NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - João (Abraham) da Costa Vila Real (1653 – depois de 1729)

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O pai (João da Costa) era natural e morador em Bragança. A mãe (Leonor da Costa) era de Torre de Moncorvo. Mas os Costa de Bragança estavam ligados com os de Torre de Moncorvo e uns e outros com largo historial na inquisição. Por isso mesmo, a maioria dos membros da família acabaram por fugir para Castela. Foi o caso de António da Costa, irmão de João da Costa, que foi residir para Toledo e ali exercia o ofício de estanqueiro do tabaco. Aliás, acabaria por ali ser preso pela inquisição daquela cidade de Espanha. 
E também para Castela abalaria João da Costa ao atingir os 20 anos, conforme resulta do seu processo. Mais: ele disse que em Espanha foi doutrinado na lei de Moisés. Vejam:
- Há 30 anos, estando a morar em Zafra, reino de Castela, em casa de Pedro Catalão, homem de negócio, casado com Luísa de Salinas, lhe parece que era francês, morador na dita vila, na rua das Feiras, estando juntos e um irmão da mesma chamado Francisco de Salinas, lhe disse o dito Catalão que se queria salvar a sua alma havia de ter crença na lei de Moisés. (1)
E por ter vivido em Villa Real, terra da comunidade de Valência, Espanha, João da Costa terá ganho aquele sobrenome toponímico, quando regressou a Bragança ao findar da década de 1670 para casar com Isabel de Sá, da família Lafaia (2) que lhe deu dois rapazes e duas raparigas (3). E falecendo Isabel, por 1702 João casou em segundas núpcias com Leonor Nunes, viúva de Luís Pereira d´Eça. (4)
Os negócios de João da Costa não se limitavam a Bragança, antes o encontramos em constantes viagens pelo Porto, Lisboa, Madrid e outras muitas terras de Portugal e Castela. E se nas denúncias mais antigas ele é referido como torcedor de seda, logo depois é tratado por mercador e tratante. E sendo Bragança uma terra pequena para o seus negócios, este homem do trato mudou-se para Lisboa, cerca de 1698, fixando residência em Mata Porcos, na freguesia de Santa Justa e ali abrindo também uma loja. Nessa época ele é apresentado como contratador de açúcar.
A casa de João da Costa em Lisboa era local frequente de reuniões em sinagoga e nela se juntavam familiares e amigos de Bragança, como aconteceu na celebração do dia grande (Kipur) de 1698 em que foram 12 os congregantes que ali passaram o dia “e se juntaram na sobredita casa por ser mais isenta de criados e poderem mais livremente sem serem pressentidos, jejuar e guardar o dito dia e porque a casa tinha salas grandes e retiradas”, conforme o testemunho de Gaspar Mendes Henriques, um dos participantes.
Sobre a guarda do sábado como dia de descanso semanal, há dois episódios muito interessantes contados por João da Costa. Um deles teve como protagonista um tal Bento do Couto que se recusava a receber o dinheiro de uma dívida que lhe iam pagar pois que, sendo sábado, “não era dia de cobrar dinheiro”. O outro episódio aconteceu com André Garcia, de Bragança que ele acompanhou ao correio a levantar umas cartas e depois se recusou a abrir e ler as mesmas “por causa de ser sábado”. Imagine-se: o sábado era um dia tão sagrado que nem mexiam no dinheiro e nem sequer abriam as cartas vindas no correio!
Em Lisboa a vida de João Vila Real aparece muito ligada à zona da Trindade, à igreja da Conceição (antiga sinagoga de Lisboa) e o claustro da Trindade era então o sítio mais procurado pelos marranos para enterrar os mortos “por ser a terra mais alta”. Disso mesmo nos dá conta o nosso biografado, comentando a morte e o enterro do famoso médico Simão Lopes Samuda, em 1702:
- Há 2 anos em Lisboa foi a casa do médico Samuda, sendo chamado por António da Mesquita, genro do mesmo encomendando-lhe este fosse à Trindade encomendar um hábito para amortalhar o dito seu sogro, e indo com efeito ele confitente a fazer a dita diligência, o trouxera a casa do mesmo e achando que o dito Dr. Samuda tinha já falecido, e perguntando ele confitente aos filhos do mesmo (…) porque não ia seu pai enterrar à freguesia, lhe responderam que era melhor à Trindade e enterrarem-no no claustro e no hábito da Trindade do que de S. Francisco, do que ficou presumindo ele confitente que os mesmos eram observantes da lei de Moisés porque indo a enterrar-se a sogra de João da Silva Henriques ao mesmo convento da Trindade, lhe dissera Manuel da Cunha Falcão que aquela terra do claustro da Trindade era melhor por ser mais alta e costumarem ir ali a enterrar os cristãos-novos.
Sobre António de Sá Mesquita, (5) diremos que ele, tal como o seu irmão Francisco, foram denunciantes do nosso biografado e de sua mulher Leonor Nunes, que foram presos em 23 de Agosto de 1703, saindo ambos penitenciados em cárcere e hábito perpétuo. João passaria cerca de um ano nas masmorras e sua mulher dois. Isso ficaria talvez a dever-se à vigorosa defesa por ele apresentada e aos sólidos depoimentos das testemunhas de defesa por ele nomeadas e que incluíam gente da maior nobreza e fidalguia de Bragança entre eles o alcaide do castelo e o governador militar. E um dos factos que mais terá pesado no ânimo dos inquisidores foi assim contado por ele e confirmado pelas testemunhas:
- Sendo morador em Bragança, servia todas as irmandades da igreja de S. João, de onde era freguês, com muita devoção e dispêndio de sua fazenda (…) E na igreja de S. Vicente servindo de mordomo do Senhor Jesus, concorrendo com as maiores despesas que se costuma fazer, em tal forma que vindo para Lisboa, deixou todas as dívidas que se lhe deviam na cidade de Bragança para a irmandade do Santo Cristo.
Livre das masmorras da Inquisição de Lisboa, João da Costa Vila Real, foi acabar os seus dias na Inglaterra. A fuga de Lisboa, com toda a sua família (17 pessoas), foi espetacular. Chegado a Londres, aderiu abertamente ao judaísmo fazendo-se circuncidar e tomando o nome judeu de Abraham. Tinha 73 anos quando foi circuncidado, em 28 de Agosto de 1726, sendo seu padrinho Abraham Dias Fernandes, originário de Freixo de Numão. Três anos depois, em 18.5.1729, Abraham Vila Real, seria padrinho da circuncisão de um seu neto, como ele chamado Abraham da Costa Vila Real, filho de Isaac (José) da Costa Vila Real,  Real. A madrinha foi a mulher deste. (6)
Terminamos esta biografia com uma oração recitada por João da Costa que terá aprendido em Espanha, em casa de Pedro Catalão. Ou terá sido em Bragança com Jerónima Salinas, cunhada daquele e sua madrasta?
En tu furor mi Señor no argüías mi
Airado mi miseria reprehendas,
Usa mi Dios de grandezas tuyas,
E aparta de mi alma las contiendas,
Y con piedad mi juicio le concluías,
Sana mi alma pobreza afligida,
Pues eres su salud su gloria y vida,
Desata de mi alma las contiendas
Y con piedad mi juicio le concluías.

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:
1-ANTT, inq. Lisboa, pº 2366, de João da Costa Vila Real.
2-Pedro Lafaia Pissarro, irmão de Isabel de Sá foi o tutor nomeado dos filhos de João e Isabel. Ele próprio era casado com Leonor da Costa, sobrinha de João Vila Real,  - ANTT, inq. Lisboa, pº 1535, de Pedro Lafaia Pissarro. IDEM, pº 8161, de Leonor da Costa.
3-Todos os 4 filhos foram processados pela inquisição de Lisboa. A filha Mariana foi casada com António Machado Coelho, que faleceu nas cadeias da inquisição de Lisboa em 15 de Outubro de 1705, com a sentença a ser lida 4 anos depois, no auto da fé de 30.6.1709, nela se determinando o confisco de bens e declarando “que por sua alma se podem fazer sufrágios da Igreja e que seus ossos se entreguem aos herdeiros se os pedirem”. Ficando viúva e posta em liberdade, Mariana fugiu com a família para Inglaterra e ali assumiu publicamente a condição de judia, tomando o nome de Sara. Casou segunda vez, com Alexandre (Abraham) de Morais, irmão do porteiro da sinagoga Bevis Marks, Luís Sá, também originários de Bragança.
4-ANTT, inq. Lisboa, pº 3605, de Leonor Nunes.
5-IDEM, pº 153, de António de Sá Mesquita. Seu irmão, Francisco Sá Mesquita terá sido um dos grandes denunciantes da história da inquisição portuguesa. – IDEM, pº 1330 e 16326, de Francisco de Sá Mesquita.
6- Bevis Marks Records, posted by SteinHE@aol.com. R.D. Barnett and others (ed)  The circumcision  register of Isaac  and Abraham  de Paiba ( 1715- 75) In the Archives of the Spanish an Portuguese Jew’s Congregation of London , Bevis Marks Records , 4 (1991)

Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães