NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco Lopes Pereira, “rendeiro dos milhões” (Mogadouro, 1617 – Madrid, 1683)

PUB.

Francisco Lopes Pereira nasceu por 1617, em Mogadouro. Gaspar Lopes, seu pai, era mercador, natural de Chacim. E terá sido em Chacim, que Francisco foi iniciado no judaísmo, pela avó Joana Lopes e seus tios paternos João e Cristóvão, quando chegou aos 12 anos.
E nessa idade o pai e os tios paternos o iniciaram também na vida de mercador. Com eles terá viajado por terras de Portugal e de Espanha negociando tecidos. Aliás, a primeira culpa que lhe foi assacada respeita a esses tempos. Trata-se de uma denúncia feita em 1648 por Diogo Lopes, o capitão de alcunha, nos seguintes termos:
- Haverá 20 anos, achou-se ele confitente em Segóvia, em casa de Pedro Carrião, com Cristóvão Fernandes, cristão-novo, mercador, casado não sabe o nome da mulher e morador no Mogadouro e com Gaspar Lopes, cristão-novo, mercador, natural de Chacim e morador em Mogadouro e com Francisco Lopes Pereira, cristão-novo, natural do Mogadouro, hoje casado com Maria Dias, e estando todos juntos, se declararam que criam e viviam na lei de Moisés e que faziam os jejuns… (1)
Cristóvão Fernandes era um dos tios de Francisco e Gaspar Lopes o pai, mercadores ambulantes que “vendiam mercadorias em Segóvia, Medina, Madrid e Toledo: não passavam mais de 8 a 15 dias em cada sítio e logo iam a Braga, Coimbra, Guimarães, Aveiro e Lisboa”. (2) Assim andaria “servindo” seu pai e seus tios, por dois anos, tempo suficiente para o jovem Francisco fazer o seu pé-de-meia e meter-se a negociar por sua conta e risco. Inclusivamente para contratar dois criados que o ajudariam no negócio, levando lenços para Espanha e de lá trazendo sedas.
Nem sequer o levantamento de 1640 e a guerra da restauração fizeram parar o seu negócio transfronteiriço. Veja-se, a propósito uma declaração por ele feita em Abril de 1651:
- Disse que este setembro fará um ano, se achou ele confitente na cidade de Salamanca onde foi com licença de Sua Majestade, na pousada que se chama “El Mesón de los Toros” com Manuel Fernandes Carlos (…) e com Henrique Lourenço (…) e estando todos juntos fizeram o dito jejum do dia grande.
Em 1647 faleceu em Mogadouro um jovem cristão-novo chamado João Borges e o trato do defunto, mortalha, cerimónias e ritos funerários, tudo foi feito à maneira judaica, com esmolas e jejuns e profissões de fé na lei mosaica.
A notícia do acontecimento chegou ao santo ofício de Coimbra que mandou investigar o caso. (3) Seguiu-se a entrada da inquisição e um verdadeiro “tsunami” arrasou a comunidade marrana de Mogadouro com cerca de centena e meia de prisões, em vagas sucessivas.
Francisco Lopes Pereira foi um dos 84 decretados a prisão na vaga de 22 de fevereiro de 1651, a maior de todas. Poucos dias depois de ser preso, logo começou a confessar e pedir perdão de suas culpas, saindo condenado em hábito a arbítrio no auto da fé de 14.4.1652.
Quando foi preso, Francisco era já casado com Maria Dias, de Chacim e tinha dois filhos: Gaspar e Manuel, de 6 e 4 anos, respetivamente. (4)
Regressado a Mogadouro, tentaria retomar os seus negócios quando um estranho acontecimento abalou a vila. Foi o assassinato de um seu primo carnal, chamado António Lopes e outro companheiro seu enquanto dormiam, em um sítio ermo, à beira de um caminho, próximo da aldeia de Remondes. Os matadores foram Francisco Lopes Peña e Diogo Henriques Pereira, cunhados entre si, ajudados por um Francisco Luís. O pretexto dos matadores foi o facto de António Lopes andar metido de amores com Maria Lopes, irmã de Francisco Peña, mulher de Francisco Lopes Compra, ausente em Castela.
Francisco Lopes Pereira tomou a peito a vingança da morte do primo. Foi a Lisboa e conseguiu que a Justiça real levasse o processo-crime por diante, acabando os matadores por ser condenados à morte por enforcamento. Porém, como haviam fugido para Espanha e não foi possível executá-los, fizeram-se três “estátuas” dos matadores, as quais ficaram penduradas na forca da vila de Mogadouro.
Obviamente que estes acontecimentos acrescentaram medos, ao medo da inquisição. E tal como outros muitos, Francisco foi com a mulher e os filhos a viver para Espanha, precedido, aliás, por vários parentes. Viveu em Madrid cerca de meio ano, tempo suficiente para conhecer a cadeia civil por “muitos dias”. Na base desta prisão estaria um litígio comercial com os irmãos Carvalho, fugidos também de Mogadouro.
Por essa altura Francisco tinha uma parceria comercial com Manuel da Costa, a qual começara já em Mogadouro. E os dois parceiros, breve deixaram Madrid e se foram para Granada, tendo Manuel da Costa precedido em meio ano a chegada, porventura devido a percalços surgidos com a prisão do sócio.
Em Granada tinha Francisco o seu irmão Diogo que trazia arrendado o monopólio da distribuição do tabaco, não apenas na cidade mas em toda a região. Significa isto que em volta dele gravitavam não apenas familiares seus, mas uma pequena multidão de correligionários idos de Mogadouro, Chacim, Vila Flor e outras terras Trasmontanas, empregados uns na Fábrica do tabaco e outros nos postos de venda espalhados pela cidade e pelo reino.
Diogo Lopes e Clara Lopes sua mulher não tinham filhos e para sua casa foi morar Francisco e a família, então acrescida com o nascimento da filha Beatriz. E se a casa de Diogo Lopes era já o ponto de encontro de muita gente, com a chegada de Francisco tornou-se um verdadeiro areópago que, por vezes virava “sinagoga”. Como aconteceu no mês de setembro de 1656, conforme testemunho de Ana de Cáceres:
- Disse que fizeram o jejum do dia grande em suas casas onde viviam nesta cidade os ditos Francisco Lopes Pereira e D. Maria Angel; Gaspar e Manuel, seus filhos; Diogo Lopes Pereira e Clara Lopes, que viviam em uma casa; e Ana Lopes e seu marido e sua filha, que viviam em outra; Maria Nunes, casada com um Fulano de Salamanca, que viviam em outra casa. E pela tarde se juntaram todos em casa de Francisco Lopes Pereira. (5)
Esta e outras denúncias tiveram como consequência a prisão de Francisco Lopes Pereira, em 1658, pela inquisição de Granada e a de sua mulher, D. Maria Dias, aliás, D. Maria del Angel, “na tarde de 15.1.1661”.
Não tivemos acesso a nenhum dos processos mas tão só a umas cópias da defesa de Maria Dias, remetidas de Castela anos depois e que andam no processo instaurado em Lisboa a seu filho Gaspar. Dali colhemos mais informações sobre Francisco Lopes Pereira que, ao chegar a Granada, “negociava em roupas como damascos, terciopelos, tafetás e o mesmo tratava de enviar estes géneros de sedas para Cádis e Sevilha”, logo depois se metendo no negócio do tabaco e tomando a renda dos “milhões” da cidade, um imposto que se pagava sobre o pão, o vinho e outros bens vendidos em público.
Não sabemos quanto tempo Francisco e a mulher permaneceram nas masmorras da inquisição mas temos o testemunho de Francisco Garcia da Costa, parente de Maria Dias dizendo que no ano de 1665 os viu “sambenitados” no “cárcere da penitência” em Granada.
Entretanto em outros tribunais da inquisição iam-se registando denúncias contra os mesmos e, por 1666-67, voltariam a ser presos, juntamente com o filho mais velho, conforme testemunho do filho Gaspar:
-Disse que o pai do réu, Francisco Lopes Pereira e sua mãe, Maria Dias del Angel e seu irmão, Manuel de Aguilar, sendo moradores em Madrid, foram presos pelo santo ofício e levados para a cidade de Toledo no ano de 1666 ou 67, estando o réu ausente, em Puerto de Santa Maria.
Seria curta a estadia na cadeia e eles condenados ligeiramente, em penas pecuniárias, talvez porque os “crimes” eram os mesmos por que já tinham penado anteriormente. Sobre a sua morte, temos a informação dada pela filha Beatriz em 1687:
- Disse que era filha de Francisco Lopes Pereira, morador desta cidade, rendeiro do tabaco e que falecera em Madrid havia 4 anos. (6)

Notas e Bibliografia:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 6790, de Francisco Lopes Pereira.
2-BAROJA, Julio Caro – Los Judíos en la España Moderna y Contemporánea, pg. 82-84, ed. Istmo, Madrid, 1978.
3-Uma devassa foi conduzida pelo deputado do mesmo tribunal Mateus Homem Leitão e outra pelo vigário geral de Moncorvo.
4-Francisco Lopes e Maria Dias casaram por 1643. Francisco era também o pai de Beatriz Lopes, nascida em 1644, de uma relação com Catarina Martins. – ANDRADE e GUIMARÃES – Gaspar Lopes da Costa, in: Jornal Nordeste, nº 1082 de 8.8.2017.
5-ANTT, inq. Lisboa, pº 2744, de Gaspar Lopes Pereira. – ANDRADE e GUIMARÃES – Gaspar Lopes Pereira, in: jornal Nordeste. nº 1083, de 15.8.2017. IDEM – Percursos de Gaspar Lopes Pereira e Francisco Lopes Pereira dois cristãos-novos de Mogadouro, in: Cadernos de Estudos Sefarditas, nº 5, pp. 253-297, Lisboa, 2005.
6-IDEM, pº 8338, de Beatriz Pereira Angel. ANDRADE e GUIMARÃES – Beatriz Pereira Angel, in: jornal Nordeste nº 1084, de 22.8.2017.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães