As venturas e as desventuras da pandemia

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Como ponto prévio e no sentido de balizar a minha posição sobre o tema porventura mais escrutinado e mais mediatizado deste primeiro quartel do século, convém esclarecer que tanto eu como a minha família sofremos directamente na pele as vicissitudes e os danos colaterais provocados pelo novo coronavírus-Covid 19. Como tal, é natural que a abordagem, a visão e o ângulo retrospectivo e prospectivo sobre esta pandemia tenha como ponto de partida e de análise a nossa experiência pessoal e as nossas venturas e desventuras.

Como em tudo na vida, não podemos dizer que isto só acontece aos outros. A verdade nua e crua é que também nos pode acontecer a nós e temos que estar sempre à espera do pior, com a esperança que aconteça o melhor.

De referir que após o normal período de isolamento em casa, com acompanhamento à distância de excelentes profissionais de saúde da unidade hospitalar de Bragança, paulatinamente, vamos retomando a nossa actividade profissional dentro da normalidade possível. Nunca fez tanto sentido como agora a velha expressão popular “o que não mata, torna-nos mais fortes”. Só com essa força conseguiremos vencer as outras “patologias” colaterais, uma espécie de ervas daninhas que minam a sociedade. Refiro-me a uma certa tendência compulsiva para a maledicência, a calúnia, a mentira, a ignorância e a desinformação que grassa nas redes sociais, tão nociva como a própria “calamidade”. Para os que a coberto do anonimato das redes sociais, cultivam uma conduta abominável e cobarde, apenas me ocorre por agora a expressão popular “vozes de burro não chegam ao céu”.

Nestes tempos que vivemos de angústia e amargura colectivas, o país e o mundo ficou estarrecido debaixo da força vírica e da avassaladora e rápida disseminação à escala global deste novo coranavirus-Covid-19, tendo mesmo sido declarado como epidemia.

O medo arruinou o bom senso e a paz social, arquétipos da civilização, e roubou a muita gente as expectativas que a existência do homem como “animal social” acarreta, no que se refere não só à nossa capacidade criativa mas também a questões tão básicas como a etiqueta social, o dar um beijo aos nossos filhos, pais e esposas ou ainda a ida ao café e ao cabeleireiro.

Este fenómeno terrífico mobilizou múltiplos e diversificados esforços das organizações nacionais e internacionais e da sociedade civil em geral, de forma transversal a toda a comunidade, numa corrente solidária única e nunca antes vista, na qual despontou o voluntariado, o altruísmo e o profissionalismo.

Neste particular, é justo reconhecer o papel crucial dos profissionais de saúde pela sua grande disponibilidade e entrega a uma causa, tomando a linha da frente e dando o corpo às balas neste combate desigual contra um inimigo desconhecido e imprevisível na sua capacidade de disseminação e destruição.

De igual modo, importa reconhecer a conduta cívica de todos os portugueses por terem acatado de forma exemplar as medidas de confinamento impostas pelo governo. Cabe-lhes, por isso mesmo, também uma quota-parte importante nos bons resultados alcançados na mitigação da pandemia.

Cumpre-nos, naturalmente, o dever de nos congratularmos com a actuação globalmente positiva do governo e pela resposta dada a esta situação de emergência, bem como o sentido patriótico da oposição que soube separar as águas num momento crucial da nossa vida colectiva. Parafraseando La Fontaine, “toda a força será fraca se não estiver unida”.

Este tempo ímpar de afirmação e de realização colectivas deve ser motivo de grande orgulho e auto estima para todos os portugueses. Aos protagonistas que quotidianamente têm feito este “caminho das pedras” presto-lhes aqui o meu tributo, como uma vénia de reconhecimento e valorização do seu esforço e dedicação.

Quanto ao panorama vivido em Bragança, não foi muito diferente do resto do país no que se refere à capacidade de resiliência e de mobilização das autoridades e de toda a comunidade. Já quanto à igualdade de armas e dos meios disponibilizados aos cidadãos por parte do governo, não podemos fazer a mesma avaliação.

Com efeito, é precisamente nestes períodos de crise que os territórios do interior e as suas populações ficam ainda mais fragilizados e expostos aos impactos negativos e aos danos colaterais infligidos pela situações de emergência, fazendo-se notar com mais expressão e nitidez as assimetrias e a falta de coesão social e territorial, castradoras das suas ambições colectivas. Na minha modesta opinião, esta foi uma das pechas do Governo, pois aqui não andou tão bem no que reporta às respostas dadas no terreno. As condições disponibilizadas aos hospitais de retaguarda não foram as mesmas dos hospitais de referência. Nestes, sim, jogou as fichas todas, dotando-os dos meios técnicos e humanos necessários e de equipamentos de protecção individual compatíveis, bem como dos meios de testagem adequados e suficientes. Em resumo, dois pesos e duas medidas.

Compreende-se, por isso mesmo, a preocupação do Senhor Presidente da Câmara Municipal de Bragança, Dr. Hernâni Dias, quando reclamou e reivindicou junto do governo os meios em falta, indispensáveis como de pão para a boca para uma resposta eficaz e eficiente à disseminação do novo coranavírus. Portanto, ninguém lhe pode apontar o dedo, quando com toda a legitimidade e propriedade, procurou defender os superiores interesses da população do seu concelho. Certamente que numa matéria tão sensível como esta ninguém estaria à espera que o Senhor Presidente da Câmara se “deitasse” na cama do governo. Também ele, pela sua actuação oportuna e assertiva, merece com toda a justiça uma palavra de destaque e de elogio de todos os brigantinos.

Vencida e ultrapassada esta primeira etapa, sem que no entanto possamos baixar as armas e desguarnecer a vigilância, temos agora de enfrentar e vencer outros importantes desafios.

O primeiro desafio é a necessidade de adaptação a uma nova realidade social, é que isto nunca mais vai ser igual, os nossos hábitos, as nossas opções e o nosso “modus vivendi” estão mudados e vão continuar totalmente mudados no futuro. Mesmo depois de encontrado o “Santo Graal” que todos procuram freneticamente. Isto é, a vacina que sirva de antídoto para este novo coronavírus-Covid 19.

O segundo desafio, tem a ver com o impacto que esta epidemia está a causar na macro e na micro-economia, incluindo a economia familiar. Iremos assistir ao aumento das insolvências de empresas e de pessoas, e em consequência directa a um acentuado crescimento do desemprego. Em resultado disso, iremos sofrer uma quebra de rendimentos e a assistir a alguma convulsão social. A resposta a esta crise económica e social vai potenciar um Estado cada mais assistencialista e presente na vida das pessoas e da sociedade. Para mitigar este colapso da economia é fundamental um plano de choque, chame-se Plano Marshall ou outra coisa qualquer, que envolva o poder local, o poder central, as instituições comunitárias e todas as corporações públicas e privadas. O importante é criar medidas de intervenção rápida e musculada, sem burocracias e com regras práticas, simplificadas e fáceis de implementar.

O terceiro e último desafio tem a ver com a urgência dos problemas e com um imperativo nacional relacionado com o estado actual do Serviço Nacional de Saúde. Também ele doente e ligado à máquina. Temos que ter todos a humildade e o espírito crítico necessários para empreendermos e influenciarmos um pacto de regime que permita refundar e reinventar o SNS, colocando-se de parte nesta equação a dicotomia público e privado. Essa é uma discussão inútil, estéril e acessória que apenas serve as ideologias e a luta partidária entre direita e esquerda.

Aquilo que se exige dos diversos poderes políticos é o direito fundamental universal de acesso a uma saúde de qualidade, em condições de igualdade. Somos todos portugueses e os hospitais da capital ou da província, pequenos ou grandes, têm que ser todos dotados de condições dignas, seguras e fiáveis para os profissionais de saúde e para os utentes. Ponto.

Num tempo de amargura e desesperança, acima das desventuras, dos estigmas, da descriminação e das provações que fragilizam ainda mais as vítimas da pandemia, importa valorizar valores tão nobres como a solidariedade, o altruísmo e a amizade.

É em homenagem a esses valores que quero deixar aqui em meu nome e da minha família o nosso profundo reconhecimento e gratidão a todos, que de forma desinteressada e altruísta, nos ajudaram a superar esta terrível maleita e a transformar este período cinzento das nossas vidas no arco-íris e em venturas.

Dado a imensidão de apoios recebidos por mensagem e telefone, não querendo ser injusto para ninguém, não posso, todavia deixar de individualizar alguns casos que estiveram mais próximos de nós, salvaguardando o devido distanciamento físico, de forma a fazer-nos chegar a casa os bens essenciais, para além do seu inestimável apoio e conforto, mesmo com riscos próprios.

Quero assim dirigir uma palavra especial de gratidão e apreço à Dra. Cristina Batouxas pelo seu humanismo e competência, aos médicos internos colegas da Diana, pela sua constante presença, mesmo distantes fisicamente, aos meus queridos familiares Domingos, Céu, Zé, Manuel João, Adélia, Marta, Teresa, tia Lurdes e finalmente à D. Teresa, uma vizinha especial.

Os seus “miminhos” e surpresas deixaram-nos de coração cheio e com lágrimas no canto do olho. Um grande bem-haja e mil obrigados a todos.

 

Eduardo Malhão

Membro da AM de Bragança