Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- Manuel Lopes, um judeu do tempo da inquisição

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No episódio anterior assistimos à mudança de Manuel Lopes, irmão e cunhada de Chacim para Lisboa. Em Lisboa, fixaram residência na freguesia de S. Nicolau. Como João Ventura aprendera em Bragança o ofício de tecelão de seda e em Chacim se metera a negociar aqueles tecidos, não lhe seria difícil conseguir trabalho e meios para se governar na capital. Os restantes membros da família empregaram-se “em fazer chocolate e vender”. E estas são as informações que temos acerca do seu modo de vida por cerca de 3 anos, até conseguirem sair de Portugal, no ano de 1700, e mudar-se para Livorno. Embora Manuel o não o diga textualmente, deixa, no entanto, entender que, na chegada a Lisboa, contaram sobretudo com o apoio de Francisco Lopes Pereira, seu primo paterno, filho de sua tia Beatriz Lopes, ou Cardosa. A propósito desta sua tia, veja-se a declaração feita por Manuel Lopes perante os inquisidores: — Agora está lembrado de novo que, em uma ocasião (…) o dito Francisco Lopes, seu primo, estando em sua casa, falando de umas prisões que se haviam feito no reino, (…) disse o dito Francisco Lopes que sua mãe estava na Holanda e os judeus lhe chamavam a Velha dos Tormentos, porque estava baldada dos braços, por causa do tormento que lhe haviam dado, estando presa na santa inquisição. E uma filha que estava com ela na Holanda, havia estado sentenciada à morte pela inquisição, e por ser tão formosa, a Rainha a tinha livrado e não se recorda dos nomes da dita mãe e irmã, nem se haviam sido presas em Cádis, se em Portugal, mas que ele estava com ânimo de ir-se para a Holanda, para viver em liberdade e estar com as ditas mãe e irmã; e quando não pudesse ganhar a vida, lá os judeus o sustentavam, como costumam fazer com outros velhos impedidos de o fazer, como faziam com a sua mãe. Mas ele, confessante não tem notícia que se tenha passado para a Holanda.(1) Francisco andaria então na casa dos 40 anos “e empregava- -se em Lisboa vendendo pelas ruas especiarias e papel”, conforme o testemunho de Manuel que, também o apresenta como dono de um estanco de tabaco em Santiago da Galiza, de onde passou para a cidade do Porto, antes de fixar morada em Lisboa, onde casou, com Branca de Chaves, natural de Santa Valha, termo de Vinhais. Manuel falou também de 3 filhos de Francisco e Branca (Leonel, Manuel e Francisca) que casaram com 3 irmãos (Clara, Leonor e Salvador), filhos de outro Francisco Lopes, o Saias, que “tinha um posto de tabaco na rua de Santo Antão da Mouraria, cirurgião, embora não saiba do ofício”.(2) A casa de Francisco situava-se na Mouraria, em uma rua “que está junto à rua de Santo Antão” e devia ser uma casa bem espaçosa, a avaliar pela gente que ali era recebida. Assim, em um quarto alugado, morava Manuel da Costa que “ensinava a tecer em Lisboa, como tem declarado e foi em Lisboa seu mestre tecedor”, e morava “em um quarto alto, de que pagava o aluguer”. Foi também na casa do primo Francisco que Manuel Lopes conheceu João Bom Dia, ou melhor, Dom João Bom Dia, negociante em Serpa, no Alentejo que ali ficava alojado quando vinha a Lisboa “a fazer sortimento para a sua tenda (…) e lhe parece que era castelhano porque falava muito bem o castelhano”.(3) E também na mesma casa, durante um mês esteve alojado Simão de Vivar, seu parente. O seu verdadeiro nome era Simão Brandão, nascido em Mogadouro, por 1637, filho de Francisco Rodrigues da Paz e Clara Rodrigues. Tinha uns 15 anos quando fugiu para Castela, depois que a inquisição prendeu seu pai, sua mãe, sua irmã, Maria Brandoa, em Mogadouro e seus tios João e Francisco Rodrigues Brandão, em Torre de Moncorvo, para além de outros mais parentes. Em Castela mudou o nome e inventou uma nova identidade, dizendo ser filho de um fidalgo de Sevilha, cristão-velho, chamado Don Alfonso de Vivar. Isso, porém, não o livrou de ser preso pela inquisição de Toledo, que o desterrou de Madrid. Regressou a Portugal e fixou-se em Lisboa, com uma empresa de fabrico de chocolate e de compra e venda de tecidos de seda, que exportava para Espanha. Por vezes é referido como contratador, o que significa homem de grandes recursos financeiros. Em 1703, foi preso pela inquisição de Lisboa.(4) Já atrás se falou de David Brandão,(5) nascido em Moreira, filho de Gaspar Rodrigues e de Inês Rodrigues, neto materno de Francisco Brandão e Maria Rodrigues, de Torre de Moncorvo. Manuel Lopes conheceu David em Lisboa quando cumpria a penitência, vestindo o sambenito para ir à missa aos domingos. Atentemos, novamente, na declaração, feita a propósito, por Manuel Lopes: — Ele confessante o viu cumprir a penitência na igreja de S. Lourenço, de Lisboa, tendo no tempo que se dizia missa, vestido o sambenito e acabada, punha-o debaixo da capa, e o levava a casa de Manuel Lopes Galego, onde estava hospedado, por ser parente de Ana Cardosa, sua mulher, e de Luís Cardoso Pereira, seu cunhado, e algumas vezes que ele confessante o viu com o sambenito ouvir missa na dita igreja ao dito David Brandão também assistia com as mesmas insígnias e com o mesmo fim o dito Gabriel Rodrigues Pinto,(6) natural de Moreira, filho de Manuel Pinto e Leonor Rodrigues. E este último o levava, debaixo da capa, de volta para sua casa, que tinha no Bairro de Alcântara onde vendia tabaco.(7) Pois, também este Gabriel Pinto estava ligado à família de Francisco Brandão e a Torre de Moncorvo, já que era neto paterno de Violante Rodrigues, irmã de Francisco Brandão. Como atrás se disse, a nação hebreia de Torre de Moncorvo foi completamente desmantelada no terceiro quartel do século XVII. E terminamos estas notas sobre a vivência de Manuel Lopes com o irmão em Lisboa, voltando a casa de seu primo Francisco, com a descrição de uma cena feita por aquele, acontecida em casa de seu primo, com o intérprete, citado ao início, como protagonista: — Entrando ele confessante uma ocasião em uma sala ou aposento da casa onde vivia o dito Francisco Lopes, seu primo, estava com este o dito José, que, logo que entrou, não sabe se por casualidade ou de propósito, o dito José fechou um livro e o pousou sobre uma mesa; e tendo chegado ele confitente à dita mesa, o abriu e reconheceu que era letra hebraica; e depois que o dito José, intérprete, se foi, levando o livro, perguntou ao dito seu primo o que era que estava fazendo o dito intérprete; ao que lhe respondeu que explicava em língua espanhola algumas cerimónias da lei de Moisés que constavam no dito livro em língua hebraica.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães