Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- OS LEDESMA - Família e Mobilidade: O Dr. Gabriel Rodrigues Ledesma

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Voltemos à cidade do Porto, a casa de António Ledesma que, ficando viúvo de Beatriz Nunes, casou em segundas núpcias com Maria Ferreira de Carvalho, de uma família dividida por Coimbra e Porto, mesclada de cristãos-novos e velhos. Antónia Carvalha, irmã de Maria Ferreira, viveu em Coimbra, casada com António Mascarenhas e tinham 2 filhas freiras e um filho, chamado Manuel Mascarenhas, prebendeiro da universidade. Todos foram presos pela inquisição, acabando Manuel Mascarenhas por ser relaxado à justiça secular no auto- -da-fé de 14.6.1671. Catarina Ferreira de Carvalho era outra irmã de Maria Ferreira. Estava casada com Diogo Cardoso Pereira, natural de Torre de Moncorvo, escrivão dos agravos da Relação do Porto. De entre os seus filhos (4 rapazes e 3 raparigas), uma referência para o filho Gaspar Pereira de Carvalho que, em 1662 contava 24 anos e se mantinha solteiro, morador em Lisboa, na Rua das Mudas, depois de uma viagem e estágio comercial de 4 meses no Brasil, com dois de seus irmãos. No Porto começara a vida profissional como escrivão dos órfãos e em Lisboa estivera ao serviço do sargento-mor do Regimento de Cavalaria de D. João V, Henrique Henriques de Miranda, familiar do santo ofício, entrando depois para a Casa dos Viscondes de Ponte de Lima. Certamente receando ser preso pela inquisição, tomou a iniciativa de se apresentar, ao final de Julho de 1662. A última notícia que dele temos é de Junho de 1689, altura em que a inquisição decidiu ajustar novas contas com ele mas não o conseguiu porque ele se encontrava ausente, morando em França.  Um dos filhos de António Ledesma e Maria Ferreira chamou-se Gaspar Rodrigues Ledesma, o Galego, de alcunha. Nasceu no Porto, por 1650 e foi morador em Bragança, dedicando-se à tecelagem de sedas. Casou com Clara Gonçalves e, enviuvando, casou segunda vez com Maria de Castro. Ambas lhe deram filhos e ele e as mulheres e os filhos, todos conheceram as cadeias da inquisição. Terá falecido por 1745, conforme declaração feita em 12.2.1749, pelo Dr. Francisco Furtado Mendonça perante os inquisidores de Coimbra: - Haverá 27 anos, em casa de Gaspar Rodrigues Ledesma, tecelão de sedas, casado com Maria de Castro, falecido, e se declararam até à data em que faleceu, haverá 3 ou 4 anos.  Gabriel Rodrigues Ledesma foi um dos filhos de Gaspar Ledesma e Clara Gonçalves. Nascido em 28.11.1684, ter-se-á criado em casa do tio materno, Manuel Rodrigues, o Clérigo de alcunha, morador em Carragosa, junto a Bragança. Formado em medicina pela universidade de Coimbra, Gabriel foi médico do partido da câmara e do hospital militar. Homem de elevado estatuto social e muito pretendido, em termos de contrato nupcial,  casou por 1707, com Angélica da Silva, filha de Miguel da Silva, tratante e rendeiro. Filho de mãe solteira, Miguel da Silva nasceu fora do casamento, em Macedo de Cavaleiros, mas não foi abandonado pelo pai, morador em Bragança, que lhe deu o nome, o educou e o casou naquela cidade, com Brites de Sória. Trata-se de uma família abonada de bens e prestigiada entre a gente da nação brigantina. O pai de Miguel pertencia à elitista classe dos contratadores, um irmão e um cunhado eram prateiros em Castela e um terceiro irmão, João da Silva Morais, era escrivão do judicial e notas de Bragança enquanto a irmã, Micaela de Morais, estava casada com o contratador Fernando da Fonseca Chaves, natural de Bragança, morador em Lisboa. Todos eles foram processados pela inquisição, pelo ano de 1713. Ao contrário da restante família e também do seu marido, Angélica da Silva não foi levada nessa vaga de prisões, ficando em Bragança com suas 3 crianças, ainda pequenas: Gaspar, Perpétua e Rosa. Em 1716, porém, resolveu apresentar-se voluntariamente em Coimbra. Ouvida a sua confissão, foi mandada regressar a Bragança, ficando em aberto o seu processo, que só foi concluído depois que a ré faleceu em Bragança, em 17.3.1719, e foi enterrada na igreja de S. João Batista.  Ficando viúvo, o Dr. Gabriel Rodrigues Ledesma casou novamente, com Luísa Josefa Henriques, filha de Pedro Cardoso, de Vinhais e Esperança Rodrigues, de Bragança. Luísa tinha 11 irmãos, entre eles, Francisco Rodrigues Ferreira, que foi preso pela inquisição de Coimbra em 1714 e segunda vez em 1747. E é do seu processo que retiramos a seguinte acusação feita por Domingos Pires, cristão-velho, 36 anos, solteiro, tecelão de sedas, em 23.9.1740, perante o comissário Roque de Sousa Pimentel: - Disse que sabe por ver que alguns cristãos-novos desta cidade se ajuntam à noite, uns em casa dos outros, porque na rua aonde ele testemunha mora, viu que vão para casa do médico Gabriel Rodrigues Ledesma, morador na mesma rua, António Rodrigues Ferreira e seu irmão Francisco Rodrigues Ferreira, cunhados do mesmo médico, e o seu genro António Novais da Costa e o bacharel António Mendes Borges, moradores na mesma rua, e Pedro de Castro Lafaya, cerieiro, e seu filho Gaspar, moradores na Rua Direita, e Francisco Mendes Furtado e sua mulher, e Beatriz de Castro, viúva de Henrique Rodrigues Gabriel, alferes de ordenanças, e sua filha Luísa casada com Gabriel Rodrigues Ferreira Cardoso, e Beatriz Lopes, viúva do Cunha e seu filho Manuel, e João Rodrigues Ledesma, o Galego, de alcunha, irmão do mesmo médico, e sua mulher Francisca Rosa. E os dias em que fazem o dito ajuntamento é nas sextas-feiras e sábados, pelas 8 para as 9 horas da noite, e que as cerimónias que fazem não sabe, porém que assistiu em casa do dito médico por tempo de um ano e viu que cerram as portas e não admitem cristão-velho algum e ainda os próprios criados mandavam para fora de casa ou para a loja.  Esta denúncia deixa-nos adivinhar um pouco da ambiência religiosa da “nação judaica” de Bragança onde a casa do Dr. Gabriel Ledesma funcionava como verdadeira sinagoga e onde não faltava gente que viajava para o estrangeiro a fim de se circuncidar, como vimos ao falar de António Manuel de Lima que, para o efeito, se deslocou propositadamente a Londres. Ser circuncidado e cumprir o Kipur são condições essenciais para ser judeu e assim o entendiam os judeus brigantinos do tempo da inquisição. E é impressionante a forma como em Bragança se guardava o Kipur. Dizem os testemunhos que, na Rua Direita, havia uns 150 tornos e nenhum deles trabalhava em dia de Kipur. Mas veja- -se, em concreto o depoimento do padre Bento Rodrigues, referindo-se ao Kipur de 1746: - Caiu o tal dia 24 de Setembro em um sábado, em que pelo reportório, se contavam 10 dias da lua e observou que os cristãos-novos desta cidade guardam por Santo o tal dia; e a razão da sua afirmativa é porque tratando quase todos os cristãos-novos desta cidade em teares de seda, naquele tal dia não trabalharam neles, porque correndo ele testemunha a cidade pelas 7 da manhã, 8 e 10 e pelas 2 e 4 horas da tarde, não viu trabalhar nos teares cristão-novo algum, antes sim os viu estar conversando uns com os outros.  Impressionante também como a gente da nação de Bragança praticava ritos e cerimónias judaicas, nomeadamente no que respeita ao enterramento dos defuntos. Vejamos apenas um apontamento sobre o enterro de um cunhado de Gabriel Ledesma, conforme testemunhou João Pires, familiar da inquisição: - Aos seus defuntos, ainda que levem hábito de S. Francisco, entende ele testemunha, por desprezo ou para enganar os católicos, pois todos, por baixo, levam mortalhas de pano de linho, novas e ainda por cima do mesmo hábito, como ouviu dizer fora enterrado Manuel Rodrigues Ferreira, falecido há poucos dias, que levava uma granacha de seda, com bocais de veludo por cima do hábito de S. Francisco, a modo de Desembargador; e que todos levam barrete branco de pano de linho; e enterram-se os mais deles em covas profundas, em terra virgem, e para isso elegem sepulturas na igreja de S. Vicente, por não ser paroquial e se sepultarem lá poucos cristãos-velhos, sendo certo que nesta igreja lhe custa a sepultura uma moeda de ouro (4.800 réis) para cima e na paróquia só 500 réis.  Mas se para ser judeu eles consideravam essencial ser circuncidado e guardar o Kipur, isso não esgotava a prática religiosa da gente da nação de Bragança. Antes pelo contrário, a leitura dos processos da inquisição revelam uma infinidade de ritos e cerimónias que marcavam a prática da lei mosaica, como era o caso da celebração do Sabat, dos jejuns do Purim, do thanis, do primogénito, do capitão, ou das cerimónias que cumpriam quando aconteciam grandes calamidades, ligadas a fenómenos atmosféricos como os incêndios e as chuvas. Um pouco ao acaso abrimos o processo de uma mulher solteira, de 31 anos, natural de Bragança e moradora em Lisboa, e deparamos com a confissão seguinte: - Disse (…) que guardavam os sábados de trabalho como dias santos vestindo camisa lavada na sexta-feira à noite; não comiam carne de porco, coelho, lebre, peixe de pele, sangue, nem sebo 9 dias antes que fizessem o jejum do dia grande, da rainha Ester, da sentença, do incêndio, e das grandes águas turvas…

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães