Velho do Restolho

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Boas tardes, minha gente. Neste momento Bragança está nas bocas do povo. É triste porque todos sabemos como estas notícias negativas se colam à imagem de uma cidade. Claro que estas coisas também acontecem no coração de Lisboa e com muito mais frequência. O problema é que Lisboa aparece nas notícias por tudo e por nada. Bragança não. E ninguém está para ver a forma como os estudantes africanos têm feito parte da cidade, trazendo vida e cultura, integrando-se e moldando a comunidade. Tudo se reduz, preconceptualiza. Francamente, não parece que a questão racial tenha estado no centro da questão. Mas é natural que surja essa inevitável leitura. O que não é tão natural é uma geração à qual não falta nada, que não precisou de lutar por nada, mas que continua a reagir com a mesma futilidade que gerações anteriores. Tanta formação, tanto conhecimento, tanta app, para sermos tão ou mais boçais que os que nos antecederam. Tanta aparente mudança nas últimas décadas, e uma malvadez, uma animalidade incontida e voraz a crescer perversamente. Que vergonha. Vergonha de nós enquanto cidadãos, enquanto grupo social. Vergonha de nós que não aprendemos nada com o tempo, nem com a história, nem com coisa nenhuma. Nos pós-guerras, nos pós-25 de Abril, nos pós-Europa, tanta coisa que era para “sempre” e que “nunca mais” e olha para nós às voltas, diluídos, a tropeçar nos mesmos buracos, às portas de tudo outra vez. Da violência, da segregação, das guerras, da miséria. Um mundo maioritariamente sub-desenvolvido e uma minoria assente na futilidade, distraída, atenta não ao conteúdo das coisas mas perdida nos fait-divers, na superficialidade de tudo, no parecer, espreitando a vida dos outros, indignando-se por entre caixas de comentários. Não discutimos assuntos, discutimos o que disse A ou B; não debatemos ciência, enumeramos “estudos” sobre parvoíces; não praticamos a interacção, o entendimento, o voluntariado, colocamos “posts”. Mas discutimos futebol, visceralmente. Vivemos passivos, de ombros encolhidos, desligados uns dos outros. Devoramos séries e documentários, fazemos viagens para longe, vamos onde toda a gente já foi, mas não procuramos conhecer, interagir, não aprendemos nada que não esteja nas parangonas do Google. Tudo é para fazer ver aos outros. Não nos mobilizamos, não fazemos nada porque tem de ser, porque valores mais altos se levantam. Não temos ideais a que nos agarrar, coisas por fazer, que defender. Sobram umas coisas importadas e meio postiças guardadas no frigorífico das redes sociais. Os ideais foram desaparecendo, escasseando ao longo das últimas décadas. Já há 30 anos os Ban desesperavam por um. Já há de tudo em todo o lado. E nem precisamos de lá ir porque nos trazem a casa. Já estamos na CEE. Teoricamente já temos a paz, o pão, habitação, saúde e educação. Na prática não sei, não importa. Vamos estar sempre a queixar-nos de qualquer das formas. Isto é uma vergonha, diz-se na assembleia, nas ruas e nos hospitais. Lá fora é que é bom! Ninguém nos bate no quentinho das pastelarias e dos centros comerciais. Que mais queremos? Não te chateies, amigo, daqui ao Verão é um pulinho. E este Verão há futebol. O FMI já veio e reveio, o José Mário Branco já foi. Pois é, quartel em Abrantes e quem se lixa é o je. Portugal nação valente e moral: Viva o feminismo, o ambiente e os animaizinhos de estimação! Foi-se o ultramar, mas somos ricos em sol e em lítio. Abaixo a exploração do lítio! Abaixo as barragens! Vou andando que tenho de ir meter o euromilhões. Deixa passar o tuk-tuk. This is ginjinha in chocolate glass. Very good e just one euro, amigo. Bem-vindos os que cá vêm para se reformar! O problema é quem tem de levar isto para frente, é só parasitas. Esta semana estou de baixa, era um maço de tabaco e duas raspadinhas, se faz favor. Aqui em Macau emigração altamente qualificada, advogados, engenheiros e arquitectos, iguais aos portugueses analfabetos e terceiro-mundistas das bidonvilles francesas de há 60 anos. Sem tirar nem pôr. Casais portugueses falam em inglês para os filhos, “o meu filho não entende português” dizem ensoberbados de parolo orgulho português. Negam uma língua a um filho porque é chic (ser burgesso) como os dos bidonvilles também negavam porque era tudo menos chique falar uma língua de gente burgessa, coitados. Pobre povo, nação vãmente. Memória curta, perna longa. Não aprendemos nada, não evoluímos nada. Só mudamos a fatiota. A roupa do Zé Povinho é da H&M. Ai Portugal, não ensinemos aos nossos filhos alguma coisa que valha a pena, alguma coisa que vá para além do superficial. Não falemos do tempo, das histórias, de querer conhecer e interagir com todos, de nutrir empatias e gerir emoções, lutar contra os avassaladores ventos de indiferença e de futilidade. O que será dos tempos vindouros? Chamai-me Velho do Restolho. Chamai-me o que vos der na gana. “Nomes com quem se o povo néscio engana!”.

 

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen Cantão Guangdong – China

Manuel João Pires