Bartolomeu Gomes da Cruz, comissário do santo ofício, por carta de Agosto de 1689. Terá sido no dia 5 de Novembro de 1714 que o comissário Cruz recebeu de Coimbra um correio contendo um maço de mandatos para prender cidadãos de Bragança, acusados de judaísmo, cujos nomes constavam dos respetivos mandatos. Também aqui o regimento é claro: no caso de algum ser morto, ou fugido… o mandato devia ser devolvido com informação do sucedido. Não temos, por isso, informação precisa de quantos mandatos seriam. Na verdade, no dia seguinte, procedeu-se à execução das ordens vindas da inquisição de Coimbra, sendo presos 8 “judeus” da cidade. As prisões deviam realizar- -se com o maior segredo e cautela e, cada preso ser de imediato conduzido para casa de um cristão-velho, de reconhecida influência e cabedais, homem da nobreza ou do clero, geralmente, não deixando o preso contactar com familiares e amigos. À prisão seguia-se o arresto dos seus bens, fazendo-se o respetivo inventário e, no próprio mandato vinha anotado o montante de dinheiro (geralmente andava nos 40 mil réis) que o prisioneiro devia proporcionar para pagar os grilhões com que o prendiam, a alimentação e as despesas de transporte para a cadeia, nomeadamente as jornas de quem os levava presos e o aluguer de bestas para o transportar a ele com sua roupa, cama, e cozinha. Se o réu ou a Família não apresentavam dinheiro líquido, vendiam-se os bens necessários, começando, naturalmente, pelos bens móveis e perecíveis. Feito o inventário e leiloados os bens, fechava-se a casa e entregava-se a chave a algum cristão-velho de confiança e cabedais que garantisse o depósito dos bens móveis e imóveis inventariados. Os filhos e o cônjuge que procurassem onde ficar. Em simultâneo, metiam-se grilhões nos pés dos prisioneiros. Nisto se gastaram 2 dias. Ao terceiro, cada preso foi levado pelo seu depositário até fora da cidade, ao campo de Santa Apolónia, hoje integrado na Escola Superior Agrária, onde foram confiados ao familiar do santo ofício Domingos Pires Malheiro, destacado para conduzir a leva dos 8 prisioneiros para Coimbra. Obviamente, era acompanhado por vários homens, criados seus ou por si recrutados, conduzindo uns quantos animais onde iam montados os presos e a sua “tralha”. Deixemos a comitiva de prisioneiros seguir até Coimbra, para apresentarmos o responsável pela leva, o familiar Domingos Malheiro. Estranhamente, sabemos as datas de nascimento e casamento de seus pais, mulher e sogros, mas não foi encontrado o registo do seu nascimento nos livros da paroquial igreja de Ervedosa, onde as testemunhas afiançaram que ele terá nascido por volta de 1654. António Pires, seu pai, era lavrador, um dos principais da terra, nascido na quinta de Sendim. Sua mãe, Margarida Malheiro transportava uma história de vida, então muito frequente, de nobreza e servidão, misturadas. Vamos contar. António Malheiro da Cunha era um homem da nobreza de Bragança, fidalgo-cavaleiro por alvará de 18.4.1694. De uma rapariga solteira, criada da casa, Ana Vaz de seu nome, natural da vila de Ervedosa, teve uma filha que nasceu em 1634 e foi batizada na igreja de S. Martinho “e se lhe deu por pai António Malheiro, de Bragança”, conforme reza a certidão de batismo. O pai não estaria presente ao batizado mas nunca desprezou a filha. Antes a confiou a seu irmão, padre Bento da Cunha, então cura de Penhas Juntas e mais tarde abade de Rebordãos, “que a amasse por sua filha”, o qual “fez sempre caso dela, como sua irmã e por tal a estimou e lhe dava os passais de sua igreja para neles se sustentar ela e o marido”. Temos então os pais de Domingos Pires Malheiro (António Pires e Margarida Malheiro) a casar em Ervedosa, por 1650 e a ser apoiados pelo padre Bento da Cunha, seu tio- -avô materno. E certamente foi com o apoio da família materna que Domingos ganhou os empregos de corretor da alfândega de Bragança e tabelião da vila de Ervedosa. Era ainda capitão de ordenanças de Moimenta mas “isto não lhe rende coisa alguma”. Domingos casou em Bragança, em 1.12.1706, com Maria do Espírito Santo, nascida na mesma cidade em 1680, filha de Martinho Diegues (2) e Catarina Fernandes. Martinho era natural de Seixas/Vinhais e “foi para Bragança para o estudo e, sendo soldado, casou e de presente é ajudante de auxiliares”. Catarina nasceu em Casares/Bragança, filha de lavradores, “os principais da terra”, e depois que os pais morreram, foi para Bragança, servir em casa de D. Violante Ferreira. Conforme vimos, dada a falta de familiares que se verificava na região de Bragança para executar as prisões do santo ofício e levar os presos a Coimbra, “os inquisidores mandaram ao comissário que nomeie aqueles que parecerem mais suficientes para familiares (…) e o dito comissário nomeou alguns, entre os quais foi o pretendente Domingos Pires Malheiro”. (3) Apresentado o requerimento, foi entregue ao comissário António Gomes do Vale, (4) abade de Mofreita, Vinhais, o encargo de proceder às investigações sobre a limpeza de sangue do candidato e seus ascendentes, assim como de sua mulher, o que atrás ficou já especificado. A concluir, o comissário Vale deu a sua informação dizendo que o pretendente era cristão-velho dos 4 costados e tinha poucos bens. Muito embora a sua mãe tivesse entrada em casa de seu pai natural, dele não herdara título de nobreza, nem propriedades. Vejam: - É bem procedido e capaz de se lhe fiarem negócios de importância e segredo, como são os do santo ofício, porque a todos os que lhe forem encarregados dará inteira satisfação, e vive limpamente, sem embargo de não ser muito rico. (5) Resta dizer que Domingos Pires Malheiro recebeu carta de familiar da inquisição em15 de Maio de 1714 e que faleceu por 1719, ano em que o seu irmão inteiro, António Malheiro da Cunha, se candidatou também ao cargo de familiar do santo ofício, vindo a obter carta em 28.7.1721. Na sua petição, entre outros argumentos, António Malheiro dizia que “foi ocupado em outras vezes para fazer prisões de cristãos-novos e muitas vezes teve presos em casa, antes de irem para o santo ofício de Coimbra.” Ou seja: mesmo não o sendo já fazia serviço de familiar. Se as origens de António Malheiro eram humildes, deve dizer-que que, em 1719, quando se candidatou ao cargo de familiar do santo ofício, era já um senhor de muito respeito em Bragança onde tinha casa montada, se bem que ele se encontrasse destacado na vila de Chaves, na ocupação de sargento-mor da praça, um posto militar bem elevado. Em outra ocasião haveremos de falar dos seus casamentos e da sua ascensão social.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães